Basta um programa trapaceiro nas urnas para fraude não ser descoberta

Pedro Antonio Dourado de Rezende *

A revolução digital nos leva por um caminho estreito e perigoso, ladeado por dois abismos. A tecnofobia paranóica de um lado e a ingenuidade crédula do outro. Ao redor, há velhacos e poderosos armando esquemas para colher os incautos que se precipitam. Corremos o risco de perdermos o bonde da história ou de nos espatifarmos agarrados às asas mitológicas de Ícaro.

Dentre os mais vulneráveis estão os profissionais da segurança computacional. As reputações que calçam podem escorregar com um erro de avaliação, de abordagem, de perspectiva, de julgamento, ou mesmo de precisão comunicativa.

Ao abordar a segurança do processo eleitoral brasileiro de uma forma que destoa da palavra oficial, é natural que atraia cascas de bananas em minha direção. Acontece que o exercício da cidadania pode ter precedência ao desta profissão. Para quem assim prioriza, os riscos decorrentes têm que ser assumidos, como ensinou Sócrates ao enfrentar os sofistas. Assumo-os.

A palavra oficial reza que o voto impresso em algumas urnas eletrônicas, mais o teste da votação paralela em outras, fazem prova definitiva da inexistência de risco de adulteração de votos. Enquanto isto, várias entrevistas que já concedi a jornais e emissoras de TV explicando porque não pode ser este o caso sob as normas atuais, aguardam a manifestação do contraditório. Quase sempre, o TSE responde com silêncio.

E quando se digna, atira-nos cascas de banana. “Trata-se da síndrome da conspiração”, diz seu presidente à Folha de S. Paulo, através de porta-voz. Seriam críticas sem fundamento, partindo de um pequeno grupo. Mesmo se incluíssem todos os especialistas em segurança computacional do país, este grupo continuaria pequeno. Já o outro grupo, o dos que decidem os detalhes cruciais do processo, é tão pequeno ou menor. Quanto à relação entre possibilidade conspiratória e tamanho de grupo, não seria ela mais forte, e inversa, com o grupo que decide? Cabe aqui lembrar: o que os críticos querem não é empurrar todos para o abismo da tecnofobia; é alertar sobre o outro abismo. Quem critica sabe que o voto eletrônico na forma atual é seguro. Só que seguro demais, casando duas proteções das quais só uma interessa ao eleitor.

Instalados softwares honestos nas urnas e juntas apuradoras, seguramente o processo de votação estará protegido contra fraudes de origem externa. Mas basta um programa trapaceiro nas urnas ou nas juntas apuradoras, como um que inverta um voto a cada 40 em eleição majoritária, por exemplo, para que tal fraude interna fique imune ao desbaratamento, mantido o bloqueio atual do TSE à fiscalização e à auditoria eficazes nos sofwares e no processo.

A panacéia anunciada do voto impresso é inócua sob as condições atuais. Coincidindo a contagem dos votos paralelos em papel com a versão impressa do boletim de uma urna, esta poderá ou não coincidir com a versão eletrônica, que realmente conta. Não há como o fiscal do eleitor verificar isso hoje. E mesmo se pudesse verificar, não teria como saber se os boletins estão sendo somados corretamente na totalização. Os tribunais não divulgam parcelas totalizadas por urna, apenas por região.

Com software inauditável, só há um jeito de se detectar fraudes internas. Um partido teria que, em 48 horas, recolher cópia impressa de todos os boletins de urna (404 mil para presidente), somá-los, e convencer um juiz eleitoral que o erro não está na soma manual, mas sim num programa decretado honesto, que ninguém pode conhecer. Juiz cujo chefe se apressa em julgar tal exercício de cidadania como distúrbio psicológico, e cujos subordinados têm se negado muitas vezes a entregar cópia impressa do boletim a fiscais de partido, com a complacência quase geral da grande mídia. Se a informatização é para facilitar a votação e acelerar a apuração, por que os benefícios não alcançam a fiscalização?

Em 29/5 um seminário inédito reuniu analistas, acadêmicos, jornalistas e políticos no espaço cultural da Câmara dos Deputados em Brasília, para debater esses assuntos. No mesmo dia, o presidente do TSE foi ao plenário anunciar que o laudo da Unicamp sobre o tema, entregue a ele cinco dias antes, comprova que o sistema de votação eletrônica atual é “robusto, seguro e confiável”. O laudo só foi entregue aos presidentes Aécio Neves e Ramez Tebet. Aos jornalistas, só um release que se dizia conter trechos conclusivos do laudo, e que serviu para lastrear a manchete de adjetivos nos telejornais e emudecê-los sobre o seminário.

O Jornal Nacional chegou a notificar que o laudo recomenda sete medidas para melhorar a segurança do sistema, das quais o TSE já estaria adotando quatro. Boris Casoy e o Correio Braziliense nada falaram dessas recomendações corretivas, restringindo-se aos adjetivos.

Só a Folha de S. Paulo entrou em detalhes sobre as recomendações, dizendo que uma delas seria a eficácia da auditoria dos softwares pelos partidos. E só o jornal O Globo mencionou o seminário. Intrigante. Se o sistema já é perfeito, por que precisaria ser melhorado? A segurança é uma corrente tão forte como seu elo mais fraco: se uma das sete medidas equivale a trancar as portas do fundo, basta ao crime organizado saber que não foi adotada para fazer sua festa. Adotar quatro das sete (na verdade) oito medidas recomendadas não basta.

Não é a primeira vez que o Correio Braziliense solta matéria que parece pautada pela assessoria de imprensa do TSE, ignorando especialistas dele desvinculados que se dispõem a comentar sobre o tema. E não é a primeira vez que o TSE ignora a essência do que diz um laudo técnico, anunciando sua conclusão de forma truncada e assim distorcida. Isto já vem acontecendo com o processo de impugnação do cadastro eleitoral de Camaçari, por exemplo. No exercício do quarto poder, o da mídia, a preguiça, a superficialidade, o medo ou o servilismo em tema de tamanha importância são grandes perigos, como ilustram os acontecimentos recentes na Venezuela.

Resta saber o que realmente diz o tal laudo, que custou ao contribuinte R$ 400 mil, e se a Unicamp desse laudo é a do Dr. Badan Palhares ou a do painel do Senado. Há pelo menos uma inconsistência grave em sua conclusão, destacada como fato pela matéria da própria Folha. Como pode o sistema atual garantir que “a contabilização dos votos introduzidos é feita corretamente”, se a verificação de integridade dos programas entre confecção, compilação, replicação e inseminação não é pública, como recomenda que seja uma das oito medidas de “aprimoramento” propostas na mesma conclusão? No processo eleitoral, o público sequer sabe se e como tal verificação é executada pelo do no do sistema, incluídos no público os signatários do laudo.

Uma nova lei eleitoral, proposta ano passado no Senado, poria fim ao obscurantismo normativo que inviabiliza a fiscalização e auditoria do sistema. Mas esse mesmo presidente do TSE interferiu, pedindo apoio a emendas de sua lavra que o colocaria novamente, por via da anulação das garantias de transparência nela previstas. Dentre as anuladas, justamente a medida presumida e ao mesmo tempo recomendada na conclusão falha do relatório, que o TSE nunca adotou.

As emendas foram defendidas pelo então líder Hugo Napoleão, que instruiu a base governista a votar a favor. Quinze dias depois de aprovação do projeto, devidamente emendado para legitimar o
obscurantismo do status quo, o nobre líder recebeu o governo do seu estado do TSE, cassado por crime eleitoral o governador eleito. Tal ato final não deixa de matizar o caso com certa ironia do destino: o Mão Santa caiu fora. Certamente a tal síndrome não terá sua origem apenas na paranóia de alguns poucos palpiteiros.

Pedro Antonio Dourado de Rezende é professor do Departamento de Ciência da Computação da Universidade de Brasília

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