Por Alessandro Izzo Coria
Capacidade postulatória, segundo Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery, deve ser entendida como a aptidão para promover ações judiciais e elaborar defesas em juízo (Código de Processo Civil Interpretado, Revista dos Tribunais, 10ª edição, 2007, p. 241).
Para Humberto Theodoro Júnior é “ a aptidão para realizar atos do processo de maneira eficaz.” (Curso de Direito Processual Civil, Editora Forense, v. I, 39ª edição, p. 91).
Ensina José Roberto dos Santos Bedaque que capacidade postulatória é “… a necessidade de a parte atuar no processo por intermédio de representante com habilitação técnica para a prática de atos processuais.” (Código de Processo Civil Interpretado, Coordenador Antonio Carlos Marcato, Editora Atlas,2004, p. 131)
Fundamentos e razões da capacidade postulatória institucional
Além dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil, que recebem a denominação de advogados, por força do artigo 3º do Estatuto da OAB, tem capacidade postulatória de índole constitucional e infraconstitucional, a Defensoria Pública como instituição, exercida através de seus membros, como meros órgãos de execução, assim definidos pela Lei Orgânica Nacional, podendo ser chamada de capacidade postulatória institucional, ao lado da capacidade individual.
Inicialmente, devemos salientar que a Constituição Federal no Capítulo IV, do Título IV, que cuida das funções essenciais à justiça, é dividida pelas seções I, II e III, tratando do Ministério Público, da Advocacia Pública, e da Advocacia e da Defensoria Pública, respectivamente.
O primeiro aspecto constitucional a ser notado, é que a Carta da República, no artigo 134, ao tratar a Defensoria Pública, se refere à instituição, semelhantemente ao dispositivo que fala do Ministério Público.
Verbis:
“Artigo. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.” (grifos nossos)
Daí já se permite concluir que os membros da Defensoria estão autorizados a postular em juízo pelas pessoas naturais e pessoas jurídicas de direito privado, independente de qualquer requisito, pois, quem as representa não são seus membros, mas a própria instituição.
Negar isso é impedir que a instituição cumpra sua missão constitucional.
Ademais, não é crível que a Lei Maior conceba uma instituição e, somente por uma lei infraconstitucional – OAB -, seja ela autorizada a estar em juízo em razão da permissão dos seus membros.
Acrescente-se que, como a Defensoria Pública, também tem capacidade postulatória institucional, o Ministério Público.
Os membros do Parquet postulam em juízo sem inscrição na OAB, cumprindo as funções institucionais porque a constituição assim autoriza.
No entanto, frise-se que tal assertiva não tem a pretensão de colocar o Ministério Público e a Defensoria Pública em pé de igualdade, os quais têm funções completamente distintas. Todavia, em ambas, seus membros postulam em juízo, com a diferença que o primeiro defende o interesse da sociedade, ou seja, o interesse público, e a segunda o interesse das pessoas naturais e das pessoas jurídicas de direito privado.
Para corroborar essa ideia de que o Defensor Público não precisa de inscrição na OAB, pois sua capacidade postulatória decorre da capacidade postulatória da instituição conferida pela constituição, devemos lembrar que o EOAB somente foi aprovado em 1994, e, até então, ou seja, de 1988, promulgação da constituição, a 1994, início da vigência do novo estatuto, os defensores públicos postulavam em juízo sem inscrição na OAB, porquanto o estatuto anterior não possuía qualquer exigência nesse sentido.
No entanto, desnecessariamente, o parágrafo 1º, do artigo 3º, do EOAB impôs a inscrição dos órgãos de execução da Defensoria Pública, da Advocacia-Geral da União, Procuradores dos Estados e Municípios, com exceção do Ministério Público.
Não se nega a indispensabilidade do advogado na administração da justiça prevista no artigo 133 da Lei Maior. Mas tal condição não autoriza a afirmar que, pela Constituição Federal, somente ele pode postular em juízo, visto que ao lado dele existem as instituições constitucionais que também o fazem.
O Supremo Tribunal Federal, por outro lado, demonstrou que não há monopólio da OAB para postular em juízo na Adin nº. 1.127-8, que trata do inciso I do artigo 1º do EOAB, garantindo a postulação em juízo sem advogado nos juizados especiais e na impetração de Habeas Corpus.
Também não podemos deixar de lembrar que a Defensoria Pública, por força do artigo 3º, da Lei Complementar Federal nº. 80/94 tem como princípios institucionais, a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional, e, seus membros, com fundamento nos artigos 43, inciso XI, 89, inciso XI, e artigo 128, inciso X (Defensoria da União, do Distrito Federal e dos Estados, respectivamente), estão dispensados de atuar sem instrumento de mandato.
Com base nesses dispositivos, igualmente, podemos assentar que a Defensoria Pública é quem representa os hipossuficientes, pois é a instituição incumbida da prestação da assistência jurídica, do contrário, nas férias, licenças e afastamentos de seus membros, nenhum outro daquele que iniciou a atuação poderia se manifestar nos autos.
Porém, para corrigir a questão da capacidade postulatória dos Defensores Públicos, que na verdade é da instituição por força constitucional, assim como para adequação da autonomia administrativa e funcional, foi introduzido o parágrafo 6º, no artigo 4º, na lei complementar supracitada, o qual preceitua que a capacidade postulatória do Defensor Público resulta, exclusivamente, da nomeação e posse no cargo, revogando, assim, tacitamente (LINDB – Art. 2o ….§ 1o A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior), o EOAB em relação aos Defensores Públicos. De mais a mais, o advérbio exclusivamente deixa claro o afastamento de qualquer outro requisito para o Defensor postular em juízo que não seja nomeação e posse no cargo.
Complementa o dispositivo supramencionado o parágrafo 9º do artigo 4º, o qual preceitua que o exercício do cargo de Defensor Público é comprovado mediante apresentação de carteira funcional expedida pela respectiva Defensoria Pública, conforme modelo previsto nesta Lei Complementar, a qual valerá como documento de identidade e terá fé pública em todo o território nacional.
Cumpre dizer que essas alterações legislativas também corrigem algumas incongruências causadas pelo dispositivo do EOAB que obrigava a inscrição dos Defensores Públicos naquela autarquia:
1º) Em primeiro lugar, a inscrição do Defensor Público numa autarquia fiscalizadora afronta a autonomia administrativa e funcional da Defensoria Pública, prevista no artigo 134, § 2º, da Constituição Federal.
Como é cediço, autonomia funcional tem por objetivo permitir que a instituição que a detém seja livre para o exercício de suas funções sem sofrer influência – pressão – de qualquer Poder, instituição, ou órgão do Estado (administração direita ou indireta).
Acrescente-se que a autonomia funcional se comunica aos membros da instituição, visto que estes atuam em nome dela.
Nesse sentido é a lição de José Afonso da Silva ao comentar o artigo 134: “Assim é que, por autonomia funcional se entende o exercício de suas funções livre de ingerência de qualquer outro órgão do Estado. É predicativo institucional, tanto que se poderia falar – e às vezes se fala – autonomia institucional, mas ela se comunica aos membros da Instituição, porque suas atividades-fim se realizam por meio deles. Assim, eles compartilham dessa autonomia institucional, porque não tem que aceitar interferência de autoridades ou órgãos de outro Poder no exercício de suas funções institucionais.” (Comentário Contextual à Constituição, Editora Malheiros, 3ª edição, 2007, p.615)
Também sobre a autonomia funcional esclarece Alexandre de Moraes, citando Pedro Roberto Decomain, ao comentar a prerrogativa em relação ao Ministério Público: “O órgão do Ministério Público é independente no exercício de suas funções, não ficando sujeito às ordens de quem quer que seja, somente devendo prestar contas de seus atos à Constituição, às leis e à sua consciência.” (Direito Constitucional, Atlas, 15ª edição, 2004,p. 518)
Portanto, se a autonomia funcional da instituição, estendida a seus membros – órgão de execução – na forma de independência funcional, confere a liberdade em relação a terceiros, por conseqüência, a vinculação deles à Ordem dos Advogados, entidade estranha à Defensoria, permitindo a interferência através da ameaça de processo administrativo no Tribunal de Ética, viola a mencionada autonomia. Desse modo, não pode o Defensor Público estar ligado àquela autarquia.
No que tange a autonomia administrativa, esta, por sua vez, primeiramente, garante à Defensoria, dentre outras coisas, fiscalizar a atividade de seus membros.
Mais uma vez nos socorremos da lição de José Afonso da Silva ao interpretar o §2º, do artigo 134 da Carta da República:
“A autonomia administrativa significa que cabe à instituição organizar sua administração, suas unidades administrativas, praticar atos de gestão, decidir sobre a situação funcional de seu pessoal, propor ao Poder Legislativo a criação e a extinção de seus serviços auxiliares, prover cargos nos termos da lei, estabelecer a política remuneratória, observado o art. 169, e os planos de carreira de seu pessoal, tal como está previsto para o Ministério Público. Já que o conceito é idêntico, seu conteúdo também há de sê-lo.” (Comentário Contextual à Constituição, Editora Malheiros, 3ª edição, 2007, p.615/616)
Por conseguinte, pode-se afirmar que a fiscalização da atividade do Defensor Público pela OAB desrespeita a autonomia administrativa prevista na Constituição.
2º) O artigo 30 do Estatuto da Advocacia preconiza o impedimento do exercício da advocacia pelos servidores contra a Fazenda Pública que lhes paga seus proventos.
Confira-se:
“Art. 30 – São impedidos de exercer a advocacia:
I- os servidores da administração direta, indireta ou fundacional, contra a Fazenda Pública que os remunere ou à qual seja vinculada a entidade empregadora:
Desse modo, sendo o Defensor Público um servidor da administração, e, exercitante da advocacia, como quer o EOAB, está impedido de propor qualquer ação contra o Estado de São Paulo.
Por seu turno, a Lei Complementar Federal nº. 80/94, no artigo 4º, § 2º, enfatiza que a Defensoria Pública atuará inclusive contra as Pessoas Jurídicas de Direito Público.
Frise-se que o artigo 34, inciso I, o Estatuto da OAB assim dispõe:
“Art. 34 – Constitui infração disciplinar:
I- exercer a profissão, quando impedido de fazê-lo, ou facilitar, por qualquer meio, o seu exercício aos não inscritos, proibidos ou impedidos;”
Assim sendo, chega-se a conclusão que em cada ação proposta pelo Defensor Público contra o Estado estaria configurada uma infração administrativa.
3º) Como ensina a doutrina, o servidor público, pelos atos que pratica, poderá sofrer sanções no âmbito administrativo, penal e civil.
Essa é a doutrina de Maria Sylvia Zanella De Pietro:
“O servidor público sujeita-se à responsabilidade civil, penal e administrativa decorrente do exercício do cargo, emprego ou função. Por outra palavras, ele pode praticar atos ilícitos no âmbito civil, penal e administrativo.”
Prossegue a professora:
“O servidor responde administrativamente pelos ilícitos administrativamente definidos na legislação estatutária e que apresentam os mesmos elementos básicos do ilícito civil: ação ou omissão contrária à lei, culpa ou dolo e dano. Nesse caso, a infração será apurada pela própria Administração Pública, que deverá instaurar procedimento adequado a esse fim, assegurado ao servidor o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, nos termos do artigo 5º, inciso LV, da Constituição.” (Direito Administrativo, 14ª edição, 2002, P. 494 e 496)
No entanto, sendo o Defensor Público inscrito na OAB, em tese, está sujeito à jurisdição do Tribunal de Ética e Disciplina da autarquia.
Assim, a mencionada sujeição que permite, por conseqüência, a punição por aquela autarquia, assim como pela Corregedoria da Defensoria, também causa “bis in idem”, ou seja, o Defensor Público poderá ser punido pelo mesmo fato duas vezes.
Sem a vinculação do Defensor Público à OAB não haverá dupla punição.
4º) Por fim, se, de fato, o Defensor tivesse que ser inscrito na OAB e se praticasse a advocacia, chegaremos ao absurdo do Defensor Público, ocupante de cargo público, remunerado pela fazenda estadual, proibido de exercer a advocacia pela Constituição Federal, ter que pagar o Imposto sobre Serviço, de acordo com o que preceitua a lista de serviços da Lei Complementar Federal n.º 116/03, pois, em tese, pratica o fato gerador daquele tributo:
Art. 1º O Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador.
Lista de serviços anexa à Lei Complementar nº 116, de 31 de julho de 2003.
17 – Serviços de apoio técnico, administrativo, jurídico, contábil, comercial e congêneres.
17.01 – …
17.14 – Advocacia.
17.15 – …
Sendo a capacidade postulatória da Defensoria Pública, a prática de atos pelo Defensor não gera o débito do imposto, pois o faz em nome da instituição que é a responsável pela prestação da assistência jurídica, que, por sua vez, de acordo com a Constituição Federal, artigo 150, inciso I, é imune.
Conclusão
Dessa forma, o que se pretende mostrar é que há instituições, por força constitucional e através de seus órgãos de execução, aptas a postularem em juízo independentemente de seus membros estarem inscritos na OAB, até porque, a constituição não assegura em nenhum momento a exclusividade dos inscritos naquela autarquia, podendo dizer, então, que existem duas espécies de capacidade postulatória: a institucional, da Defensoria Pública e do Ministério Público, e a individual, dos advogados.