A questão da autonomia orçamentária é uma daquelas não compreendidas adequadamente por parcela ponderável dos doutrinadores. Aliás, o Direito Financeiro, disciplina onde se insere o tema em exame, apesar de ser o pai do Direito Tributário não tem merecido a mesma atenção deste. Por razões de ordem prática, existe maior preocupação no estudo do Direito Tributário, que compreende apenas a disciplina de uma parte de um dos objetos de Direito Financeiro, isto é, a receita derivada. Nada mais. A receita originária, o crédito público, a despesa pública e o orçamento continuam sendo objetos do pouco conhecido Direito Financeiro, cujas normas, fundamentalmente, são voltadas para proteção do interesse público: como obter e administrar as receitas públicas e principalmente como, quando e onde gastar o dinheiro público. Suas normas, por assim dizer, engessam a ação dos agentes públicos (agentes políticos e servidores graduados), que não vêem com bons olhos esse importante ramo do Direito Público. Sempre que possível, procuram, através de medidas legislativas, contornar a incidência de suas normas, cuja contrariedade configura crime de responsabilidade política. (art. 86, inciso VI da CF).
Daí porque somente o exercício da cidadania, notadamente, no que diz respeito ao princípio da legalidade das despesas, que é o similar do princípio da legalidade tributária, poderá conduzir à efetiva e correta aplicação das normas de Direito Financeiro, fazendo com que, entre outras coisas, o orçamento anual passe a representar um verdadeiro instrumento de concretização da vontade média da população, e não um mero amontoado de números e códigos, enfeixados em um luxuoso volume, para deleite dos freqüentadores de bibliotáfios.
Enfim, não há vontade política para implantar o primado da probidade na Administração. Quando fustigado pela mídia, o poder político reage com edição de leis dúbias, confusas e, às vezes, inconstitucionais ao invés de aplicar a legislação adequada preexistente. Assim ocorreu com a elaboração da desastrada Lei nº 8.429/92, que define os atos de improbidade administrativa, na verdade, fruto de improbidade legislativa por ter a E. Câmara dos Deputados suprimido, indevidamente, a instância revisora do Senado Federal. Agora, com os últimos acontecimentos, que maculam profundamente a imagem da Administração Pública, fartamente divulgados pela mídia, editou-se a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal, Lei Complementar de nº 101/2000 como panacéia para Administração Pública em geral, acometida de doença endêmica. E o Congresso Nacional está votando, a toque de caixa, o respectivo estatuto repressivo. Ao invés de se preocupar em consertar os estragos realizados, diga-se de passagem, de difícil reparação, deveria preocupar-se na prevenção dos danos. Por que não se vota o projeto de lei complementar referida no inciso II , do § 9º, do art. 165 da Constituição Federal, perdido nos escaninhos do Congresso? Aprovado esse diploma legal, estaria fechado o ralo, representado por fundos, fundinhos e fundão, como é o caso do FSE, hoje FEF, por onde desaparecem vultosos recursos financeiros arrecadados, por inviabilizar o mecanismo de controle e fiscalização da execução orçamentária.
Mas, o nosso tema versa sobre autonomia orçamentária. Autonomia orçamentária não quer dizer exatamente autonomia financeira como muito pensam. Esta última detém a entidade política, dotada do poder de realizar as receitas públicas, originárias, derivadas ou creditícias. Não haveria, por exemplo, a independência político-administrativa do Município não fosse o seu poder impositivo a assegurar sua independência financeira. Mera participação no produto de arrecadação de imposto alheio não traria essa independência financeira. Por isso, quando o art. 99 da Constituição Federal se refere à autonomia administrativa e financeira do Judiciário, na verdade, quis o legislador constituinte referir-se à autonomia administrativa e orçamentária. Conferiu-se ao Judiciário e ao Ministério Público a faculdade de elaborar as propostas orçamentárias(1), dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias (art. 99, § 1º e art. 127, § 3º da CF) a serem enviadas ao Executivo, no caso do Judiciário Federal, através dos Presidentes do STF e dos Tribunais Superiores. Após unificadas e incorporadas ao Projeto de Lei Orçamentária Anual, este será encaminhado pelo Presidente da República ao Congresso Nacional, até o final de agosto de cada ano. Autonomia orçamentária significa que determinado órgão, com ou sem personalidade jurídica própria, foi contemplado pela lei orçamentária anual com dotação própria, fixando o montante das despesas autorizadas, no caso do Judiciário e do Ministério Público, por propostas suas(2). Autonomia orçamentária quer dizer que um determinado órgão constitui-se em uma unidade orçamentária, podendo utilizar-se das verbas com que foi contemplada, mediante observância dos rígidos princípios orçamentários e à medida de disponibilidade financeira do Tesouro.
A Carta Política de 1988 inovou a matéria orçamentária, conferindo ao Poder Judiciário e ao Ministério Público dotações próprias, prescrevendo, ainda, a entrega dos recursos correspondentes até o dia 20 de cada mês, na forma de lei complementar (art. 168 da CF). Entretanto, o duodécimo não está, por ora, regulamentado pela lei complementar referida no texto constitucional. É certo, contudo, que o repasse de numerários não deve ser automático; deve obedecer ao princípio da programação de despesas (art. 47 da Lei nº 4320/64) que é impositivo para órgãos das três esferas de Poder; depende, ainda, de efetiva realização da receita estimada. Não há, nem pode haver transferência de verbas hipotéticas como querem alguns. É fora de dúvida, porém, que o Executivo não pode alterar, a seu talante, a data do repasse que é o dia 20 de cada mês, segundo jurisprudência já firmada pelo STF (RTJ-129/5; 136/891).
Nisso se resume a autonomia orçamentária desses órgãos, que não se confunde com a autonomia financeira propriamente dita. Todos os recursos financeiros devem permanecer no Tesouro, por força do princípio de unidade de tesouraria (art. 56 da Lei nº 4.320/64). Alguns estudiosos sustentam que os recursos correspondentes a dotações consignadas ao Poder Judiciário (art. 100, § 2º da CF) devem ser recolhidos à repartição do Judiciário, como se esse Poder fosse o vocacionado para gerir as finanças públicas. Pontes de Miranda, comentando idêntico dispositivo à luz da Carta Política de 1967 (art. 117, § 2º) ensina que “o depósito é que guarda as quantias. A permanência noutras repartições, quaisquer que sejam, implica figura penal”(3)
Outrossim, não procede a tese defendida por alguns setores no sentido de que, por conta dessa propalada autonomia financeira, na verdade, orçamentária, o Poder Judiciário poderia fixar os vencimentos de seus membros e os de seus servidores. A confusão é óbvia, implicando afastamento do princípio constitucional da reserva legal (art. 92, V da CF). Se isso fosse possível o Executivo, que sempre deteve a autonomia orçamentária e, também, a financeira poderia fixar livremente os vencimentos de seus servidores por decreto. Por derradeiro, o velho hábito de o Legislador baixar “ato da mesa” para majorar indiretamente os vencimentos de seus servidores, via aumento de gratificações, é inconstitucional. O princípio da reserva legal vale para todos os servidores dos três Poderes.
Concluindo, a autonomia orçamentária do Legislativo, do Judiciário e do Ministério Público não significa independência financeira propriamente dita e muito menos, insubmissão ao princípio da reserva legal no que tange à fixação de vencimentos de seus membros e de seus servidores, ressalvados os casos expressos no art. 49, incisos VII e VIII da CF(4). Não se pode, em nome da autonomia, tomar medidas conflitantes com o próprio princípio federativo, que garante a independência e harmonia dos Poderes (art. 2º da CF) pelo sistema de freios e contrapesos, não admitindo que um deles faça o que bem entender, sem que haja interferência dos demais.
NOTAS
1. A prática tem demonstrado que a mistura da função jurisdicional com a função administrativa, por gerar disputas políticas indesejáveis e inadequadas no âmbito do Poder Judiciário, não vem enaltecendo a sua imagem.
2. Não significa, obviamente, que as propostas devam ser aprovadas como formuladas pelos órgãos referidos.
3. Comentários à Constituição de 1967, Tomo III, p. 621. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1967.
4. Os subsídios de deputados e senadores, bem como os do Presidente da República, do Vice Presidente da República e dos Ministros de Estado são fixados por resolução do Congresso Nacional.
*Kiyoshi Harada
Diretor da Escola Paulista de Advocacia, professor de direito administrativo, tributário e financeiro, ex-procurador-chefe da consultoria jurídica da procuradoria-geral do município de São Paulo (SP)