Ato de Improbidade Administrativa

A improbidade administrativa é um cancro que corrói a administração pública. Pelo seu efeito perverso, que afeta a vida da sociedade causando descrédito e revolta contra a classe dirigente em geral, acaba por minar os princípios basilares que estruturam o Estado Democrático de Direito.

Generalidades

É comum confundir ato de improbidade administrativa com ato ilegal e lesivo ao patrimônio público, pressuposto básico da ação popular. O conceito de improbidade é bem mais amplo. É o contrário de probidade, que significa qualidade de probo, integridade de caráter, honradez. Logo, improbidade é o mesmo que desonestidade, mau caráter, falta de probidade.

Assim, podemos conceituar o ato de improbidade administrativa como sendo aquele praticado por agente público, contrário às normas da moral, à lei e aos bons costumes, ou seja, aquele ato que indica falta de honradez e de retidão de conduta no modo de proceder perante a administração pública direta, indireta ou fundacional, nas três esferas políticas.

Convém lembrar que a administração pública, no caso, não se limita ao Poder Executivo. Não há compartimentos estanques entre os Poderes da República. A tripartição do Poder por órgãos diferentes e independentes existe para coibir a ação de um deles sem limitação dos outros, formando um verdadeiro sistema de freios e contrapesos que se subsume no princípio de independência e harmonia entre os Poderes. O Poder Executivo é aquele incumbido da tarefa de, preponderadamente, executar as leis e administrar os negócios públicos, isto é, governar. Não interfere na atividade jurisdicional, mas cabe-lhe a nomeação de ministros de tribunais superiores, sob o controle do Senado Federal. Cabe-lhe, ainda, a faculdade de elaborar e enviar ao Legislativo o projeto de lei, bem como, o poder de sancionar ou vetar a propositura legislativa aprovada pelo Poder Legislativo, ressalvada a este último Poder a faculdade de derrubar o veto. Da mesma forma, os Poderes Legislativo e Judiciário, também, exercem atividades que extrapolam de suas atribuições preponderantes, quando promovem certame licitatório para aquisição de bens, quando efetuam o pagamento da folha, quando instauram inquérito administrativo etc. Por fim, importante notar que o Poder Judiciário não participa do processo legislativo, porém, cabe-lhe a prerrogativa de declarar a inconstitucionalidade das leis, não as aplicando neste caso.

A improbidade administrativa é um cancro que corrói a administração pública. Pelo seu efeito perverso, que afeta a vida da sociedade causando descrédito e revolta contra a classe dirigente em geral, acaba por minar os princípios basilares que estruturam o Estado Democrático de Direito.

Por isso a Constituição Federal inseriu disposições para prevenir e reprimir os atos de improbidade.

Prescreve o art. 37:

“Art. 37 – A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: …”

No § 4º, o legislador constituinte predefiniu as penalidades cabíveis ao dispor.

“Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.”

Lamentavelmente a legislação infraconstitucional, voltada para a extirpação deste câncer social, é lacunosa e defeituosa, talvez, por falta de vivência prática dos legisladores, o que até seria um mal menor.

Da legislação anterior

Antes do advento da Lei nº 8.419/92 a ordem jurídica só se preocupava com o enriquecimento ilícito.

Assim é que a Lei nº 3.164, de 1º da junho de 1957, previa o seqüestro de bens de servidor público, adquiridos “por influência ou abuso de cargo ou função pública, ou de emprego em entidade autárquica”, sem prejuízo da responsabilidade penal (art.1º). Conferia ao Ministério Público e ao cidadão a titularidade para requerer a medida cautelar perante o juízo cível.

Complementando esse diploma legal, sobreveio a Lei nº 3.502, de 21 de dezembro de 1958, elecando as hipóteses caracterizadoras de enriquecimento ilícito no exercício do cargo ou função pública.

Nenhuma dessas leis explicitou o sentido da expressão “influência ou abuso de cargo, função ou emprego público”. Outrossim, só após o advento de Reforma Administrativa, implantada pelo Decreto Lei nº 200/67, é que as empresas estatais passaram a integrar a administração indireta do Estado. Como se sabe, as estatais são useiras e vezeiras na contratação de servidores fantasmas, o que caracteriza ato de improbidade administrativa na modalidade de desvio de finalidade. Daí a pouca utilidade dessas leis no combate aos atos de desonestidade no trato da coisa pública. Essas leis foram substituídas pela Lei nº 8.429/92, que será mais adiante analisada.

A Lei n º 4.717, de 29 de junho de 1965, que permite ao cidadão ajuizar a ação popular para invalidação de atos ou contratos administrativos ilegais e lesivos ao patrimônio das entidades políticas, autárquicas e paraestatais, além de limitar à mera espécie do gênero improbidade administrativa, ultimamente, vem sendo utilizada mais como instrumento de oposição política do que como meio de moralização da administração pública. Daí porque, na maioria das vezes o autor da ação é um cidadão detentor de mandado político ou filiado a algum partido político, o que tem exigido do Judiciário um cuidado redobrado no julgamento dessas ações.

Vale a pena lembrar, ainda, o art. 4º da Lei nº 1079, de 10 de abril de 1950, que define os crimes de responsabilidade, incluindo dentre eles o ato atentatório a probidade na administração (inciso V). Atentar contra a probidade na administração, aparentemente, se identificaria com ato de improbidade administrativa de que estamos falando. Porém, não é bem assim, porque o artigo 4º desta última lei considera como crime de responsabilidade política os atos que atentam contra a probidade na administração. E o órgão competente para instauração do processo e julgamento do agente público, por crime de responsabilidade política, não é o Judiciário, mas o Legislativo a quem compete, se procedente a denúncia, decretar a perda da função pública, sem prejuízo das demais sanções cabíveis.

Da Lei n º 8.429/92

Essa lei define o ato de improbidade administrativa, os sujeitos ativo e passivo, as penalidades cabíveis, bem como, regula o procedimento administrativo e o processo judicial para investigação e punição do agente público infrator.

Conceito

Segundo essa lei, improbidade administrativa comporta claramente três modalidades. Os artigos 9º, 10 e 11 definem respectivamente os atos de improbidade administrativa que importam no enriquecimento ilícito, que causam prejuízo ao erário, e que atentam contra os princípios da administração pública. Exemplos da 1ª modalidade: adquirir, para si ou para outrem, no exercício do mandato, cargo, emprego ou função pública, bens de qualquer natureza cujo valor seja desproporcional à evolução do patrimônio ou à renda do agente público. Exemplo da 2ª modalidade: ordenar ou permitir a realização de despesas não autorizadas em lei ou regulamento. Exemplo da 3ª modalidade: praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência.

Cada um desses artigos definiu genericamente o ato de improbidade no caput e deu uma definição pormenorizada em vários incisos, o que ensejará, certamente, uma interminável discussão quanto à taxatividade ou exemplificatividade das hipóteses elencadas, a exemplo do que ocorreu com a lista de serviços municipais.

Importante notar que nem todo ato de improbidade administrativa implica enriquecimento ilícito do agente público ou prejuízo ao erário.

Sujeito passivo

Sujeito passivo ou vítima do mau agente público é a administração pública direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e as entidades particulares que tenham participação de dinheiro público em seu patrimônio ou receita, conforme prescreve o art. 1º e seu parágrafo único.

Sujeito ativo

É o agente público, assim entendido todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades que figuram como sujeito passivo do ato de improbidade administrativa. Abarca não só os servidores públicos, como também, os membros de Poderes ou agentes políticos.

Penalidades

Conforme se depreende do § 4º do art. 37 da CF as penas consistem na suspensão dos direitos políticos, na perda da função publica, na indisponibilidade dos bens e no ressarcimento ao erário, na forma e gradação prevista em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.

O art. 12 da Lei nº 8.429/92 instituiu várias penalidades, dentre as quais, a cominação de multa, a proibição de contratar com o Poder Público ou de receber incentivos fiscais ou creditícios. Extravasou os limites de sanções previamente definidas na Carta Magna que, nesse particular, não deu carta branca ao legislador ordinário para estipular sanções a seu talante.

Do procedimento administrativo

Qualquer cidadão pode representar à autoridade administrativa competente para que seja instaurada a investigação destinada a apurar a prática de ato de improbidade (art. 14). O dispositivo, na verdade, é desnecessário, pois o direito de petição já vem sendo consagrado, de longa data, nas nossas Constituições. Desnecessária, também, a disposição do art. 19, que pune o autor da denúncia que imputa, falsamente, ao agente público a prática do ato de improbidade administrativa, pois o Código Penal já cuida da denunciação caluniosa. Parece que esse dispositivo foi inserido para servir de desestímulo permanente à ação do cidadão. O interessado poderá, ainda, representar diretamente ao Ministério Público, bem como, pode o órgão ministerial, de ofício, requisitar a instauração de inquérito policial ou procedimento administrativo (art. 22).

Do processo judicial

A lei é lacunosa e dúbia ao mesmo tempo.

O Ministério Público foi legitimado para ingressar com processo cautelar apenas e tão somente para requerer, na forma dos artigos 822 e 825 do CPC, o “seqüestro de bens do agente ou terceiro que tenha enriquecido ilicitamente ou causado dano ao patrimônio” podendo o pedido incluir, quando for o caso, a “investigação, o exame e o bloqueio de bens, contas bancárias e aplicações financeiras mantidas pelo indiciado no exterior, nos termos da lei e dos tratados internacionais”(art. 16 e § § 1º e 2º).

Não há previsão legal para medida cautelar objetivando o afastamento temporário do indiciado das atribuições do cargo ou da função. Ao contrário, o art. 20 prescreve que “a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos só se efetivam com o trânsito em julgado da sentença condenatória”. É verdade que o seu parágrafo único permite que o juiz determine o afastamento temporário do agente público do exercício do cargo, emprego ou função, quando a medida se fizer necessária à instrução processual. Pressupõe, prévia instauração do contraditório para que o juiz, que detém o poder geral de cautela, possa decidir segundo seu prudente critério avaliativo o comportamento do réu no que diz respeito à instrução processual. Não autoriza a lei a presunção de que o réu irá atrapalhar ou dificultar a coleta de provas. Logo, o periculum in mora, que fundamenta a concessão de liminar, e no caso, nem se trata de liminar em sentido próprio, reside na necessidade de assegurar a regular instrução do feito, e não em prevenir a prática do ato de improbidade. De qualquer forma, esse parágrafo único é defeituoso e enseja interpretação dúbia ao conferir idêntico poder à autoridade administrativa competente no bojo de um dispositivo, que cuida da sentença judicial com trânsito em julgado (caput).

Quanto à ação principal, o art. 17 limita-se a dizer que terá o rito ordinário e será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica de direito público interessada, dentro do prazo de trinta dias, a contar da efetivação da medida cautelar. O art. 18 completa dizendo que “a sentença que julgar procedente a ação civil de reparação de dano ou decretar a perda dos bens havidos ilicitamente determinará o pagamento ou a reversão dos bens, conforme o caso, em favor da pessoa jurídica prejudicada pelo ilícito”.

O texto legal refere-se a ação civil de reparação de dano. O legislador, ao elaborar as normas processuais de repressão ao ato de improbidade administrativa, esqueceu que nem toda conduta tipificada importa em prejuízo ao patrimônio público ou enriquecimento do agente público desonesto. Tanto é que o art. 21 dispõe que “a aplicação das sanções previstas nesta lei independe da efetiva ocorrência de dano ao patrimônio público”.

Daí a grande dúvida na habitual utilização pelo Ministério Público da ação civil pública, regulada pela Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, destinada a promover a responsabilização por danos morais e patrimoniais causados: ao meio ambiente; ao consumidor; a bens e direitos de valor artístico, histórico, turístico e paisagístico; a qualquer outro interesse difuso ou coletivo, e por infração da ordem econômica (art. 1º). Essa ação civil pública tem por objeto a condenação em dinheiro ou cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer. Pode ser proposta ação cautelar, bem como, pode o juiz no bojo da ação principal conceder mandado liminar, com ou sem justificativa prévia (art. 12).

A invocação dessa lei permitiria o afastamento temporário do agente público acusado, por meio de uma liminar no processo cautelar, ou no bojo da própria ação principal, enquanto que a lei que define a improbidade administrativa só permite esse afastamento como garantia da regular instrução processual. O periculum in mora está restrito ao âmbito processual.

A dúvida quanto a possibilidade de o Ministério Público ingressar com ação civil pública, regulada pela Lei nº 7.347/85, para promover a responsabilização do agente público por ato de improbidade administrativa se agiganta quando examinada à luz do art. 129, inciso III da CF, que considera como função institucional do Ministério Público “promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”.

Ora, a Lei nº 4.729/92 não tem por objetivo imediato coibir dano ao patrimônio público, tanto é que o já citado art. 21 despreza a ocorrência desse dano para a responsabilização do agente público improbo. O objetivo maior da lei é proteger a probidade na administração pública. Para coibir ato ilegal e lesivo ao patrimônio público existe a ação popular. E, também, não se pode afirmar que medidas contra a improbidade administrativa insere-se no âmbito do interesse difuso ou coletivo de que trata o inciso IV do art. 1ª da Lei nº 7.342/85, acrescentado pelo art. 110 do Código de Defesa do Consumidor que, como se não bastasse a originária heterogeneidade de suas normas, vem sofrendo enxertos que o transforma em uma espécie de “Código Geral”.

Em suma, parece-nos inviável o ajuizamento de ação civil pública para a responsabilização do agente público acusado da prática de ato de improbidade administrativa.

Quando essa ação for promovida, por exemplo, contra membro de Poder, legitimamente eleito pelo povo, uma liminar fulminante afastando, ainda que temporariamente, o agente político das atribuições do cargo atenta contra o princípio maior da segurança jurídica. De fato, a autoridade afastada pode retornar ao cargo por meio de agravo de instrumento que dê efeito suspensivo; outrossim, esse efeito suspensivo pode ser invalidado por meio de agravo regimental, hipótese em que o agente político ficará novamente afastado de suas atribuições. Governa um dia e descansa outro dia, ao sabor das decisões judiciais que não examinam o mérito da ação, acarretando sucessivas providências administrativas para empossamento do agente político substituto É claro que tudo isso iria tumultuar a administração pública gerando clima de insegurança jurídica. Imagine-se a hipótese de um servidor público graduado, que foi nomeado no dia em que o agente público que o nomeou foi afastado de suas funções. O ato é válido? Como ficam os atos praticados por esse servidor graduado?

E mais, parece-nos, que o afastamento liminar, no caso, violaria o princípio da independência e harmonia dos Poderes de que falamos no início deste artigo. A perda da função pública ou a suspensão dos direitos políticos só podem ocorrer com o trânsito em julgado da decisão judicial condenatória. Lei alguma confere ao juiz singular o poder de afastar, liminarmente, o governante eleito de suas atribuições normais, porque isso, além de gerar insegurança jurídica, afrontaria o princípio federativo apontado.

Quando um governante perder a legitimidade do mandato, por atentar contra a probidade na administração, cabe à Casa Legislativa, depositária da vontade popular, cassar o mandato outorgado pelo povo (art. 4º, V da Lei nº 1079/50 e art. 73, IV, letra d da LOMSP).

* Kiyoshi Harada
Advogado, diretor da Escola Paulista de Advocacia, professor de Direito Financeiro, Tributário e Administrativo, ex-procurador-chefe da Consultoria Jurídica da Prefeitura de São Paulo.

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