Marcelo Colombelli Mezzomo
Bacharel em Direito pela UFSM
Sumário: 1- Introdução. 2- O aval e a fiança. 3- Do artigo 263 do CC. e sua interpretação. 4- Do caráter principaliter da dívida de Aval. 5- A jurisprudência. 6- Conclusões. 7- Bibliorafia.
1- Introdução
É pouco crível, mas em um tempo não muito distante os direitos de homens e mulheres eram bastante dispares. Na vigência do direito reinícola, tinha o marido sobre a mulher e filhos potestas nec et vi, considerando-os como quase se coisas fossem. Este quadro muito evoluiu e inobstante permaneçam alguns bolsões legislativos nos quais ainda se vislumbram resquícios destes tempos, como é exemplo o nosso Código Civil, ainda com muitos dispositivos tornados vetustos e inaplicáveis frente à disciplina constitucional.
Mas com a igualização dos direitos dos homens e das mulheres, preceito hoje constante do artigo 5º, caput e inc. I, da CF/88, ovas demandas surgem versando o exercício dos direito reconhecidos à mulher e mesmo passam a existir demandas onde o cônjuge[i] varão pleiteia a defesa de sua meação haja vista a atividade profissional da esposa.
Interessa-nos, nesta ordem de idéias, a situação do aval frente à meação do cônjuge, eis que começa a repontar na jurisprudência uma tendência de atribuir o ônus ao credor de demostrar que dívida reverteu em benefício do outro cônjuge, invertendo a tradição de nosso Direito. O aval e a meação do conjugue é o nosso tema.
2- O aval e a fiança
Qualquer negócio de cunho econômico envolve em certa medida risco. Por outro lado a máxima produtividade, maior produtividade e eficiência e conseqüentemente maior lucro, dependem, na moderna economia de mercado, da previsibiliadade. Destarte, a incerteza é fator que conspira contra os fins do modelo econômico ocidental. Em tal circunstância, o risco é um ator indesejável e deve-se buscar formas de redução ou eliminação da sua influência.
O desenvolvimento econômico e do trato negocial concebeu várias formas de atenuação ou eliminação do risco, dentre as quais ressaltam-se os mecanismos de garantia oriundos de negócios acessórios, celebrados no intuito de prover de garantias uma avença a cujo inadimplemento estão ligados, pois este é o fator de eficacização pratica destas garantias. As garantias poderão ser reais ou fidejussórias. Nas primeiras existe obrigação de caráter pessoal. No segundo caso, a obrigação é real, criando-se direito de seqüela e preferência próprios dos direitos reais.
Duas, basicamente, são as formas de garantia fidejusssória, materializadas no aval e na fiança. Embora ambas representem garantias pessoais, ocorrem certas diferenças oriundas da natureza diversa que possuem. O aval é de natureza comercial, ao contrário da fiança, que é de direito civil. Como sabido, o direito comercial se pauta pela celeridade própria das relações mercantis, defluindo deste fato outras diferenças entre ambos. Por isso, o aval não carece da outorga uxória do cônjuge, requisito cuja ausência pode redundar em nulidade ou anulabilidade da fiança[ii]. Da mesma forma, o aval, ao contrário da fiança, não comporta o beneficum excussionis, ou benefício de preferência sobre os bens do devedor principal.
Especificamente no que tange ao direito sucessório, o artigo 263, inc. X, do Código Civil só faz referência á fiança, não ao aval. Surge daí a pergunta, estaria o aval excluído ex lege da comunhão patrimonial mesmo ante sua ausência no rol dos incisos do artigo 263? A resolução desta importante questão perpassa pela correta inteligência do artigo em comento.
3- Do artigo 263 do CC. e sua interpretação.
Em primeira plana, há que se considerar o artigos 262 e 263 do Código Civil. O artigo 262, iniciando as tratativas acerca do regime da comunhão universal de bens, estatui, litteris: ” Art. 262- O regime da comunhão universal importa a comunicação de todos os bens presentes e futuros dos cônjuges e suas dívidas passivas, com exceção dos artigos seguintes;”
Nos doze incisos que se seguem, dentro da disciplina do artigo 263, cujo caput peremptoriamente afirma incomunicáveis os bens que elenca, em nenhum momento se fez referência a avais, sendo o caso mais próximo o da fiança, que consta do inciso X: ” X- A fiança prestada pelo marido sem outorga da mulher ( art. 178, § 9º. nº 1, alínea “b”, e 235, nº III)”.
O artigo 235 do Código Civil, estabelece, de seu turno: “Art.235- O marido não pode, sem o consentimento da mulher, qualquer que seja o regime de bens:(…)III- Prestar fiança ( arts. 178, § 9, nº I, “b” e 263, inc. 9º)”. Verifica-se que o legislador não fez menção em momento algum à limitação quanto à prestação de fiança. À luz da hermenêutica, as enumerações não meramente exemplificativas têm função de excluir as hipóteses ali não contempladas. A lição é velha e vem da melhor doutrina, pois “quod legis nom distinguit, nec nos distinguire debemus” .
Mas também na doutrina, tanto quanto se trata de direito de família como de direito sucessório, a fiança é que surge e não o aval. Assim, exemplificativamente, Pontes de Miranda leciona: ” A regra geral é que se comunicam todas as dívidas e demais obrigações contraídas na constância da sociedade conjugal pelo marido, por ambos os cônjuges ou pela mulher nos casos em que ela o pode fazer”[iii].
Arnaldo Rizzardo, afirma que: ” Não se aplica ao aval a norma do artigo 235, inc. III, e a do artigo 248, inc. III do Código Civil, ou seja, válida é a garantia ou o ato de vontade que pessoa casada presta sem o assentimento do cônjuge. Mas a execução para cobrir o valor exigido não pode ser suportada por mais da metade dos bens do casal, se o outro consorte manifestar o seu direito no curso do processo. (…). O aval não é considerado nulo, É ele válido e inatacável, mesmo sob o regime de comunhão de bens e independentemente de licença do outro cônjuge. Apenas emerge da situação a possibilidade de ingresso da medida de embargos de terceiro para salvaguardar a metade do patrimônio”.[iv]
Na seara específica do direito sucessório, a lembrança é da autorizada doutrina de Carlos Maximiliano:”Embora alguns bens ou a maioria hajam sido trazidos à sociedade conjugal pela mulher, todavia responde a fortuna do casal pelas dívidas contraídas pelo marido”.[v] Segue adiante o autor elencando as hipóteses de não comunicação, fazendo, então, menção à fiança, não ao aval. Ainda que escrito a quase cinco décadas, continua atual esta lição: a dívida de aval se comunica.
Dir-se-á, em desabono de uma interpretação legal, que os tempos são outros e que a doutrina invocada, assim como o CC encontram-se ultrapassados. Ora, temos o Estatuto da Mulher casada, Lei 4.112/62 a demonstrar o contrário. Podendo, não fez alteração para incluir o aval embora ele já existisse, o que de resto não é de surpreender, tendo em linha de conta sua natureza mercantil. Observe-se que a opinião Rizzardo é bastante recente. Segundo ali se vê, diferentemente da fiança, o aval não se tem por nulo ou anulável, mas simplesmente se impede que a meação seja atingida se, veja-se bem, se a parte prejudicada manifestar seu inconformismo via embargos. Sem a oposição manifesta, o que vige é a presunção de benefício comum. Aliás, a circunstância de não se invalidar o aval acresce-se ao fato de não operar a incomunicabilidade ipso iure, para reforçar as diferenças entre aval e fiança, afastando que apliquemos mesmos princípio a ambos.
É preciso que se repise que onde o legislador não fez distinção não é lícito ao interprete e aplicador fazê-lo. Não previsto o aval no rol exaustivo do artigo em questão, não se pode criar uma hipótese de incidência ao arrepio da letra da lei. Há aqui que se invocar o magistério de Carlos Maximiliano acerca da interpretação do direito excepcional. É na palavra do mestre que encontramos subsídio para descortinar a pertinência da colocação da disposição do artigo 263 entre as norma de direito excepcional. Diz ele:” Consideram-se excepcionais, quer estejam insertas em repositórios de Direito Comum, quer se achem nos de Direito Especial, as disposições: (…) d) subtraem bens às normas de Direito comum ou de Direito Especial, com estabelecer isenções a impostos ou outra maneira qualquer”.[vi] Em outro trecho adverte: ” Também se usa de exegese rigorosa: a) quando texto, entendido nos termos latos em que foi redigido, contradita outro preceito de lei, ou do ato ajuizado; …”[vii]
Ora, é certo que a norma do artigo 263, e todos os seus incisos, estabelece uma exceção ao princípio do artigo antecedente, o qual, por sua vez, estabelece a regra de comunicabilidade. Logo, as disposições do artigo 263 carecem ser interpretadas restritivamente.
Por outro lado, há que se complementar o raciocínio antecedente fazendo menção à interpretação a contrario sensu. Decorre ele da natureza restritiva e enunciativa do artigo 263, significando que previstas somente estas hipóteses (as do artigo 263) estão, a contrario sensu, interpretações a aplicações do Direito que impliquem, em interpretação ou aplicação desbordante da lei, na obtenção de um resultado prático equivalente a uma interpretação extensiva dos dispositivos excepcionais.
Considerar-se incluído o aval quando o legislador não o fez é atingir um fim não visado pela lei pois ” Ubi lex voluit dixit, ubi noluit tacuit”.( quando a lei quis determinou; sobre o que não quis, guardou silêncio). O rol não é meramente exemplificativo, é exaustivo, e “contra legem facit, quid id facit, quod lex prohibet: in fraudem vero, qui slvis verbis legis, sententiam ejus circumvenit”.( Procede contra a lei quem faz o que a lei proíbe; age em fraude da mesma o que respeita as palavras do texto e contorna, ilude a objeção legal).
Pelo que, opinamos que o aval comunica-se salvo prova em contrário a cargo do interessado no afastamento. .
4- Do caráter principaliter da dívida de Aval
É imprescindível que façamos uma observação acerca do caráter principaliter da dívida de aval em contraposição á divida oriunda da fiança. A fiança, bem o sabemos, é acessória, e comporta o benefício de ordem, requerendo, ex vi dos dispositivos por nós já referidos, ao outorga uxória, e frente ao texto da Constituição Federal, art. 5º caput e inc. I, autorização marital pena de nulidade ou anulabilidade, já que o tema quanto á natureza do vício ainda é motivo de discussão doutrinária e jurispudencial.
Mas o aval, ao revés obriga em caráter principaliter o avalista, não comportando beneficium excussionis e não carecendo de autorização do outro cônjuge. Isto é de maior importância para perquirirmos da extensibilidade ou não da ratio legis da incomunicabilidade da fiança ao aval, porque se o aval ostente natureza diversa da dívida de fiança, se quanto a ele os requisitos se abrandam, então é certo que o aval é uma dívida como outra qualquer, e portanto comunica-se.
Destarte, para a fiança o legislador previu sanção de nulidade ou anulabilidade ( ?), como efeito da não anuência do outro cônjuge. O mesmo não ocorre com o aval. Logo é de se observar uma diferença ontológica entre os institutos, verificável no diferenciado tratamento a que estão sujeitos. Natureza mercantil do aval lhe imprime um cunho todo próprio, não sendo lícito fazer tábula rasa das diferenças existentes entre o aval e a fiança.
O aval, funciona como dívida comum do cônjuge e a teor do artigo 262, tais dívidas são absolutamente comunicáveis. Esta a regra, a exceção é a incomunicabilidade e como tal a devemos interpretar e aplicar poiso aplicador da lei não pode se irrogar a condição de legislador em um sistema de separação rígida de poderes, como o que adotamos.
5- A jurisprudência
Consideremos, à guiza de argumentação, que seja admissível a criação de uma incomunicabilidade no caso do aval. Sim, ad argumentantum tantum, porque não há base para a não aplicação da lei e a “contrario sensu” para o afastamento de tudo quanto a contrarie. Tal possibilidade ( de extensão) criou-se por obra da jurisprudência, mas note-se bem, a jurisprudência admite condicionadamente a comunicação. Destarte o que ilumina a jurisprudência é a equidade. Segundo os argumentos dos prosélitos da corrente que admite a comunicabilidade, o fato de o aval implicar uma oneração ao patrimônio não haveria substancial diferença de resultados práticos entre a concessão de aval ou fiança no patrimônio. No entanto, haja vista a natureza comercial da figura do aval a equiparação entre ambos não se faz pura e simplesmente.
O que se defende é que no aval a exclusão não se opera ipso iure, mas sim resultará do afastamento de uma presumptio hominis, que opera considerando que em regra o aval traz benefício para a família, e, portanto, comunica-se. Estabelece-se assim uma regra: o aval se comunica ao patrimônio do cônjuge que não o prestou , casado sob o regime da comunhão universal, porque, em regra, gera benefício à família, cabendo ao interessado afastar a presunção mediante o aporte de suporte probatório suficiente. Não cumprindo o ônus de provar que não resultou benefício, valerá o quod plerunque fit, ou seja, a presunção de que gerou benefício para a família entra em linha de conta para determinar a comunicação ex artigo 262 do CC.
Na jurisprudência, embora as opiniões estejam divididas, havendo inclsive julgamentos no Superior Tribunal de Justiça transferindo o ônus de comprovar que o aval reverteu em benefício da família ao credor, a tese contrária, por nós esposada encontra acolhida conforme se vê em julgamento do TARGS assim ementado: “Embargos de terceiro. Aval. Em regra, e de exigir-se a embargante a prova de não haver a contração do débito beneficiado a família ou a patrimônio comum. consagra a jurisprudência dominante a presunção relativa, e, assim, elidível. A princípio, o aval constitui ato de favor, cedendo ante prova em sentido contrario, ausente. Meação. apura-se em todos e em cada um dos bens do patrimônio comum, mesmo que a penhora seja inferior a metade desse patrimônio. deram provimento. (Apc nº 189018922, Quinta Câmara Cível, TARGS, relator: des. Paulo Augusto Monte Lopes, julgado em 18/04/1989).
No mesmo diapasão:” Embargos de terceiro. Meação. Presumem-se em beneficio do casal as dividas contraídas pelo marido no regime da comunhão universal. Inteligência do artigo 3 da lei n.4121 e dos artigos 246 e 262 do Código Civil. (Apc nº 187049960, Quarta Câmara Cível, TARGS, relator: des. Érico Barone Pires, julgado em 01/10/1987)”
No STJ, julgamentos mais recentes como o RESP 282753/SP, julgado em 16/11/2000, cuja ementa é a seguinte: “Processo civil e civil. Execução. Penhora. Meação da mulher. Dívida. Contraída pelo marido. Benefício da família. Inclusão na execução. Ônus da prova. precedentes. recurso provido.
I – A meação da mulher casada não responde pela dívida contraída
exclusivamente pelo marido, exceto quando em benefício da família.
II – É da mulher o ônus de provar que a dívida contraída pelo marido não veio em benefício do casal, não se tratando, na espécie, de aval.”[viii]
Também o RESP 161002/RS,de 02/03/1999, onde a matéria é versada, embor atenah sido improvido o recurso por outros motivos: “Embargos de Terceiro – Mulher Casada- Aval dado pelo marido -Ausência de prequestionamento dos temas versados nos paradigmastrazidos para comprovar dissídio jurisprudencial – Recurso especial não conhecido.
I – Compete à mulher do avalista executado provar que a dívida não foi contraída em benefício da família, para efeito de exclusão da meação da penhora, quando o aval tenha sido dado em favor de sociedade por quotas junto à qual o varão-executado era sócio.
II – No caso concreto, entretanto, verifica-se que tais discussões, sobre ser ou não o marido sócio da empresa avalizada ou a quem cabe o ônus da prova, não constaram da decisão recorrida, que limitou-se a dizer que por dívidas de natureza cambial, assumidas por apenas um dos cônjuges o outro não deve responder, segundo a legislação que cita, e embargos declaratórios não foram opostos com o intuito de colher a manifestação do Tribunal “a quo” sobre tais temas. Ausência de prequestionamento que inviabiliza a comprovação do dissídio jurisprudencial.
III – Recurso Especial não conhecido.”[ix]
Desta forma, verificamos e que, mesmo surgindo julgados em posicionamento contrário, a indicar uma mudança, ainda existem julgados que preconizam que o ônus probatório é do cônjuge ou do companheiro.
6- Conclusões
Sem embargo do peso das opiniões em contrário, firmamos posição pela comunicabilidade da dívida do aval, de modo a imputar-se na meação do cônjuge ou companheiro até que se prove o contrário, ou seja, que a dívida não reverteu em benefício da família ou do cônjuge o companheiro interessado na sua exclusão de sua meação pela não comunicabilidade.
Notas de fim
[i] A referência à cônjuge evidentemente também inclui o companheiro, já que a união estável foi constitucionalmente prevista no artigo 226 da CF bem como nas leis 8.971/94 e 9.278/96. Escrevendo sobre o assunto (A União Estável frente ao Direito Sucessório, Exegese das Leis 8.971/94 e 9.278/96 ), afirmamos referentemente ao artigo 226 da CF: Destarte, se pode inferir por uma simples leitura dos dispositivos constitucionais pertinentes que: 1) A Constituição reconhece, em condições de igualdade com o casamento, a União Estável. 2) A união estável não é equivalente do casamento, mas concede os mesmos direitos. 3) O Estado pretende a conversão da união estável em casamento. 4) A União Estável não pode conferir mais direitos do que o casamento o que seria um contra-senso e violaria o artigo 226, § 3, in fine, da CF/88″.
[ii] A conseqüência da ausência de outorga uxória ou autorização marital, se nulidade ou anulabilidade, anda não foi totalmente pacificada De nossa parte, perfilhamos posição pela anulabilidade e não pela nulidade já que trata-se de direito patrimonial disponível.
[iii] Tratado de Direito Privado, Borsói, 1955,t. VIII, § 898, p. 311.
[iv] Direito de Família, Aide, 1994, v. I, p. 217
[v] Direito das Sucessões, Freitas Bastos, 3º volume, § 1518, p. 373
[vi] Hermenêutica e Aplicação do Direito, Forense, 11º ed. 1991, p. 230
[vii] Op. cit, p. 205
[viii] 4ª Turma, DJ de 18/12/2000, pg. 00210, Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira.
[ix] 3ª Turma, DJ de 10/05/1999, pg. 00167, Min. Waldemar Zveiter.