Nos últimos meses em várias cidades de São Paulo, sobretudo, na capital, acompanhamos atônitos e perplexos a inesgotável série de atentados e ataques proporcionados pela organização criminosa intitulada pelos seus integrantes, de “Primeiro Comando da Capital” (PCC).
Trata-se de um imenso grupo cujos participantes, de forma estruturada, disciplinada e hierarquizada empreendem ilícitos em diversos estados de nossa nação, principalmente, no Estado bandeirante onde deita sólidas e nefastas raízes já há alguns anos.
Diferentemente de outros agrupamentos com objetivos criminosos os quais, muitas vezes formam-se por ocasiões eventuais, o PCC se constitui, infelizmente, em verdadeira “instituição” com ânimo perene, possuindo regras, normas, diretrizes, posturas, inclusive sanções próprias, desfrutando, inclusive, ao que parece, da inadmissível benevolência, e até auxílio de órgãos e agentes públicos.
Recentemente, se noticiou, através dos órgãos comunicativos, que muitas dessas ofensas acima mencionadas foram originadas por pessoas que possuíam alguma “dívida” (fosse ela pecuniária ou moral) bem como “obrigações” outras perante essa organização criminosa, assim, eram aquelas, muitas vezes, forçadas, coagidas, impelidas a praticar as condutas delitivas assistidas há semanas atrás.
De tal sorte, estaria afastado o juízo de reprobabilidade e, portanto, descaracterizada a culpabilidade em tais ilicitudes? Tais condutas delituosas estariam acobertadas por alguma excludente de criminalidade?
Em tese, com todo o respeito às opiniões e manifestações contrárias, sim.
Descartamos, desde logo, as excludentes da “legítima defesa” (artigo 23, II, Código Penal —o agente não repele injusta agressão por parte dos mandantes ou chefes daquele grupo criminoso, muito menos age de forma moderada), a do “estrito cumprimento do dever legal” (artigo 23, III, do Código Penal —por razões óbvias, as determinações ou ordens emanadas dos líderes daquele grupo são manifestamente ilegais, não correspondem qualquer norma permissiva em nosso ordenamento jurídico), e do “exercício regular do direito” (artigo 23, IV, Código Penal —o agente ao práticas os ataques e atentados supra mencionado tem a consciência de que tais condutas não são autorizadas pelo ordenamento jurídico, portanto, sabe, previamente, que está praticando um ilícito).
A hipótese jurídica, por outro lado, consubstanciada no estado de necessidade (artigo 23, I, do CP) nos parece, aqui, em determinados casos, plausível.
Aníbal Bruno esclarece que no estado de necessidade “é a própria lei que exclui o ilícito dessa situação em que o agente sob a ameaça de um dano real, certo e iminente a um bem jurídico próprio ou alheio, salva-se pela agressão ao bem de outrem, que se apresenta como absolutamente necessária”.1
Nas imorredouras lições de Basileu Garcia, “assinala-se essa causa de exclusão de criminalidade pela presença de dois interesses lícitos em colisão. Existem dois direitos —ambos com iguais razões para subsistir. Encontram-se, porém, em choque; um não pode continuar a existir, se o outro sobreviver. Para que um permaneça, é necessário que o outro sucumba. Como, então, encarar a situação do titular do direito que se faz vitorioso à custa do outro? Ocorre, em favor do autor do fato, a justificativa do Estado de necessidade”2.
Para configurar o estado de necessidade, logo, necessário que estejam presentes as seguintes condições: a) perigo atual, não provocado voluntariamente pelo agente; b) salvamento do direito do próprio agente ou de outrem; c) impossibilidade de evitar por outro modo o perigo; d) razoável inexigibilidade de sacrifício do direito ameaçado3.
Ora, um indivíduo que, por exemplo, após receber uma injusta “ordem” (leia-se ameaça ou coação física direta) realiza a depredação ou ateia fogo em algum transporte coletivo, em razão de, horas antes ter sofrido graves ameaças contra sua vida ou de um familiar, por certo, estará diante de uma situação de perigo atual (ou ao menos iminente), involuntária, esse agir ilicitamente conforme o intento daquele que está ao ameaçar-lhe ou coagir-lhe (algum membro do PCC, conforme a hipóteses concreta vista), tem o escopo de defender direito próprio ou alheio, interesse este que, de imediato, o agente (coagido ou ameaçado) analisa, faz, por óbvio, um balanciamento de bens (patrimônio X vida / integridade física, e até vida de um desconhecido X minha própria via ou de um familiar4), para concluir, ainda que a necessidade de realizar aquele ato delituoso ambicionado por outros que não si mesmo era latente.
Assim, o sacrifício de abster-se a não praticar a conduta delituosa futura era inexigível, não era razoável exigir daquela pessoa, muito menos era de seu alcance impedir que referido perigo se verificasse.
Portanto, tais fatos por mais indigestos e inaceitáveis moral e socialmente que possam representar, estariam legitimados pelo direito penal vigente5.
Na mesma linha de raciocínio à argumentação exposta anteriormente, a coação irresistível (artigo 22 do Código Penal) também neste contexto, é aceitável.
Isto porque o agente ao realizar determinada ação ou omissão após sofrer constrangimento para fazer ou deixar de fazer alguma coisa, ilegalidade essa representada pelo emprego de força física6 ou moral7 por parte do autor dessa coação ou ordem, realiza uma conduta a qual, na verdade exterioriza a vontade, o animus de outrem (coator), seu corpo é mero instrumento passivo, tal evento físico delituosos não pode ser imputado penalmente àquele.
Assim, a capacidade de agir, por parte do coagido é tolhida, “…não passando de um títere a mercê do coator”8.
Essa coação, oportuno salientar, deve ser irresistível, ou seja, represente um perigo sério, grave, atual, não pode aquela, assim, ser vencida pelo coagido, suprimindo-lhe a possibilidade física ou a liberdade de agir contra a vontade do coator, não restam forças ao coagido (ou este não as possui) para uma possível reação9.
Diante da impossibilidade de ser exigível por parte do coagido comportamento imposto pela ordem jurídico (conduta positiva ou negativa para preservar bens e interesses fundamentais), estará confirmada a inexigibilidade de conduta diversa, pressuposto indispensável à imputabilidade penal e, por conseguinte, eventual imposição de reprimenda estatal (pena). A ausência desse elemento básico à definição acerca da culpabilidade do agente, inviabiliza qualquer juízo de reprobabilidade10.
Finalizando, estes breves e provavelmente polêmicos apontamentos não são para legitimar ou apoiar os inexecráveis, inadmissíveis, absurdos atos que presenciamos nos últimos meses, deixando todos nós alarmados, tampouco as palavras aqui transcritas se prestam a render quaisquer elogios às inaceitáveis posturas rebeldes atentatórias à segurança, ao patrimônio, fossem eles públicos ou não, a integridade física e a própria vida de pessoas inocentes, contudo, verdadeiramente, a luz da interpretação de nosso Código Penal, infelizmente, forçoso concluir que, em alguns casos concretos essas atitudes ilícitas, encontrariam respaldo legal em favor de seus respectivos agentes seja para isentá-los de culpa ou para excluir a antijuridicidade de tais condutas. A reflexão cabe a cada um de nós.
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Mauricio Schaun Jalil é advogado, pós-graduado em direito penal pela Escola Paulista da Magistratura e em direito penal econômico pela Universidade de Coimbra (Portugal)