Autores: Jorge de Oliveira Vargas e David Willian Peixoto (*)
O Brasil todo foi pego de surpresa com o Decreto 9.101, de 20 de julho de 2017, pelo qual houve considerável aumento do preço dos combustíveis, através da alteração das alíquotas das contribuições para o PIS/Pasep e Cofins.
É possível, nos termos da nossa Constituição Federal o aumento de tributo através de decreto?
I – O princípio da legalidade tributária.
O artigo 150 da Constituição Federal que trata das limitações do poder de tributar, prevê, em seu inciso I, dentre outras garantias que é vedado à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça.
Por se tratar de uma garantia constitucional, o dispositivo deve receber a interpretação que lhe dê a maior eficácia possível, portanto, a vedação alcança tanto o aumento direto como o indireto.
O princípio da legalidade tributária tem sua origem na Magna Carta de João Sem Terra, de 1215, pela qual ficou previsto que o Monarca não poderia instituir tributos sem a autorização do Conselho Geral, ou seja, os tributos só poderiam ser instituídos com a autorização do Conselho. Desse preceito vem o célebre adágio “no taxation without representation” (nenhuma tributação sem representação), ou seja, que não se pode estabelecer mais tributos que os votados pelos representantes do povo. Esse é um dos princípios básicos do constitucionalismo moderno.[1]
Daí surge o princípio da auto tributação, que significa dizer que é o povo que auto se tributa, e o princípio da legalidade nada mais é do que o povo se tributando através de seus representantes.
Um retrocesso nesse sentido seria a volta de uma situação que ficou superada há mais de 800 anos.
O princípio da legalidade tributária, em nosso ordenamento jurídico, tem uma característica especial, é denominado princípio da estrita legalidade.
Pelo princípio da estrita legalidade, devem estar previstos na lei todos os critérios da norma jurídica tributária, quais sejam o material, temporal, espacial, contidos na hipótese de incidência, como o pessoal e o quantitativo, neste estando incluído a alíquota; contidos na consequência tributária.[2]
Como se vê, o princípio da legalidade, em direito tributário é mais rigoroso do que o princípio da legalidade em sentido lato, previsto no artigo 5º, II da CF, portanto, merece um cuidado todo especial, pois todos os requisitos para a instituição ou aumento de um tributo devem estar previstos em lei. Pelo princípio da estrita legalidade não é possível exigir-se ou aumentar-se um tributo com base na analogia. É o que se extrai do artigo 108, § 1º do Código Tributário Nacional. Assim como não há crime por analogia, não se pode exigir ou aumentar tributo invocando analogia.
II – Das exceções ao princípio da estrita legalidade.
A regra geral é a observância estrita do princípio da legalidade, inclusive para as contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como preceitua o artigo 149 da CF.
Todavia, a Constituição Federal traz algumas exceções a esse princípio, quais sejam:
a) Artigo 153 § 1º da CF: “É facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I [importação de produtos estrangeiros], II [exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados], IV [produtos industrializados] e V [operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários].” É o que se convencionou denominar de “legalidade aparente”.
b) A segunda exceção está contida no artigo 177, § 4º, I, “b” da CF, que se refere a contribuição de intervenção no domínio econômico (CIDE). Diz o texto constitucional: “A lei que instituir contribuição de intervenção no domínio econômico relativa às atividades de importação ou comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível deverá atender aos seguintes requisitos: I – a alíquota da contribuição poderá ser: a) diferenciada por produto ou uso; b) reduzida e estabelecida por ato do Poder Executivo, não se lhe aplicando o disposto no artigo 150, III, b;
c) A terceira refere-se ao artigo 155, § 4º, IV da CF que permite aos Estados e Distrito Federal definir as alíquotas do ICMS monofásico incidente sobre combustíveis, através de convênio específico.
d) Ainda o artigo 97, § 2º do Código Tributário Nacional prevê que “não constitui majoração de tributo, para fins do disposto no inciso II deste artigo, a atualização do valor monetário da respectiva base de cálculo; e, finalmente,
e) Em caso de relevância e urgência, as medidas provisórias (artigo 62 § 2º da CF.)
Essas exceções devem ser interpretadas restritivamente, ou seja, não podem ser aplicadas por analogia. Não há exceção em relação as contribuições sociais PIS/Pasep e Cofins, ou seja, em relação a elas aplica-se, de forma irrestrita, o princípio da legalidade tributária.
III – Dos tributos sobre os combustíveis.
Incidem sobre os combustíveis o ICMS, a contribuição de intervenção no domínio econômico (CIDE), e as contribuições sociais PIS/Pasep e Cofins.
O ICMS é um imposto estadual; as CIDE é uma contribuição de intervenção no domínio econômico. Já a Cofins é uma contribuição para o financiamento da seguridade social, prevista no artigo 195, I, b da CF. e o PIS/Pasep é uma contribuição social para financiar o programa do seguro-desemprego e o abono de que trata o § 3º do artigo 239 da CF.
Não se confunde a CIDE, que foi instituída com a finalidade de assegurar um montante mínimo de recursos para investimento em infraestrutura de transporte, em projetos ambientais relacionados à indústria do petróleo e gás, e em subsídios ao transporte de álcool combustível, de gás natural e derivados, e de petróleo e derivados, com as contribuições sociais
Não há, portanto, de aplicar-se a exceção prevista para a CIDE, no artigo 177, § 4º, I, “b” da CF, para as contribuições sociais PIS/Pasep e Cofins, pois as exceções, como já se disse, devem ser interpretadas restritivamente.
IV – Das Leis 9.718, de 27 de novembro de 1988 e 10.865, de 30 de abril de 2004.
Ambas as leis tratam das contribuições sociais mencionadas e trazem, em seu bojo, nos artigos 5º § 8º e 27 § 2º, a faculdade do Poder Executivo reduzir e restabelecer as respectivas alíquotas. Entretanto essa faculdade não tem amparo constitucional, portanto, é inválida, pois toda a norma que não está em harmonia com a Constituição Federal é de nenhum valor.
Cabe aqui relembrar o disposto no artigo 3º, 3 da Constituição de Portugal, nossa “constituição mãe”, que diz: a validade das leis e dos demais atos do Estado, das regiões autónomas, do poder local e de quaisquer outras entidades públicas depende da sua conformidade com a Constituição.
Por outro lado, não se sustenta o argumento de que não se trata de uma majoração tributária por decreto, eis que houve apenas uma revogação de benefício. É evidente que houve um aumento da carga tributária e esse aumento, ainda que seja de forma indireta, exige a observância do princípio da legalidade.
V – Da jurisprudência.
O Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral da matéria no Recurso Extraordinário 986.296 Paraná, da relatoria do ministro Dias Toffoli.[3]
Em sua manifestação, disse o ministro:
É de se fixar orientação sobre a possibilidade de o artigo 27, § 2º, da Lei 10.865/2004 transferir a regulamento — portanto, a ato infralegal — a competência para reduzir e restabelecer as alíquotas da contribuição ao PIS e da Cofins. A matéria é similar à discutida na ADI 5.277/DF, de minha relatoria, de modo que entendo estarem presentes a densidade constitucional e a repercussão geral.
Diante do exposto, manifesto-me pela existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada, submetendo-a à apreciação dos demais Ministros desta Corte.
Brasília, 10 de fevereiro de 2017.
O argumento apresentado no acórdão recorrido, que entendeu pela não violação do princípio da legalidade, invoca argumentos que seriam aceitos, como já se disse, no caso da CIDE, e não em relação às contribuições sociais PIS/Pasep e Cofins.
Na ADI 5.277/DF, ainda não julgada, mas na qual o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, já emitiu parecer, do qual se destaca:
O princípio da legalidade tributária, por constituir direito fundamental do cidadão-contribuinte, somente pode ser restringido ou mitigado pela própria Constituição, ou por lei (com ou sem reservas), quando expressamente autorizada pelo texto constitucional.
O artigo 153, § 1º, da CR autoriza o Executivo, por ato próprio (infralegal), a alterar as alíquotas do imposto de importação (II), do imposto de exportação (IE), do imposto sobre produtos industrializados (IPI) e do imposto sobre operações financeiras (IOF). A autorização não é irrestrita e deve observar o elemento quantificativo da hipótese de incidência tributária estabelecido em lei. Embora possam ser alteradas as alíquotas dos impostos descritos no artigo 153, § 1º, da CR por ato infralegal do Executivo, cabe à lei descrever as alíquotas mínima e máxima desses tributos.
Há duas outras exceções ao princípio da legalidade tributária, introduzidas pela Emenda Constitucional 33, de 11 de dezembro de 2001: (i) redução ou restabelecimento, por ato infralegal, das alíquotas da CIDE-combustível fixadas em lei (CR, artigo 177 § 4º, I, b) e (ii) definição, redução e restabelecimento de alíquotas do ICMS incidente em etapa única (monofásica) sobre combustíveis e lubrificantes definidos em lei complementar, mediante convênio interestadual (CR, artigo 155, § 2º, XII, h, e § 4º, IV, c).
….
São taxativas as hipóteses constitucionais que excepcionam do princípio da legalidade estrita a alteração das alíquotas definidas em lei, não justificando inobservância delas nem mesmo a extrafiscalidade de certos tributos.
Esclarece Roque Antonio Carraza:
Resta evidente, portanto, que o Executivo não poderá apontar — nem mesmo por delegação legislativa — nenhum aspecto essencial da norma jurídica tributária, sob pena de flagrante inconstitucionalidade.
Não discrepa desta linha Paulo de Barros Carvalho: “Assinale-se que à lei instituidora do gravame é vedado deferir atribuições legais a normas de inferior hierarquia, devendo, ela mesma, desenhar a plenitude da regra matriz da exação, motivo por que é inconstitucional certa prática, cediça no ordenamento brasileiro, e consistente na delegação de poderes para que órgãos da administração completem o perfil dos tributos.”[4]
Na sequência, conclui que:
O artigo 5º, §§ 8º a 11, da Lei 9.718, de 27 de novembro de 1998, incluídos pela Lei 11.727, de 23 de junho de 2008, violou o princípio da legalidade tributária e opina pela procedência do pedido.
Essa manifestação do procurador-geral da República não deixa dúvidas a respeito da inconstitucionalidade da alteração da alíquota, por decreto, das mencionadas contribuições sociais, uma vez que o constituinte a isso não autorizou o Poder Executivo.
VI – Conclusões
a) O princípio da legalidade remonta à Carta Magna de 1215.
b) Foi consagrado na Declaração de Direitos, do ano de 1789 e atualmente vem estampado em praticamente todas as cartas Políticas existentes.
c) O princípio da legalidade, inserido no artigo 150, I da Constituição Federal, refere-se à legalidade estrita, pela qual todos os elementos que compõem a norma jurídica tributária devem estar expressos da lei, inclusive a alíquota.
d) O princípio da legalidade é um direito fundamental.
e) O princípio da legalidade comporta algumas exceções, previstas na Constituição nos artigos 153, § 1º, 177, § 4º, I, b e 155, § 2º, XII, h, e § 4º, IV, c, mas nenhuma delas se refere às contribuições sociais PIS-Pasep e Cofins.
f) Em direito tributário não se aplica a analogia para instituir ou aumentar tributos.
g) As exceções ao princípio da legalidade tributária são só aquelas previstas na Constituição Federal.
h) A alteração das alíquotas das contribuições sociais PIS-Pasep e Cofins, por decreto, é inconstitucional.
Autores: Jorge de Oliveira Vargas é desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná; mestre e doutor em Direito Público pela Universidade Federal do Paraná; professor da UTP, Unibrasil, Opet, Emap e membro da Academia Paranaense de Letras jurídicas.
David Willian Peixoto é acadêmico de Direito na UTP, monitor e assessor no TJ-PR.