Autor: Danilo Jorge Soares Barata (*)
1. Introdução
Em 9 de janeiro deste ano, entrou em nosso ordenamento jurídico a Lei 13.606, a qual tinha por objetivo, em sua essência, instituir o Programa de Regularização Tributária Rural (PRR), o qual veio a estabelecer o parcelamento de débitos de produtores rurais com a União. Entretanto, para surpresa de todos (sociedade), inclusive dos operadores do Direito, a referida lei trouxe em seu corpo uma incongruência no tocante à discricionariedade de a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) poder passar a averbar a certidão de dívida ativa (CDA) em órgão de registro de bens e direitos dos contribuintes sujeitos à penhora e arresto, tornando-os dessa forma, indisponíveis.
O artigo 25 da referida lei (in verbis) acrescentou os artigos 20-B, 20-C, 20-D e 20-E à Lei 10.522, de 19 de julho de 2002, essa que disciplinou o Cadastro Informativo de créditos não quitados junto aos órgãos e entidades federais — Cadin.
Art. 25. A Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 20-B, 20-C, 20-D e 20-E:
Art. 20-B. Inscrito o crédito em dívida ativa da União, o devedor será notificado para, em até cinco dias, efetuar o pagamento do valor atualizado monetariamente, acrescido de juros, multa e demais encargos nela indicados
§ 1º A notificação será expedida por via eletrônica ou postal para o endereço do devedor e será considerada entregue depois de decorridos quinze dias da respectiva expedição.
§ 2º Presume-se válida a notificação expedida para o endereço informado pelo contribuinte ou responsável à Fazenda Pública.
§ 3º Não pago o débito no prazo fixado no caput deste artigo, a Fazenda Pública poderá:
I – comunicar a inscrição em dívida ativa aos órgãos que operam bancos de dados e cadastros relativos a consumidores e aos serviços de proteção ao crédito e congêneres; e
II – averbar, inclusive por meio eletrônico, a certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora, tornando-os indisponíveis.
Art. 20-C. A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional poderá condicionar o ajuizamento de execuções fiscais à verificação de indícios de bens, direitos ou atividade econômica dos devedores ou corresponsáveis, desde que úteis à satisfação integral ou parcial dos débitos a serem executados.
Parágrafo único. Compete ao Procurador-Geral da Fazenda Nacional definir os limites, critérios e parâmetros para o ajuizamento da ação de que trata o caput deste artigo, observados os critérios de racionalidade, economicidade e eficiência.
Art. 20-D. Sem prejuízo da utilização das medidas judicias para recuperação e acautelamento dos créditos inscritos, se houver indícios da prática de ato ilícito previsto na legislação tributária, civil e empresarial como causa de responsabilidade de terceiros por parte do contribuinte, sócios, administradores, pessoas relacionadas e demais responsáveis, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional poderá, a critério exclusivo da autoridade fazendária:
I – notificar as pessoas de que trata o caput deste artigo ou terceiros para prestar depoimentos ou esclarecimentos;
II – requisitar informações, exames periciais e documentos de autoridades federais, estaduais e municipais, bem como dos órgãos e entidades da Administração Pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
III – instaurar procedimento administrativo para apuração de responsabilidade por débito inscrito em dívida ativa da União, ajuizado ou não, observadas, no que couber, as disposições da Lei no 9.784, de 29 de janeiro de 1999.
Art. 20-E. A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional editará atos complementares para o fiel cumprimento do disposto nos arts. 20-B, 20-C e 20-D desta Lei.
Entretanto, a matéria disciplinada nos artigos em destaque acima em nada tem a ver com o texto da Lei 13.606, ou seja, a inclusão desses artigos se caracterizou como um verdadeiro “jabuti”, no jargão popular, pois, de forma discricionária, sem a devida avaliação dos impactos financeiros e jurídicos no âmbito da economia brasileira e do ordenamento jurídico, passou a permitir que a Fazenda Pública, unilateralmente, sem a garantia da ampla defesa e do contraditório, possa fazer a averbação da CDA em órgãos de registro de bens e direitos do contribuinte sujeitos à penhora e arresto, usurpando direitos e garantias constitucionais como: o direito ao devido processo legal, o direito ao contraditório e à ampla defesa, ao direito à propriedade, ao princípio da função social da empresa, bem como ao princípio da reserva de lei complementar.
Não bastasse o cerceamento aos direitos garantidos por nossa Carta Magna, a Lei 13.606, ao trazer em seu texto matéria relativa à Direito Tributário, exorbitou sua competência, pois assuntos em matéria de Direito Tributário devem ser legislados somente por meio de lei complementar, como preceitua o artigo 146, da CF/88, ou seja, foi sucumbido o princípio da reserva de lei complementar.
Adiante passarei a tratar mais detalhadamente dos pontos acima destacados, mais diretamente nas distorções trazidas pela Lei 13.606 no tocante aos artigos que foram incluídos com o objetivo de instituir em nosso ordenamento jurídico a averbação pré-executória por parte da Fazenda Pública.
2. Direitos e garantias constitucionais violados
Consoante mencionado acima, a inclusão do artigo 25 na Lei 13.606, alterando os artigos 20-B, 20-C, 20-D e 20-E à Lei 10.522, de 19 de julho de 2002, trouxe em seu texto pelo menos quatro infringências ao texto constitucional no tocante às suas garantias, senão vejamos:
2.1. Do direito ao devido processo legal
O artigo 5º, inciso LIV, da CF/88, prevê em seu texto que:
Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.
Como se pode observar, é flagrante a inobservância do referido princípio no tocante à possibilidade de o contribuinte se defender, haja vista ter o cerceamento de sua defesa com o registro de seus bens e direitos nos órgãos de registro público, ficando esses sujeitos à penhora e arresto, demonstrando, assim, a afronta ao também princípio constitucional da razoabilidade, haja visa não ser nada razoável que o registro da CDA não possa ser discutido tanto na esfera administrativa como na judicial, antes da indisponibilidade dos bens do contribuinte.
O artigo 185-A do CTN, é explicito ao determinar que a Fazenda Pública só poderá determinar o arresto ou penhora dos bens do devedor tributário após a devida citação do mesmo para que pague ou apresente bens penhoráveis, mediante determinação judicial, ou seja, dentro do devido processo legal, senão vejamos o que diz o citado artigo in verbis:
Art. 185-A. Na hipótese de o devedor tributário, devidamente citado, não pagar, nem apresentar bens à penhora no prazo legal e não forem encontrados bens penhoráveis, o juiz determinará a indisponibilidade de seus bens e direitos, comunicando a decisão, preferencialmente por meio eletrônico, aos órgãos e entidades que promovem registros de transferência de bens, especialmente ao registro público de imóveis e às autoridades supervisoras do mercado bancário e do mercado de capitais, a fim de que, no âmbito de suas atribuições, façam cumprir a ordem judicial (grifo nosso).
2.2. Do direito ao contraditório e à ampla defesa
O artigo 5º, inciso LV, da CF/88, estabelece em seu texto que:
Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
O referido princípio estabelece ao cidadão, contribuinte ou não, o direito ao conhecimento da acusação que está sofrendo, bem como a sua ampla defesa, bem como a utilização de todos os meios e recursos legais admitidos em direito para sua defesa. O Supremo Tribunal Federal, por meio das súmulas vinculantes 21 e 28, sedimentam o entendimento no âmbito tributário da aplicação do princípio em tela, senão vejamos:
Súmula vinculante 21: “É inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévios de dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo”;
Súmula vinculante 28: “É inconstitucional a exigência de depósito prévio como requisito de admissibilidade de ação judicial na qual se pretenda discutir a exigibilidade de crédito tributário”.
2.3. Do direito à propriedade
O direito à propriedade é abordado em nosso texto constitucional de maneira mais enfática no artigo 5º, inciso XXII, o qual assegura:
Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
XXII – é garantido o direito de propriedade.
E no artigo 170, inciso II, in verbis:
Art. 170 – A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(…)
II – propriedade privada.
Esse direito não se restringe apenas ao ser possuidor da propriedade, mas também ao direito de uso, gozo e disposição sobre a propriedade que os indivíduos e organizações (contribuintes) possuem, pensando a propriedade não só como um direito e garantia fundamental, como também em sua essência, dentro do contexto de sua função social na coletividade.
2.4. Do princípio da função social da empresa
O princípio da função social da empresa na sociedade está positivado em nosso ordenamento jurídico nos artigos 5º, inciso XXIII, 170, inciso III, 182, parágrafo 2º e 186, todos da CF/88, bem como em leis adjetivas.
O papel da empresa enquanto organismo vivo da sociedade não se restringe apenas à geração de lucro para seu(s) proprietário(s), e sim o oposto, consiste na geração de riqueza, seja por meio da geração de emprego/trabalho, por sua contribuição ao Estado arrecadador (financiamento da máquina pública e custeio dos direitos fundamentais), pelo incentivo à pesquisa para geração de novas tecnologias, serviços e produtos, bem como pelo consumo, permitindo que a economia continue girando e se desenvolvendo.
Nesse contexto, o artigo 47 da Lei 11.101/05 (Recuperação Empresarial) disciplina a necessidade de se permitir, dentro das possibilidades oferecidas, o papel da sociedade empresária enquanto geradora de renda, por meio de sua atividade econômica, no desempenho de sua função social, conforme transcrevemos abaixo in verbis:
Art. 47 – A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estimo à atividade econômica (grifo nosso).
Assim, é latente a não observância do princípio da função social da empresa com a instituição do artigo 25, da Lei 13.606/18, pois não há que se falar em continuidade da sociedade empresária quando lhe são usurpados direitos e garantias constitucionais, através de ato impositivo da Fazenda Pública que possibilita a averbação da CDA em órgãos de registro público, permitindo o arresto e penhora de seus bens e direitos sem o devido processo legal.
2.5. Do princípio da reserva de lei complementar
O artigo 146, inciso III, alínea b, da CF/88 reserva à lei complementar o poder de legislar sobre matéria tributária, bem como sobre as normas de crédito tributário, com quórum qualificado, dado a importância e observância do princípio da segurança jurídica.
O artigo 25, da Lei Ordinária 13.606/18, ao alterar os artigos 20-B, parágrafo 3º, inciso II e 20-E, da Lei 10.522/02, ampliou os poderes já concedidos pelos artigos 185 e 185-A, do Código Tributário Nacional (CTN) no tocante às garantias e privilégios do crédito tributário, acarretando um poder à Fazenda Pública nunca visto antes em nossa república, cerceando direitos e garantias consagrados por nossa Carta Magna.
É latente a inobservância do legislador ao acrescentar matéria reservada à lei complementar no texto de lei ordinária, invadindo a esfera normativa reservada a assuntos de ordem tributária, trazendo consigo tamanha insegurança jurídica a um sistema tributário já complexo e demasiadamente oneroso aos olhos do contribuinte.
3. Conclusão
O legislador federal, ao permitir a inclusão do artigo 25, da Lei 13.606/18, o qual acrescentou os artigos 20-B, 20-C, 20-D e 20-E à Lei 10.522, de 19 de julho de 2002, violou direitos e garantias constitucionais explicitamente previstos em nosso ordenamento jurídico, instituindo norma infraconstitucional sem a roupagem devida para tratar de assuntos relacionados à matéria tributária, indo de encontro a normas fundamentais como o devido processo legal, ao contraditório e ampla defesa, a reserva de lei complementar para tratar de matéria tributária e aos princípios do direito à propriedade, a função social da empresa e, principalmente, ao princípio da segurança jurídica e razoabilidade.
Com isso, amparado por norma claramente inconstitucional, a Fazenda Pública, por sua vez, não perdeu tempo e, em 8 de fevereiro do corrente ano, editou a Portaria PGFN 33, publicada no DOU no dia 9 de fevereiro, a qual tem por objetivo regulamentar os artigos 20-B e 20-C da Lei 10.522, de 19 de julho de 2002, bem como disciplinar os procedimentos para o encaminhamento de débitos para fins de inscrição em dívida ativa da União, estabelecer os critérios para apresentação de pedidos de revisão de dívida inscrita, para oferta antecipada de bens e direitos à penhora e para o ajuizamento seletivo de execuções fiscais, tendo sua aplicabilidade a partir de 120 dias após sua publicação.
Além da regulamentação por parte da Fazenda Pública no tocante à averbação pré-executória, os 24 vetos, quando da sanção da Lei 13.606/18, foram todos derrubados no último 18 de abril do corrente ano pelo Congresso Nacional, ampliando, dessa forma, o poder discricionário da Fazenda Pública, permitindo com isso, por exemplo, a inclusão do artigo 20-D na Lei 10.522, de 19 de julho de 2002, o qual vai de encontro ao que determina o artigo 135 do CTN, ao instituir a possibilidade de a PGFN instaurar procedimento administrativo para apuração da responsabilidade de terceiros por dívida, ao entender que há indícios de atos ilícitos, bem como chamar pessoas para dar esclarecimentos ou prestar informações, exames periciais e informar documentos de autoridades.
Assim, como podemos evidenciar, é clara e evidente a indiferença dada por nosso legislador ao permitir a entrada em nosso ordenamento jurídico de norma incompatível, neste caso, de matéria tributária, bem como a ânsia e fome permitida à Fazenda Pública para poder averbar a CDA nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto e penhora, tornando-os assim indisponíveis.
Mas existe uma luz no fim do túnel, pois atualmente existem quatro ações diretas de inconstitucionalidade aguardando julgamento no Supremo Tribunal Federal sobre o tema, todas com o fito de demonstrar a inconstitucionalidade dos artigos introduzidos na Lei 10.522, de 19 de julho de 2002, o que nos permite ter esperanças de que o cerceamento de direitos e garantias fundamentais sucumbidos com a entrada da Lei 13.606/18 podem ser revistos e até expurgados de nosso ordenamento jurídico.
Autor: Danilo Jorge Soares Barata é advogado empresarial, sócio do Taumaturgo Júnior Advogados Associados e membro da Comissão de Estudos Empresariais e Societários da OAB-CE.