Por José Miguel Garcia Medina e Alexandre Freire
O sistema de controle de constitucionalidade das leis apresenta dimensões concreta e abstrata. A experiência constitucional brasileira recepcionou o sistema misto, compreendendo as duas possibilidades.
Trata-se técnica mais complexa e sofisticada, mediante a qual a fiscalização dos atos emanados dos poderes públicos redunda na produção de efeitos de natureza individual e contra todos.
Em consonância com a Constituição Federal de 1988, o controle de normas incide sobre lei ou ato normativo federal ou estadual. O processo de fiscalização abstrata de constitucionalidade é marcadamente objetivo, não comportando partes, litisconsórcio ou assistência, em atenção ao princípio da acessibilidade limitada. Não admite, identicamente, fase probatória, ante a discussão de matéria estritamente de direito. Porém, a despeito disso, com a edição da Lei 9.868/99, foram inseridos alguns institutos outrora estranhos ao controle objetivo de constitucionalidade, tais como o amicus curiae e a audiência pública para a manifestação experts acerca de temas técnicos de alta indagação. Esses institutos, sucessivamente, possuem o objetivo de conferir maior legitimidade democrática e técnica às decisões proferidas pela Suprema Corte no controle abstrato de constitucionalidade.
Extraído da experiência americana, o amicus curie permite que entidades representativas possam levar novos argumentos para o debate a ser travado na Corte, auxiliando-a, não consistindo sua participação, em princípio, em assunção de posição a favor ou contra a tese levantada pelo legitimado que provocar a jurisdição constitucional. Por sua vez, a audiência pública consiste na convocação de pessoas com experiência e autoridade na matéria tratada, objetivando esclarecer questões técnicas, administrativas, políticas, econômicas e jurídicas — nesse sentido, conforme o que afirmou o ministro Gilmar Ferreira Mendes no despacho de convocação da audiência pública para discutir o Sistema Único de Saúde (SUS), datado de 05 de março de 2009.
Já tivemos, na história do STF, exemplos marcantes.
Em 05 de março de 2005, foi sancionada a Lei 11.105 — Lei Nacional de Biossegurança. Esse diploma normativo liberou as pesquisas com células-tronco embrionárias. Todavia, o uso de embriões foi condicionado à atenção a certos limites, tais como: permissão tão-somente para o uso de células-tronco de embriões excedentes dos processos de fertilização in vitro, limitando-se, apenas, àqueles casos que se mostrem inviáveis para reprodução ou se estiverem congelados há pelo menos três anos. O texto legal impede, ainda, a clonagem de embriões que, na teoria, possam gerar células e tecidos feitos sob medida para tratar um indivíduo.
Em maio de 2005, o então Procurador-geral da República, Cláudio Lemos Fonteles ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3510-0, questionando a constitucionalidade do artigo 5º da Lei 11.105/05. Sustentou-se, naquela ocasião, que o referido artigo violaria a dignidade da pessoa humana e o direito fundamental a vida.
Em decisão de 19 de dezembro de 2006, proferida pelo ministro relator Carlos Ayres Britto, convocou-se, diante da saliente importância da matéria, a primeira audiência pública da história do Supremo Tribunal Federal. Desta iniciativa, compareceram 22 cientistas para debater, entre outras questões, quando a vida se iniciava.
De acordo como a decisão do ministro relator, a adequação da convocação amparou-se na possibilidade de maior participação da sociedade civil, assim como no fortalecimento da legitimidade da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal. O ministro Carlos Ayres Britto fundou sua decisão no §1º do artigo 9º da Lei 9.868/99, que possibilita, em casos de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória insuficiência das informações existentes nos autos, ao relator requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou fixar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria.
Depreende-se, a partir do teor da decisão do ministro relator Carlos Ayres Britto, que a audiência pública, concebida como instrumento técnico, nos termos do § 1º do artigo 9º da Lei 9.868/99, para esclarecimento de matéria controvertida que se encontre além dos conhecimentos jurídicos dos Ministros, tornou-se um instrumento de ampliação da legitimidade popular das decisões proferidas pela Suprema Corte. Por ocasião da manifestação dos experts, o ministro relator, deixando transparecer essa conotação, enfatizou que a audiência pública deslocou “quem está na platéia, habitualmente, para o palco das decisões coletivas”. O ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo à época, foi além ao afirmar que o instrumento fez do Supremo Tribunal Federal “uma casa do Povo, tal qual o Parlamento”.
Percebe-se que as razões que embasaram a realização da audiência pública pelo Supremo Tribunal Federal são estranhas àquelas exigidas pelo §1º do artigo 9º da Lei 9.868/99. Da análise dos votos disponibilizados no sitio do Supremo Tribunal Federal, extrai-se que nem todos os ministros levaram em consideração as manifestações técnicas dos cientistas convocados. Porém, não se pode ignorar que a maioria dos julgadores embasou seus votos direta ou indiretamente nas discussões travadas durante a audiência pública. É bem verdade que muitos argumentos importantes não foram levados em consideração, ou por desatenção ou mesmo por descarte. No primeiro caso (desatenção), pode-se atribuir talvez como conseqüência natural da primeira experiência deste tipo de procedimento naquele Tribunal. No segundo (descarte), parece-nos que se está diante de algo mais grave, pois esta opção impõe a cada ministro que avançou em direção oposta ou colateral o ônus da argumentação.
Reputamos essa decisão como um excelente material de estudo, pelo ineditismo da audiência e o desfecho do julgado. Nas palavras do ministro Celso de Mello, “esse julgamento foi o mais importante da história do Supremo Tribunal Federal”, ante a importância do tema e a inovação da jurisdição constitucional.
Em que pese a riqueza dos votos proferidos, a erudição dos argumentos esgrimidos ao longo das sustentações orais dos amicus curiae, o que nos toca aqui é apenas a ideia de legitimidade conferida à decisão através da realização de audiência pública.
Algo semelhante está ocorrendo, no presente momento, no STF, em relação a outra ação direta de inconstitucionalidade. Em pronunciamento proferido em 26 de março de 2013, o ministro relator Luiz Fux convocou audiência pública a ser realizada na ADI 4.650, relativa ao financiamento de campanhas. Segundo afirmou o ministro relator Luiz Fux (conforme notícia veiculada no site do STF), a audiência pública confere “legitimidade democrática” à decisão a ser proferida pelo STF. Afirmou ainda o ministro, segundo a mesma nota, que “para que o povo tenha confiança na decisão que vamos proferir é preciso que nós também ouçamos as vozes sociais, quando essas decisões não perpassam apenas por um critério meramente jurídico”, e que é importante que o STF “preste contas à sociedade e que a decisão seja o quanto possível representativa da expectativa popular”.
Vê-se que a prática iniciada por ocasião do julgamento da ADI 3.510 se sedimentou, no Supremo Tribunal Federal. As audiências públicas, embora destinadas a esclarecer questões técnicas, administrativas, políticas, econômicas e jurídicas, tornaram-se, de acordo com orientação hoje preponderante, no STF, instrumento de legitimidade, menos por força dos argumentos colhidos em tais audiências (muitas vezes desprezados, quando do julgamento da ação pelo STF), e mais por propiciar a participação de pessoas e entidades que, de algum modo, representariam a sociedade (ou os destinatários da decisão a ser proferida pelo STF) na criação da solução jurídica no processo de controle de constitucionalidade.
A audiência pública, assim, mais que instrumento de legitimidade técnica, torna-se, na prática constitucional brasileira, instrumento de legitimidade popular.
José Miguel Garcia Medina é advogado, presidente da Comissão Nacional de Acesso à Justiça do Conselho Federal da OAB, professor associado da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e professor titular da Universidade Paranaense. Doutor e mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP
Alexandre Freire é doutorando em Direito Processual Civil pela PUC-SP, mestre em Direito Constitucional pela UFPR, pesquisador do Núcleo de Processo Civil da PUC-SP, professor da pós-graduação em Direito Processual Civil da PUC-RJ, professor da Pós-graduação em Direito Processual Civil da USP (FDRP), professor da Escola Paulista de Direito-EPD, professor convidado da Associação dos Advogados do Estado de São Paulo-AASP, professor da Escola Superior de Advocacia da OAB-SP, membro do IBDP.