Autor: Pierpaolo Cruz Bottini (*)
Escrever sobre a importância do direito de defesa é daquelas tarefas penosas, porque se faz impossível sem um certo grau de desnudamento, de exposição dos próprios sentimentos em relação à profissão, às relações sociais. Corre-se sempre o risco de um subjetivismo exagerado, ou de uma autoindulgência excessiva. Mas tentemos.
1. Da defesa como dever
O direito de defesa é tema de diversos debates. Discorre-se sobre seu conceito material, seus desdobramentos processuais, seu marco institucional e limites. Organizam-se seminários no Congresso Nacional e reflexões nas salas de aula, com relevantes exposições sobre o papel do advogado, do contraditório, e seu papel indispensável à Justiça. Mas, para aqueles que exercem a profissão, há algo mais. Longe dos holofotes e discursos, no dia a dia forense, existe aquela angústia natural e perene que acompanha o exercício da defesa, presente em cada frase escrita, em cada sustentação oral, em cada despacho judicial, que deriva da evidente sombra que paira sobre a liberdade de cada indivíduo investigado ou processado. Esse sentimento é conhecido e tolerável, porque inerente à atividade profissional.
Porém, o exercício da profissão se torna difícil quando setores da sociedade passam a identificar no advogado um empecilho à realização da Justiça. Para além da dificuldade de lidar com alguém com a liberdade ameaçada, o criminalista passa a enfrentar críticas daqueles que não compreendem a importância da defesa, que veem em sua atividade apenas um obstáculo indesejado à justa punição.
Não raro se ouve ou lê que o advogado “procrastina” ou “atrapalha”, com atos e pleitos inoportunos, dificultando a marcha processual. Surgem projetos e propostas para diminuir o número de recursos, estreitar o campo de defesa e impedir que artimanhas estratégicas anulem feitos e investigações.
Não se percebe que o “atrapalhar” talvez seja importante, talvez seja um ato ínsito e indissociável do Estado de Direito. O poder público dispõe de atribuições capazes de afetar a liberdade, a privacidade, o patrimônio do indivíduo. Tem amplos poderes para isso. E sempre que há poder há tendência ao excesso. O poder sem controle leva ao arbítrio, à exceção, ao abalo da legalidade. Por mais recursos que disponha o réu, sempre será um indivíduo contra o Estado, um cidadão contra a coletividade, enfim, uma relação desigual. Cumpre ao advogado, na defesa do acusado, “atrapalhar”, dificultar o exercício do poder, para mantê-lo dentro dos limites e parâmetros legais. Não se “atrapalha” a Justiça, mas o exercício do poder desmedido. A Justiça não decorre da aceitação automática das pretensões do Estado que acusa, mas da dialética, do embate entre imputação e defesa, que em pé de igualdade devem apresentar ao juiz suas razões.
O advogado que não “atrapalha”, que não usa de todos os recursos para dificultar o exercício do poder punitivo — sempre dentro dos limites éticos e legais —, merece reprovação, não apenas por violar uma relação de confiança com seu cliente, mas por dificultar a realização dessa Justiça, que só se alcança com o contraditório, decorrente de uma boa defesa.
2. Da morosidade do processo
Por outro lado, há quem sustente que o problema não está no advogado aguerrido, dedicado aos argumentos técnicos em defesa de seu cliente, mas naquele que procrastina, abusa dos recursos, adiando o termo do processo até a prescrição.
Em primeiro lugar, é lisonjeiro que nos atribuam tamanha capacidade e poder. Porém, é de se notar que um processo não demora pela atuação do advogado — que, talvez, dos operadores do Direito que intervém na relação, seja o que menos tem poderes sobre o tempo. Aberto um prazo à defesa, seu descumprimento acarreta preclusão ou perda de direitos processuais e materiais. Já os demais personagens processuais gozam de prazos impróprios, cuja inobservância não gera sanção. O tempo que os autos passam com advogados é curto, e sua retenção leva à busca e apreensão. Os recursos “abusivos” são sempre aqueles previstos em lei, uma vez que não é dado ao causídico criar incidentes ou remédios não indicados no ordenamento.
Uma análise da cronologia de um processo revela que a morosidade não decorre do exercício da defesa, mas dos tempos mortos, dos períodos em que os autos dormem aguardando alguma providência oficial. Trata-se do tempo que uma repartição leva para responder a ofícios, que o oficial de Justiça leva para executar atos, que o perito leva para realizar suas atividades, que o tribunal leva para distribuir recursos, que os autos permanecem conclusos nas mãos de autoridades ministeriais ou judiciais. Em suma, tempos do Estado, estranhos ao exercício da defesa.
Sabe-se que essa morosidade decorre do número de processos e da falta de estrutura. Juízes e promotores têm milhares de casos, oficiais de Justiça, inúmeras atribuições, e peritos, um sem número de requisições. Tais profissionais, apesar de exaustivo trabalho, encontram dificuldades em gerir suas atividades pela ausência de recursos materiais e humanos. Tudo isso é compreensível, menos que a culpa recaia sobre os advogados e o exercício da defesa.
Os prazos prescricionais são grandes, e se ocorre a extinção de punibilidade, é por absoluta ineficiência estatal. Tomemos um caso de corrupção passiva, cuja pena varia de 2 a 12 anos de prisão. Entre a consumação do crime e o recebimento da denúncia (início da ação penal), somente será extinta a punibilidade se passados 16 anos. Caso o agente seja condenado a uma moderada (4 anos), serão necessários mais oito anos entre o início da ação penal e a sentença. Mais oito anos serão necessários entre esta e o trânsito em julgado. Ora, são 32 anos para que o Estado finalize o processo. Por mais competente que seja o advogado, não há como protelar o julgamento por tanto tempo. Se ocorre a prescrição, ela deriva de uma disfuncionalidade do poder público.
Seja como for, há morosidade e prescrição, e esse estado de coisas deve ser alterado. Identificar as reais causas do fenômeno é o primeiro passo para uma mudança efetiva, que vá além das soluções cosméticas de ocasião, fáceis e ineficazes. Propostas como o aumento dos prazos prescricionais ou a criação jurisprudencial e ilegal de novos marcos interruptivos não resolvem o problema. Apenas liberam o Estado de suas responsabilidades, incentivando a perpetuação de processos, com todos os custos públicos e privados.
A superação da impunidade via prescrição exige a identificação dos tempos mortos dos processos e sua supressão via reformas administrativas. Algumas simples, como a ampliação das penhoras on-line, ou troca de informações eletrônicas entre órgãos públicos. Outras mais complexas, como a informatização do sistema processual, a adoção da intimação digital. Mas todas capazes de modernizar o processo sem afetar direitos e garantias.
Atos de racionalização de gestão de processos e cartórios são mais eficientes do que a grita contra os abusos da defesa. O advogado é o personagem com menor influência no tempo processual e não pode ser responsabilizado pelos efeitos deletérios de um modelo cartorial burocrático e ultrapassado.
3. Conclusão
Por fim, se existe esse mal-entendido sobre o papel do advogado e da defesa, a falha de comunicação também é nossa. Às vezes esquecemos de explicitar nosso papel, de apontar que o Estado tende a abusar de seu poder, que qualquer um pode ser acusado injustamente — ou justamente com excessos — e, nesses casos, o primeiro e último recurso será o advogado criminal. De explicar que em casos extremos, quando todos os dedos da polícia, mídia e outros apontam o cidadão, alguém deve estar ao seu lado, para defender sua versão dos fatos, imagem, e garantir um tratamento justo e legal para o caso.
Ausência de defesa é ausência de Justiça. É a consagração do justiceiro sobre o justo, da vingança sobre a razão. Thomas Jefferson dizia que o preço da democracia é a eterna vigilância. O preço do Estado de Direito é o mesmo. É a proteção perene da legalidade frente às propostas sedutoras de abandono do Direito em prol de uma pretensa segurança, que virá na forma de supressão de liberdades. É a defesa intransigente dos direitos de defesa de todos, até do acusado do mais hediondo crime. Mais vale conviver com a angústia de admitir culpados soltos do que com o medo de um Estado arbitrário, porque o indivíduo criminoso é mais tolerável do que um poder público sem limites. Há um preço: o respeito ao direito de defesa — um valor módico em troca do que se oferece em termos de liberdade e democracia.
*Artigo escrito para o livro A Importância do Direito de Defesa para a Democracia e a Cidadania, coordenado por Ives Gandra da Silva Martins e Marcos da Costa e editado pela OAB-SP.
Autor: Pierpaolo Cruz Bottini é advogado e professor de Direito Penal na USP. Foi membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e secretário de Reforma do Judiciário, ambos do Ministério da Justiça.