Battisti e os princípios internacionais da extradição

Por Liliana Lyra Jubilut e Silvia Menicucci de Oliveira Selmi Apolinário

Por 6 votos a 3, o Supremo Tribunal Federal decidiu no dia 8 de junho de 2011 a favor da soltura de Cesare Battisti. A maioria dos ministros[1], esquecendo-se do Direito Internacional, entendeu que a decisão do Ex-Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva de negar a extradição de Battisti era um “ato de soberania nacional” que não poderia ser revisto pelo STF, ou em outras palavras, uma verdadeira razão de Estado, um ato político, caracterizado pela mais ampla discricionariedade.

Importante recordar que o acórdão do STF de novembro de 2009, analisando o meso caso, recusou ao Ex-Presidente da República, para efeito de efetuar, ou não, a entrega do extraditando, perante o dispositivo final ou comando decisório (iudicium), discricionariedade. Esta foi proclamada, de modo insuficiente, por quatro dos votos elementares do julgamento. Após longa discussão, o Plenário acordou extirpar ao acórdão e à ata de julgamento a referência à discricionariedade, exatamente porque não reconheceu como opinião da Corte.

A minoria, no mais recente julgamento, composta pelos ministros Gilmar Mendes (relator do processo), Ellen Gracie e Cezar Peluso, votou no sentido de cassar o ato do ex-presidente da República e determinar o envio de Cesare Battisti para a Itália. O relator lembrou que o Ex-Presidente da República negou a extradição de Battisti com base em argumentos rechaçados pelo STF em novembro de 2009. De fato, o STF negou toda legitimidade jurídica às causas fundantes do reconhecimento do status de refugiado ao então extraditando, ao reconhecer a “absoluta ausência de prova de risco atual de perseguição política”[2], bem como de algum “fato capaz de justificar receio atual de desrespeito às garantias constitucionais do condenado”[3].

O referido acórdão subordinou a legitimidade do ato do Ex-Presidente, uma vez decretada a extradição, à observância dos “termos do Tratado celebrado com o Estado requerente, quanto à entrega do extraditando”[4], mas na prática parece ter mantido a discricionaridade anteriormente rechaçada.

Nas entrelinhas do voto de Gilmar Mendes, encontra-se uma das balizas da responsabilidade internacional do Estado. Assim, não importa se decorrente de ato do Judiciário, do Executivo, ou Legislativo, o descumprimento de uma norma de Direito Internacional, perante o Direito Internacional, é sempre em nome do Estado, não importa que agente o tenha feito.

O ato do Ex-Presidente da República para formalizar a motivação jurídica necessária, recorreu à cláusula prevista no art. 3º, inc. 1, alínea f, do Tratado de Extradição entre Brasil e Itália[5], sob alegação de que, segundo várias notícias jornalísticas, haveria, na Itália, “comoção política em favor do encarceramento de Battisti”[6], enquanto “caldo de cultura justificativo de temores para com a situação do extraditando, que será agravada”[7]. Resgatou-se, pois, o fundamento do pedido de refúgio, já rechaçado pelo STF. Ausente portanto a lógica jurídica.

O processo de extradição no Brasil envolve a conjugação de vontades do Executivo e do Judiciário (na figura do STF), este analisando a admissibilidade legal do pedido, atentando para temas como a nacionalidade do extraditanto, o tipo de crime pelo qual se solicita a extradição e o tipo de pena que será imposta ao extraditando; e o Executivo (na figura do(a) Presidente) tomando a decisão final em termos de conveniência e oportunidade.

Tal sistema é adotado comumente em outros Estados, e parecia consolidado no Brasil. Contudo, tendo-se em vista a primeira decisão do STF no presente caso parecia estar sendo alterado, uma vez que havia a tentativa de impor ao Executivo a extradição, sem resguardar a análise do caso por este, como acima mencionado. Contudo, após o julgamento de 08/06/2011 a discricionaridade do Executivo parece ter sido assegurada, ainda que definida como “um ato de soberania nacional ”.

Contudo, o Direito Internacional traz princípios próprios sobre extradição, que limitam a discricionariedade, e que devem coexistir com os princípios do Direito interno, e se for o caso sobrepô-los, já que o Estado não pode alegar escusa fundada em Direito interno para descumprir suas obrigações internacionais (de acordo com o artigo 27 da Convenção de Haia sobre Direito dos Tratados.

Entre tais princípios destaca-se o aut dedere aut judicare, que pode ser traduzido de maneira livre como “ou extradita ou leva à Justiça”, no sentido de se fazer Justiça, englobando ou o julgamento ou a efetivação da pena já imposta dependo do caso particular, e que claramente não foi respeitado pelo Brasil no caso de Battisti.

Isto porque, em sendo a extradição um instrumento de cooperação penal internacional, com o objetivo de evitar impunidade e com isso fortalecer o rule of law no plano internacional, estabeleceu-se a regra de se respeitar os princípios internos ligados à extradição mas tentando evitar que isso resulte em violações de direitos. Neste sentido, quando há indícios do cometimento do crime pelo extraditando, verificadas pela autorização do Poder Judiciário da extradição, caso não seja possível efetivar a mesma por questões nacionais (por questões humanitárias ou por questões da nacionalidade do extraditando como no caso do Brasil) a alternativa não é a liberdade mas sim levar o extraditando à Justiça: seja para ser julgado pelo crime seja para cumprir a pena a que foi condenado.

Assim, tendo o STF entendido em um primeiro momento que a extradição era admissível e tendo o Executivo decidido não proceder a mesma, o Direito Internacional interpretado de maneira holística exigia que se levasse o extraditando à Justiça, por meio do cumprimento da pena, a fim de evitar impunidade.

Desta maneira, o princípio do aut dedere aut judicare busca coadunar os sistemas jurídicos internos com os princípios internos e internacionais de Justiça, a fim de se evitar que questões políticas tenham primazia em assuntos que devem ser regulados pelo Direito.

Ao não respeitar tal princípio, e entender que a alternativa à extradição era a liberdade, ainda que o STF tenha votado pela admissibilidade daquela, o Brasil viola o Direito Internacional, e poderia ser responsabilizado internacionalmente.

Por fim, quanto à possibilidade de que a Corte Internacional de Justiça Corte de Haia venha analisar a demanda, é importante esclarecer, como bem aprofundou Márcio Garcia[8], que:

(1) restam afastadas as possibilidades de jurisdição da Corte: (i) em razão da ausência de aceitação da cláusula facultativa de jurisdição obrigatória pelo Brasil (art. 36, 2, do Estatuto da Corte); (ii) pela ausência de celebração de tratado entre as partes submetendo o caso ao Tribunal; e (iii) pela ausência de previsão no Tratado de Extradição de cláusula remetendo à CIJ controvérsia sobre sua aplicação;

(2) há a possibilidade de jurisdição da Corte em razão da Convenção sobre Conciliação e Solução Judiciária entre Brasil e Itália, de 1954.

Há também a possibilidade de jurisdição se a Itália levar o caso à Corte, e o Brasil se manifestar perante a mesma, ainda que não tenha obrigação de fazê-lo, o que, reconhece-se como remoto.

De toda maneira, ainda que o Brasil não venha a ser julgado e/ou condenado internacionalmente pelo ato lesivo ao Direito Internacional, o Brasil perde credibilidade e legitimidade no cenário internacional ao violar o Direito Internacional e afasta-se da sociedade internacional em sua luta pelo fim da impunidade criminal.


[1] Ministros Luiz Fux, Cármen Lúcia Antunes Rocha, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Ayres Britto e Marco Aurélio.

[2] Ext 1085. Rel. Min. Cezar Peluso. Julgamento em 16/12/2009. Tribunal Pleno. Publicação: DJe-067. Divulgação 15.04.2010. Publicação 16.04.2010. EMENT VOL-02397-01 PP-00001. RTJ VOL-00215- PP-00177.

[3] Ibid.

[4] Ext 1085. Rel. Min. Cezar Peluso. Julgamento em 16/12/2009. Tribunal Pleno. Publicação: DJe-067. Divulgação 15.04.2010. Publicação 16.04.2010. EMENT VOL-02397-01 PP-00001. RTJ VOL-00215- PP-00177.

[5] Artigo III

Casos de Recusa da Extradição

1. A Extradição não será concedida:

2. f) se a parte requerida tiver razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição e discriminação por motivo de raça, religião, sexo, nacionalidade, língua, opinião política, condição social ou pessoal; ou que sua situação possa ser agravada por um dos elementos antes mencionados;

[6] STF. Ext. 1085. Decisão monocrática. Min. Rel. Gilmar Mendes. DJe 093. Divulgação em 17/05/2011. Publicação em 18/05/2011.

[7] Ibid.

[8] Garcia, Márcio. Caso Battisti terá novo capítulo em Haia, Conjur, 13/11/2011.

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