Autor: Edilson Santana Gonçalves Filho (*)
A clássica divisão de poderes sugerida por Montesquieu, formulada há quase três séculos, ainda está em voga hoje, embora com algumas atenuações. A exemplo disso, estabelece a Constituição Federal brasileira que são Poderes, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
A evolução da sociedade, especialmente quanto à sua complexidade, todavia, demonstra a necessidade avançarmos quanto à organização do Estado – o qual assumiu, também, obrigações no âmbito das relações sociais – sem malferir a cláusula pétrea da separação de poderes (Art. 60, §4º, II da CRFB), como, por exemplo, com a criação e previsão de órgãos autônomos, caso, no Brasil, do Ministério Público e da Defensoria Pública, o que, inclusive, vai ao encontro do próprio objetivo da separação dos poderes, qual seja, evitar abusos no exercício do poder (evitando sua concentração em uma autoridade) e proteger direitos (incialmente, relacionados às liberdades) dos governados.
Daniel Sarmento bem aborda o tema: “No atual cenário, a significativa mudança no papel do Estado, que passou a intervir mais fortemente no âmbito das relações sociais, ensejou uma releitura da separação de poderes. Por um lado, não há mais tamanha rigidez no que concerne à divisão das funções estatais. Admite-se, por exemplo, uma participação maior do Executivo e mesmo do Poder Judiciário no processo de produção do Direito. Por outro, se reconhece a possibilidade de que existam instituições independentes, que atuem fora do âmbito dos três poderes estatais tradicionais.
A não inclusão dessas instituições na estrutura dos três poderes estatais visa acima de tudo a lhes conferir a autonomia necessária para que possam desempenhar de modo adequado o seu papel. No Direito Comparado, isto ocorre em áreas variadas, como as que envolvem a persecução penal, a proteção de direitos humanos, o controle da integridade governamental, a realização e apuração de eleições e a tomada de decisões técnicas, que se queira blindar diante da política partidária (…)
Nesse contexto, pode-se dizer que os valores subjacentes à separação de poderes – de contenção da autoridade e garantia dos direitos – são promovidos, e não solapados, quando certas instituições que necessitam de independência para o desempenho das suas funções são retiradas da alçada do Poder Executivo, como se deu com a Defensoria Pública da União (…)
A ordem constitucional brasileira convive, sem problemas, com instituições independentes situadas fora dos três poderes estatais tradicionais. É assim, desde a promulgação da Carta, com o Ministério Público”. Nessa ordem de ideias vale observar não haver diferença entre a autonomia conferida pelo poder constituinte originário e por aquela introduzida pelo poder constituinte derivado.
Este último, responsável pelo exercício do poder de reforma, encontra limites – materiais e formais. O primeiro se revela nas cláusulas pétreas previstas no parágrafo 4º do artigo 60 da Constituição Federal, enquanto os limites formais se consubstanciam em questões procedimentais. Com a autoridade que lhe é conferida em razão de notável saber jurídico, Paulo Bonavides, sobre o poder constituinte derivado de reforma, escreve: “Não poderá ele sobrepor-se assim ao texto constitucional. É óbvio pois que a reforma da Constituição nessa última hipótese só se fará segundo os moldes estabelecidos pelo próprio figurino constitucional”.
Afora isso, a Carta Federal pode ser modicada, pelo rigoroso processo de Emenda Constitucional. Não há que se falar, portando, em maior ou menor grau da norma introduzida pelo constituinte originário ou derivado. Não havendo impedimento nos limites citados a alteração da Constituição é válida e a nova regra ou princípio tem o mesmo status constitucional daquele constante na Carta desde seu nascedouro, em 1988. Em outros termos, não há que se falar em norma constitucional (leia-se, autonomia) de segunda categoria.
À toda evidência, a ninguém interessa enfraquecer a República. Bem por isso, ao poder constituinte derivado cabe agir com parcimônia e responsabilidade, como o fez quando da aprovação das Emendas Constitucionais 45 e 74, que atribuíram autonomia às Defensorias Públicas dos Estados, do Distrito Federal e da União, guardando “compatibilidade com o desenvolvimento das finalidades da República de reduzir as desigualdades sociais, ao conferir solidez às condições orçamentárias e financeiras à Defensoria Pública”.
Não deve, assim, o constituinte, atribuir autonomia indiscriminadamente. É saudável que algumas instituições públicas permaneçam vinculadas diretamente, como órgãos, ao poder executivo, enquanto outras, a exemplo do Ministério Público e da Defensoria Pública, funções essenciais à Justiça, necessitam ser dotadas de autonomia e seus membros de independência funcional, para o correto desempenho de sua missão constitucional.
A Defensoria Pública é instituição voltada ao pleno acesso à justiça, e, como decorrência disso, à efetividade dos demais direitos fundamentais pelos mais necessitados e vulneráveis, historicamente excluídos. O Ministério Público, por sua vez, é incumbido da defesa da ordem jurídica e do regime democrático. Daí decorrem as razões para autonomia de tais instituições. São os mesmos motivos que levaram, também, a atribuir-se independência funcional a seus membros, que não raras vezes, na busca de cumprir seus deveres institucionais, contrariam interesses dos governantes e de grupos detentores de parcela do poder social, capazes de influenciar em questões políticas, como, por exemplo, a destinação de verbas para correta estruturação física e de pessoal das instituições públicas, valorização de seus membros etc.
A posição topológica na qual a Defensoria e o Ministério Público estão colocados na Constituição Federal evidencia isso. O Título IV (intitulado Da Organização dos Poderes) é formado por quatro capítulos. O primeiro (Capítulo I) trata do Poder Legislativo, o segundo (Capítulo II) do Poder Executivo e o terceiro (Capítulo III) do Poder Judiciário. A Defensoria e o Parquet encontram-se previstos fora dos capítulos I, II e III, que tratam dos Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), sendo inseridos no Capítulo IV (Das Funções Essenciais à Justiça), ainda dentro do Título IV, ao lado dos Poderes, mas em dispositivos apartados e específicos. Demais disso, a atribuição de autonomia a tais órgãos vai ao encontro do espírito da Constituição cidadã e dos princípios nela insculpidas.
Isso porque a autonomia é vital para esses órgãos. Sem ela o corpo institucional fica parcialmente paralisado, hiperdependente de fatores externos. Retirá-la de instituições como a Defensoria Pública ou o Ministério Público equivaleria a esfacelá-las, enfraquecendo-as ao ponto de impedir que alcancem a missão constitucional que lhes é atribuída, comprometendo, ao cabo, o gozo de direitos fundamentais por considerável parcela da população.
- MONTESQUIEU , Charles Louis de Secondat. O espírito das leis. 4. ed. São Paulo: Martins Editora, 2005.
2. Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário
3. Dimensões constitucionais da defensoria pública da união. Acesso em 25.10.2015.
4. Art. 60. § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I – a forma federativa de Estado;
II – o voto direto, secreto, universal e periódico;
III – a separação dos Poderes;
IV – os direitos e garantias individuais.
Nada obstante a atribuição de autonomia não se relacione diretamente com a separação dos Poderes e não tangencie, sequer indiretamente, o núcleo essencial desta cláusula, cumpre desde já afastar qualquer interpretação elástica e expansiva que que assim o pretenda fazer. Aliás, conforme bem anotou o Ministro Gilmar Mendes, “a aplicação ortodoxa das cláusulas pétreas, ao invés de assegurar a continuidade do sistema constitucional, pode antecipar a sua ruptura” (ADI 2.395, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 09.05.2007.).
5. Curso de direito constitucional. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 206.
6. Conforme consta na justificativa da Proposta de Emenda à Constituição que culminou com a aprovação da EC 74/2013.
7. Trata-se, em última análise, da defesa do interesse público primário.
8. Nesse sentido: “Parece inequívoco que a sistematização adotada pela Constituição Federal brasileira de 1988, no que se refere ao Título da Organização dos Poderes, quis indicar a conveniência de que tais órgãos, especificamente o Ministério Público e a Defensoria Pública, não sejam mais considerados como formalmente integrantes do Poder Executivo. Essas entidades devem ser revestidas de efetiva autonomia, em razão da sua condição peculiar de órgãos detentores de uma parcela da soberania do Estado, no desempenho do seu múnus constitucional” (ALVES, Cleber Francisco Alves. Justiça para todos! Assistência jurídica gratuita nos Estados Unidos, França e Brasil apud SARMENTO, Daniel. Dimensões constitucionais da defensoria pública da união. Acesso em 25.10.2015.
9. O Supremo Tribunal Federal vem reafirmando a autonomia da Defensoria Pública e do Ministério Pública. A exemplo disso: “São inconstitucionais as medidas que resultem em subordinação da Defensoria Pública ao Poder Executivo, por implicarem violação da autonomia funcional e administrativa da instituição. Precedentes: ADI nº 3965/MG, Tribunal Pleno, Relator a Ministra Cármen Lúcia, DJ de 30/3/12; ADI nº 4056/MA, Tribunal Pleno, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, DJ de 1/8/12; ADI nº 3569/PE, Tribunal Pleno, Relator o Ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 11/5/07 (…)
O quadro de desencontro das receitas estimadas com as previsões globais de despesas, exacerbado, ou quiçá provocado, pela ausência de tempestiva aprovação da lei de diretrizes para a elaboração e execução da lei orçamentária anual de 2015, desautoriza atuação do Poder Executivo na adequação das propostas dos demais Poderes e órgãos autônomos (trecho de voto proferido pela Ministra Rosa Weber, relatora, no MS 33193 MC / DF. Decisão de 30/10/2014).”
“O Ministério Público, embora não detenha personalidade jurídica própria, é órgão vocacionado à preservação dos valores constitucionais, dotado de autonomia financeira, administrativa e institucional que lhe conferem a capacidade ativa para a tutela da sociedade e de seus próprios interesses em juízo, sendo descabida a atuação da União em defesa dessa instituição.” (trecho de ementa. ACO 1936 AgR / DF. Rel. Min. Luiz Fux. Julgado em 28.04.2015).
Autor: Edilson Santana Gonçalves Filho é defensor público federal, titular do Ofício de Direitos Humanos e Tutela Coletiva da Defensoria Pública da União de Manaus, unidade em que exerce a função de Defensor Público-Chefe. Professor do Curso CEI. Foi Defensor Público do Estado do Maranhão. Especialista em Direito Processual.