Assembleia legislativa pode extinguir tribunal de contas dos municípios

Autor: Donato Volkers Moutinho (*)

 

No final do último ano, em 21 de dezembro, a Assembleia Legislativa do Ceará, por meio da Emenda Constitucional do Ceará 87[i], decidiu extinguir, imediatamente, o Tribunal de Contas dos Municípios do Estado do Ceará (TCM-CE). Com isso, pretendia unificar (num só órgão), com reunião de competências, aproveitamento de servidores e mescla de autoridades, as duas cortes de controle externo então existentes no Estado, quais sejam, o TCM-CE e o Tribunal de Contas do Estado do Ceará (TCE-CE).

Contudo, cinco dias após tal decisão, a Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon), reagindo à extinção do TCM-CE, ajuizou a Ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 5.638/CE, no Supremo Tribunal Federal, requerendo, sob a alegação de vícios formais e materiais na aprovação da Emenda à Constituição cearense, a imediata edição de medida cautelar determinando a suspensão dos efeitos da Emenda e a declaração, ao final do processo, de sua inconstitucionalidade.

Ainda no recesso da corte constitucional, considerando a emergência da situação e a dificuldade de reversão imediata e em idênticas condições das providências materiais e administrativas a serem adotadas para a imediata extinção do TCM-CE (seus processos já haviam sido distribuídos ao TCE-CE), a ministra Cármen Lúcia deferiu medida cautelar para suspender, na integralidade, os efeitos da Emenda atacada[ii].

Diante da contestação à constitucionalidade da Emenda 87/2016 e do deferimento da medida cautelar para suspender seus efeitos, a Assembleia Legislativa do Estado do Ceará emendou novamente a constituição estadual, promulgando a Emenda Constitucional do Ceará 92[iii], de 16 de agosto de 2017. Nesta, além de revogar a emenda anterior, novamente extingue o TCM-CE, com o deslocamento de sua competência, seus recursos orçamentários e humanos — com exceção dos conselheiros, que foram postos em disponibilidade —, seu acervo patrimonial e processual ao TCE-CE.

Com a revogação da Emenda 87/2016, o ministro Celso de Mello, em 21 de agosto de 2017, julgou prejudicada a ADI 5.638/CE, por perda superveniente de seu objeto, fazendo cessar, também, a eficácia da medida cautelar anteriormente deferida[iv].

Tendo se manifestado nos autos contra a tramitação da proposta que culminou na Emenda 92/2017, é possível que a Atricon ajuíze nova ADI, agora para atacar a nova Emenda. Contudo, considerando os fundamentos apresentados pelo ministro Celso de Mello na decisão que julgou prejudicada a ADI 5.638/CE, dificilmente tal ação prosperará.

Observe-se que a questão fulcral debatida na ADI é se o legislador estadual tem competência para extinguir tribunal de contas dos municípios, inclusive sem a concordância do próprio tribunal.

Sobre a questão, o Tribunal de Contas da União (TCU), admitido no processo como amicus curiae, por meio de sua consultoria jurídica, defendeu que a extinção de um tribunal de contas dos municípios somente poderia ser realizada por meio de emenda à Constituição Federal.

Contudo, deve-se ter em mente que, observados os limites fixados pela Constituição Federal, cabe às assembleias legislativas e às câmaras municipais definirem, respectivamente, nas constituições estaduais e leis orgânicas municipais, a organização político-administrativa dos entes subnacionais.

O primeiro limite imposto pelo legislador constituinte é a exigência de que o controle externo da gestão contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da administração pública seja realizado, também nos estados (vide artigo 71 combinado com o artigo 75 da CF/1988) e municípios (vide artigo 31 da CF/1988), pelo respectivo Parlamento e por um tribunal de contas, como na União.

Outro limite, previsto no § 4º do artigo 31 da CRFB/1988, é dirigido ao legislador municipal. Ele não poderá criar tribunal de contas municipal, sendo autorizada apenas a manutenção dos tribunais de contas municipais das cidades de Rio de Janeiro e São Paulo, já instalados à época da constituinte.

Assim, considerando o artigo 31, § 1º, da CF/1988, o controle externo dos municípios é realizado pelas câmaras municipais e por um tribunal de contas estadual. Tal corte de contas estadual, pelo dispositivo constitucional referido, pode ser tanto um Tribunal de Contas do Estado (TCE), como um Tribunal de Contas dos Municípios do Estado (TCM).

Observe-se que tanto o TCE, como o TCM, são órgãos pertencentes à organização político-administrativa estadual. Desse modo, não tendo o constituinte de 1988 estatuído limitação específica, cabe às assembleias legislativas (na constituição estadual), em cada Estado, a opção pela criação, manutenção ou extinção de TCM.

Os critérios utilizados para realizar essa opção, convém destacar, devem ser republicanos.

Assim, caso o legislador estadual (como legítimo representante da população) entenda que a fiscalização financeira e orçamentária será melhor realizada por dois tribunais de contas, um dedicado exclusivamente ao controle externo da administração pública estadual e outro especializado na fiscalização da gestão municipal, pode (observadas as limitações fiscais), além do TCE, criar ou manter um TCM, como atualmente existente nos estados da Bahia, de Goiás e do Pará (o do Ceará já passa pelo processo de extinção, como informa seu portal eletrônico[v]).

Por outro lado, caso o legislador estadual entenda que as eventuais vantagens advindas da especialização não compensam os custos envolvidos na manutenção de outra corte de contas, deve optar pela reunião das competências de controle externo da gestão contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial das administrações estadual e municipal no TCE, inclusive extinguindo, se existente, o TCM, como foi a opção da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará com a promulgação da ECEC 92/2017. A opção cearense se junta à de outros 22 estados.

Aliás, não é a primeira vez, desde a Constituição de 1988, que um TCM é extinto via emenda à constituição estadual. Por exemplo, em 1993, a Assembleia Legislativa do Estado do Maranhão, promulgando a Emenda Constitucional do Maranhão 9[vi] (julgada constitucional pelo STF no bojo da ADI 867/MA[vii]), extinguiu o Tribunal de Contas dos Municípios do Maranhão (TCM-MA). Noutro exemplo, o Tribunal de Contas dos Municípios do Amazonas (TCM-AM) foi extinto em 1995, com a Emenda Constitucional do Amazonas 15[viii].

Seja qual for a opção, deve-se considerar que a criação ou extinção de um tribunal de contas dos municípios, como mudança na estrutura político-administrativa do Estado que também afeta significativamente os municípios, perturba o ambiente institucional e envolve um relevante custo de transição institucional, que precisa ser cuidadosamente considerado na ponderação legislativa. Logo, a alteração somente deve ser realizada quando há plena segurança de que é a melhor escolha para conduzir à boa e regular aplicação dos recursos públicos.

Especificamente no caso do Ceará, a imprensa noticiou que a extinção do TCM poderia ser resultado da insatisfação de um grupo político com o suposto domínio, por outro grupo político, da corte de contas[ix] [x]. Tal disputa teria tido repercussões nacionais, com a proposição pelo senador cearense Eunício Lopes de Oliveira (presidente do Senado Federal) da Proposta de Emenda à Constituição 2[xi], de 2017, aprovada em primeiro turno, cujo objeto é vedar a extinção de quaisquer tribunais de contas, inclusive tribunais de contas dos municípios de determinado Estado.

Na Paraíba em 2015, por outro lado, segundo a imprensa, a insatisfação de um grupo político com o controle do TCE por outro, teria levado à tentativa (por enquanto frustrada) de criação de um TCM, esperando que a influência política do grupo que supostamente comanda o TCE fosse diluída[xii].

Não seria republicana, porém, a criação ou extinção de TCM motivada por desavenças entre grupos políticos.

Portanto, especialmente em tempos de crises ética e fiscal agudas, espera-se que a decisão sobre a criação, manutenção ou extinção de tribunal de contas dos municípios, em qualquer Estado, seja bem pensada, não açodada, e somente ocorra com o objetivo de contribuir para o aprimoramento da administração pública.

 

 

 

Autor: Donato Volkers Moutinho   é auditor de controle externo no Tribunal de Contas do Espírito Santo (TCE-ES). Doutorando em Direito Econômico, Financeiro e Tributário na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.


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