por Kiyoshi Harada
O prefeito do município de São Paulo baixou o Decreto 46.228, de 23 de agosto de 2005, para tentar ajustar o valor venal do imóvel para fins de cálculo do ITBI ao conceito doutrinário, segundo o qual, “é o preço de venda, à vista, em condições normais do mercado, comportando variação de 10% para mais ou para menos” (CF. nosso Direito tributário municipal, 2ª edição, Atlas, 2004, p. 95).
Prescreve esse decreto em seu artigo 7º e parágrafo 1º:
Artigo 7º: A base de cálculo do imposto é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos.
Parágrafo 1º: Considera-se valor venal, para efeitos deste imposto, o valor pelo qual o bem ou direito seria negociado à vista, em condições normais de mercado.
E preceitua o artigo 8º e parágrafo 1º:
Artigo 8º: A Secretaria Municipal de Finanças tornará públicos os valores venais atualizados dos imóveis inscritos no Cadastro Imobiliário Fiscal do Município de São Paulo.
Parágrafo 1º: Os valores venais dos imóveis serão atualizados periodicamente, de forma a assegurar sua compatibilização com os valores praticados no Município, mediante pesquisa e coleta permanente, por amostragem, dos preços correntes das transações e das ofertas à venda no mercado imobiliário, inclusive com a participação da sociedade representada no Conselho de Valores Imobiliários.
Acrescenta seu parágrafo 3º que:
Parágrafo 3º: O valor venal divulgado, em nenhuma hipótese, será inferior à base de cálculo do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana — IPTU, utilizada no exercício da transação.
Como se vê, o artigo 7º define corretamente a base de cálculo do ITBI como sendo o valor do bem ou direito que “seria negociado à vista” em condições normais do mercado.
Importante notar que nem a Constituição Federal nem o Código Tributário Nacional exigem que o valor venal coincida com o valor da efetiva transação imobiliária, onde até fatores subjetivos poderiam interferir na sua fixação. Tampouco exigem a fixação da base de cálculo em seu limite máximo, representado pelo exato valor de mercado, mesmo porque a questão do nível de imposição é matéria que se insere no âmbito da política tributária.
Cabe a cada município estabelecer a sua política tributária, definindo o aspecto quantitativo do imposto, tanto pela elevação ou diminuição da base de cálculo, como pela elevação ou diminuição da alíquota, respeitado apenas, nesse particular, o princípio constitucional da vedação de efeito confiscatório do tributo. Esse aspecto é de fundamental importância para perfeita compreensão da matéria sob exame.
Prosseguindo na análise dos dispositivos transcritos, verifica-se que o artigo 8º, ao invés de fixar critérios genéricos e abstratos para apuração do valor venal, o que só seria possível por lei em sentido estrito, prescreveu a publicação do valor venal de cada imóvel em concreto. E o seu parágrafo 1º determinou a atualização periódica desse valor venal, “mediante pesquisa e coleta permanente, por amostragem, dos preços correntes das transações e das ofertas à venda no mercado imobiliário”.
Ora, simples leitura ocular desse parágrafo 1º revela não se tratar de mera atualização monetária da base de cálculo a que alude o parágrafo 2º do artigo 97 do CTN. Essa “atualização” implica, necessariamente, majoração do tributo ferindo o princípio da legalidade tributária (artigo 150, I da CF). Por isso, o STF já decidiu que a majoração do valor venal por decreto é inconstitucional (RE 92.335-SP, in RTJ 96/880).
Nos chamados “tributos avaliáveis” (IPTU e ITBI) é preciso não confundir o plano abstrato da eleição de critérios ou métodos avaliativos com o plano concreto da constituição do crédito tributário em cada caso, mediante a atividade do lançamento, que é ato administrativo vinculado.
Vinculado a que? À lei, evidentemente! Cabe à lei fixar os critérios e métodos para apuração do valor venal, e cabe a administração apurar o valor venal de cada imóvel com base nos critérios da lei. No caso do ITBI, cabe ao fisco homologar a atividade exercida pelo contribuinte, ou promover o lançamento direto da eventual diferença que entender existente, assegurados os princípios do contraditório e da ampla defesa.
No caso da base de cálculo do IPTU/ITBI, não há nem pode haver precisão matemática na apuração do chamado “valor venal do imóvel”. Daí a imprescindibilidade de visualizar um instrumento jurídico, capaz de determinar, em cada caso concreto, a base de cálculo do IPTU/ITBI tanto quanto possível, próximo da realidade imobiliária local, e, ao mesmo tempo, propiciar ao sujeito passivo elementos que possibilitem a impugnação do valor venal atribuído ao seu imóvel1, ofertando avaliação contraditória, se for o caso, na forma do artigo 148 do CTN2.
Daí, as chamadas PGVs — Plantas Genéricas de Valores, onde estão estabelecidos os critérios de apuração do valor venal de uma infinidade de imóveis semelhantes ou afins, para fins de lançamento do IPTU. É com base nessas PGVs que o órgão competente do Executivo vai atribuir a base de cálculo in concreto, em relação a cada imóvel tributado. As PGVs não fixam o valor venal de cada imóvel, porém, editam regras gerais hipotéticas para a constituição do crédito tributário em cada caso, mediante a atividade do lançamento, que é ato administrativo vinculado.
Apenas a operação para calcular o quantum debeatur em relação a cada imóvel, com fundamento no critério abstrato, previsto nas PGVs, é que se insere no âmbito de competência privativa do Executivo. As PGVs, por integrarem a base de cálculo do IPTU/ITBI (artigo 146, III, “a” da CF) só poderão resultar de lei, jamais de decreto, em obediência ao princípio da legalidade tributária (artigo 150, I da CF e artigo 97, I do CTN). Daí porque a Súmula 160 do STJ veda a atualização do IPTU, mediante decreto, em percentual superior ao índice oficial de correção monetária.
No município de São Paulo, existe a Lei 10.235/86, fixando normas e métodos para apuração do valor venal, expressos em seis tabelas anexas, que possibilitam a apuração do valor unitário do metro quadrado da construção e do terreno (artigo 1º).
As tabelas I a III referem-se à apuração do valor unitário do terreno, considerados os diferentes fatores (profundidade, esquina, condomínio, encravado, etc.). A tabela IV contém os fatores de depreciação da construção em razão da idade aparente; a tabela V contém seis tipos de construção, com seis padrões diferentes para cada tipo (residencial horizontal, residencial vertical, comercial horizontal, etc.); e a tabela VI divulga os valores unitários do metro quadrado da construção para diferentes tipos e padrões de construção.
Conforme o artigo 2º dessa lei, na fixação do valor unitário do metro quadrado, leva-se em conta:
a) o preço corrente das transações e ofertas no mercado;
b) os custos de reprodução;
c) as locações correntes;
d) as características da região;
e) e outros dados tecnicamente reconhecidos.
Como se verifica, o preço corrente das transações e ofertas no mercado, a que alude o parágrafo 1º do artigo 8º do decreto sob comento, é apenas um dos elementos para apuração do valor unitário do metro quadrado, que não se confunde com o valor venal do imóvel.
Se a administração municipal apurou o valor venal de cada imóvel cadastrado, com base nos critérios e métodos objetivos estabelecidos na Lei 10.235/86, livremente editada pela municipalidade de Sã Paulo, à toda evidência, aquele valor apurado para lançamento do IPTU encerra a presunção de que espelha, para o sujeito ativo do imposto, o valor de mercado. É o quanto basta para legitimar o uso desse valor venal pelo sujeito passivo do imposto, para efeito de recolhimento do ITBI. Eventual diferença deverá ser objeto de lançamento complementar, respeitados os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.
Resulta com lapidar clareza que o decreto sob comento confundiu o aspecto hipotético das normas de avaliação (necessariamente previstas em lei) com o aspecto concreto da avaliação de cada imóvel com base naquelas normas. De fato, o artigo 8º prescreveu a disponibilização pública de valores venais atualizados de cada imóvel inscrito no Cadastro Imobiliário Fiscal do Município. E o artigo 10 desse decreto dispôs que cabe ao contribuinte requerer avaliação especial do imóvel caso não concorde com a base de cálculo previamente fixada e divulgada pela administração, invertendo e subvertendo a presunção de veracidade e regularidade do valor venal do imóvel, constante da notificação de lançamento do IPTU.
O valor venal de cada imóvel, apurado de conformidade com os critérios e métodos da Lei 10.325/86, encerra presunção de veracidade e de regularidade. Querer buscar o valor real de cada transação imobiliária, sujeito até a incidência de fatores subjetivos, seria o mesmo que pretender encontrar o “verdadeiro lucro” para fins de tributação pelo imposto de renda naquela modalidade de “lucro presumido”. Não se tem notícias de que a Receita Federal tenha publicado uma pauta de “lucros presumidos” para cada tipo de empresa.
Nunca de pode esquecer da elementar noção de que não cabe ao aplicador da lei discutir critérios da lei. Nem deve o aplicador substituir o critério de Justiça do legislador por seus próprios critérios. Do contrário, todos os dispositivos do Código Penal poderiam ser questionados, por exacerbação ou atenuação da pena.
Não é por outra razão que a Fazenda do Estado vem acolhendo o valor venal do imóvel, mencionado na notificação de lançamento do IPTU, para a cobrança do imposto de transmissão causa mortis, como se pode constatar dos inúmeros processos de inventários em curso. Curiosamente, só o município de São Paulo é que não aceita o critério da lei que editou.
Esse artigo 8º encerra dupla inconstitucionalidade. Primeiramente, a apuração do valor venal atualizado de cada imóvel só pode ser feita no momento da ocorrência do fato gerador, por meio de uma das modalidades do lançamento tributário. É tarefa do agente público competente, e não do legislador.
Em segundo lugar, se nem a lei pode ter caráter concreto, para definir de antemão o valor venal de cada um dos milhões de imóveis existentes, muito menos o decreto pode ter esse efeito concreto, agravado, ainda, pela constante “atualização” por meio de pesquisas de mercado que, como vimos, é apenas um dos elementos para apuração do valor unitário do metro quadrado. Quando muito poderia a administração publicar o valor venal referido no parágrafo 3º do artigo 8º para conferir maior transparência na tributação.
Outrossim, o município poderia aprovar, por lei, outros critérios e métodos para encontrar um “segundo valor de mercado” só para efeito de ITBI. Poderia, também, agir com coerência, ajustando os valores unitários do metro quadrado das construções, constantes da tabela VI anexa à Lei 10.325/86, ou simplesmente aumentar a alíquota do ITBI, pois a transparência não pode ser vista como um pecado, mas como uma virtude rara.
Por oportuno, lembramos a impropriedade redacional do artigo 12 e parágrafos, que conduz à inconstitucionalidade manifesta. O caput do artigo 12 determina a apresentação, pelo contribuinte, à administração tributária, da DTI — Declaração de Transação Imobiliária, comunicando a ocorrência do fato gerador do imposto.
Só que o parágrafo 1º prescreve que essa declaração deverá ser feita “até a data em que se efetivar o ato ou contrato sobre o qual incide”, ou seja, antes da ocorrência do fato gerador, que só poderia ser a transmissão inter vivos, por ato oneroso, “de bens imóveis por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis” (artigo 156, III da CF e artigo 35 do CTN).
Ora, a transmissão de propriedade imobiliária só se opera com o registro do título de transferência no Registro de Imóveis competente, de conformidade com o artigo 1.245 do Código Civil.
O conceito de “transmissão de propriedade imobiliária”, como estabelecido na lei civil, por ter sido utilizado pela Constituição Federal para definir competência impositiva dos municípios, é vinculante dentro do Direito Tributário (artigo 110 do CTN). Do contrário, a discriminação constitucional de impostos seria inócua.
Logo, é inconstitucional esse parágrafo 1º, bem como o artigo 14, que impõe aos notários a obrigação de verificar a correção da DTI e a prova de pagamento do imposto devido. Do mesmo vício padecem os demais dispositivos relacionados aos notários ou que versem sobre pagamento do imposto antes da ocorrência do fato gerador. Inaplicável ao ITBI a figura do fato gerador fictício previsto no parágrafo 7º do artigo 150 da CF por se tratar de imposto de incidência monofásica. Lembramos que essa inconstitucionalidade existe na própria Lei 11.154/89 que rege o ITBI.
Finalmente, o parágrafo 3º do artigo 12 cria, por equiparação, a figura criminal do artigo 2º da Lei 8.137/90 nas hipóteses de omissão de informações ou de prestação de declarações falsas na Declaração de Transação Imobiliária.
Basta simples confronto desse dispositivo regulamentar com as diversas condutas antijurídicas arroladas nos incisos I a V do artigo 2º da Lei 8.137/90 para concluir que estamos diante da definição de crime por decreto, violando o secular e universal princípio do nullum crime sine lege.
Notas de rodapé
(1) Esse valor venal resulta, necessariamente, de presunção júris tantum.
(2) Artigo 148: Quando o cálculo do tributo tenha por base, ou tome em consideração, o valor ou o preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos, a autoridade lançadora, mediante processo regular, arbitrará aquele valor ou preço, sempre que sejam omissos ou não mereçam fé as declarações ou esclarecimentos prestados, ou os documentos expedidos pelo sujeito passivo ou pelo terceiro legalmente obrigado, ressalvada, em caso de contestação, avaliação contraditória, administrativa ou judicial.
Revista Consultor Jurídico