Damásio de Jesus
O aumento da criminalidade no Brasil é assustador. Só na capital de São Paulo, em 1998, houve 4.814 homicídios. Em 1999, ocorreram 5.418 homicídios, um aumento de 12% em relação a 1998, com uma média de 14 por dia. Em 2000, na capital, só em quatro dias, durante o fim de semana de 31 de março a 3 de abril, foram cometidos 72 homicídios. No primeiro trimestre de 2001 ocorreram 6.676 mortes dolosas (26% de aumento em relação ao mesmo período anterior).
No Estado de São Paulo, em 2001 tivemos a prática de 267 crimes de extorsão mediante seqüestro – foram 63 em 2000, um aumento de 324%; 11.327 homicídios dolosos e 495 latrocínios. Em 1999, no interior de São Paulo, o número total foi de 3.790 mortes causadas intencionalmente. É um dos mais altos índices de criminalidade do mundo E as pessoas presas no Brasil? Em 1992, havia 74 para cada 100 mil habitantes. Em 1993, 81. Em 1994, 81. Em 1995, 92. Em 1996, 90. Em 1997, 102. Em 1998, não há estatísticas. Em 1999, o total saltou para 113 pessoas presas por 100 mil habitantes. Em Bauru (SP), cidade de 260 mil habitantes, em 1992 havia 192 pessoas presas e, em 1999, 293.
O sistema prisional é um dos piores do mundo. Em 1992, o Brasil tinha 114 mil pessoas presas. Em 1999, elas já eram 192 mil. E, nessa época, qual era o número de vagas no sistema penitenciário? Somente 107 mil. Hoje, nossos presos passam de 200 mil.
A que se deve esse aumento da criminalidade?
Geralmente, põe-se a culpa no Código Penal, afirmando-se ser necessário sua reforma. Mas notem o seguinte: o País tem hoje uma das maiores legislações penais do mundo. Existe crime ou contravenção para tudo. Até há pouco tempo, dirigir sem carteira de habilitação era contravenção penal. Hoje, embora tenhamos um novo Código de Trânsito, que define exatamente esse delito, há ainda uma parte da jurisprudência afirmando que esse fato subsiste como infração penal – quando em outros países é um simples ilícito administrativo. No Brasil, se alguém tem um animal, um papagaio, por exemplo, que perturbe a vizinhança, está sujeito a ser penalmente condenado.
Até colocar um vaso de flores no parapeito da área externa do apartamento é contravenção penal. Existe lei para tudo: crimes hediondos, tortura, meio ambiente, lavagem de dinheiro, interceptação de comunicação telefônica, furto e roubo de automóvel, receptação habitual, remoção de órgãos, tráfico de crianças, porte de arma, tóxicos, trânsito, defesa do consumidor, crimes contra a ordem tributária, crime organizado, proteção de testemunhas e, tratando-se de menores, o Estatuto da Criança e do Adolescente descrevendo inúmeros delitos. E crimes graves, como homicídio qualificado, seqüestro para fins de extorsão e latrocínio, são considerados hediondos, com severas conseqüências penais.
Por que, com uma legislação tão abrangente, ocorre esse aumento da criminalidade? As razões são muitas. Mas, genericamente, podemos dizer, o motivo é muito simples: o sistema criminal não funciona, da polícia até a execução da pena.
Além disso, há a confusão legislativa. Não é raro um ex-aluno meu telefonar perguntando qual é a lei aplicável a determinado fato. Não é difícil, também, um juiz de Direito, um membro do Ministério Público ou um delegado de polícia telefonar e dizer: “Não sabemos o que fazer!”. Há uma confusão tão grande com relação à legislação que eles acabam tendo dificuldades em aplicá-la. Ninguém mais sabe o que está em vigor. Essa situação leva não a uma sensação, mas à certeza da existência de impunidade no nosso sistema penal, porque ele não é sério, efetivo, eficiente e, conseqüentemente, não funciona.
Faz dezenas de anos que estamos recomendando: é necessário um pacto social entre os níveis federal, estadual, municipal e a comunidade para tratarmos do problema com seriedade, coisa que ninguém parece querer. É necessário pôr a polícia na rua e aparelhar a Justiça Criminal. Estamos cansados de visitar juízes de Direito que não têm nem computador adquirido pelo Estado; delegacias de polícia em que o delegado diz: “Não tenho combustível. Se a vítima de furto quiser uma diligência, ela tem de ir com o motorista até o posto de gasolina para encher o tanque da viatura”.
O Direito Penal desemboca na cadeia. Se ela não é segura, não adianta alterar um milhão de vezes a legislação penal. Nem agravar as penas. Nem instituir a prisão perpétua.
Nas discussões e propostas referentes à prevenção da criminalidade, nota-se claramente a presença de dois grupos antagônicos. O primeiro deles é o denominado Movimento de Lei e Ordem. Seus adeptos postulam penas altas – quando não a própria pena capital – para os delitos mais graves e repressão policial intensa à criminalidade. Seu grande modelo é o adotado em Nova York pelo então prefeito Rudolph Giuliani, com a sua política de “tolerância zero”, que, sem dúvida, reduziu substancialmente a criminalidade naquela cidade. Ocorre que a tolerância zero estava agregada a um estupendo progresso da base da própria economia norte-americana, o que muito concorreu para o sucesso do programa.
Sob outro aspecto, surge o chamado “grupo dos direitos humanos”.
Estigmatizado por parte da mídia por “defender bandidos”, na verdade propõe um entendimento da prática do crime a partir de uma visão eminentemente social, justificando-o a partir da ausência de políticas públicas e das inevitáveis demandas que elas passam a apresentar, como a carência de saúde e educação, além da péssima distribuição de renda. Entendemos que a discussão extrapola o simplismo sociológico de querer atribuir a responsabilidade apenas aos órgãos dirigentes da coletividade, já que envolve todos os seus membros.
Acreditamos que numa discussão que demanda tantas considerações não se pode, sectariamente, restringir o debate a um ou outro ponto de vista, sob pena de se pauperizar o próprio parecer. Ressaltamos que todas as medidas que forem tomadas em prol da melhoria das condições de segurança da população só surtirão efeito se acompanhadas de ações de alcance social. É incontestável que medidas estritamente de segurança pública sem uma política social de geração de empregos, de lazer, de alimentação e estudo estão fadadas ao fracasso. Quando muito, atuarão na superfície, cosmeticamente, por breves instantes. O enfrentamento da epidemia da violência há que ser estrutural, e não momentâneo ou ao sabor apenas de acontecimentos dramáticos como os que ocorreram nos últimos dias.
Não cremos acertado, por fim, um rígido planejamento centralizado de prevenção da violência, uma vez que cada região tem uma peculiaridade criminal e, por conseguinte, a respectiva polícia. Quando muito, as esferas administrativas superiores podem fornecer apoio financeiro e estratégico, mas não podem forçar a adoção de uma política só, para o País todo. Cada local precisa identificar suas peculiaridades criminais, por assim dizer, e preveni-las.
Publicado em O Estado de S. Paulo – 29.1.2002 – Espaço Aberto
“Fundado em sua extensa experiência e conhecimento do assunto, o Professor Damásio de Jesus nos presenteia com uma aula completa sobre as causas e soluções para os problemas da violência e criminalidade no País. Quem conhece a obra dele não se surpreende.”
Publicado em O Estado de S. Paulo – 3.2.2002 – Fórum dos Leitores.