Autor: Charles Mayer de Castro Souza (*)
“O homem é feito visivelmente para pensar; é toda a sua dignidade e todo o seu mérito; e todo o seu dever é pensar bem.” — Blaise Pascal
Em seu Leviatã, o filósofo Thomas Hobbes afirmou ser o homem o lobo do homem. Para ele, o ser humano não nasce livre, pois só pode considerar-se realmente livre quando é capaz de avaliar as consequências, boas ou más, de suas próprias ações.
A teoria de Hobbes se aplica perfeitamente à lógica dos que teceram a nova empreitada contra o Carf: a ideia, agora, é alegar o impedimento dos conselheiros representantes da Fazenda Nacional, por conta do recebimento, por todos os auditores- fiscais da Receita Federal, do bônus de eficiência instituído pela Medida Provisória 765, de 2016. A finalidade é impedir o julgamento (como já aconteceu, mediante medida judicial precária), ou mesmo alegar a sua posterior nulidade, mediante interposição de ação judicial específica.
Depois da tese da ilegalidade do voto de qualidade sobre a qual escrevi aqui mesmo na ConJur (que, ao que tudo indica, parece não ter vingado), a nova na verdade visa a fragilizar o conselho, o que constitui, justo, um exemplo de falta de… juízo! Porque o pensamento jurídico atual vem ressaltando a importância de que sejam prestigiados os meios alternativos de solução de litígios, em face da lentidão e dos custos que envolvem os processos judiciais.
É oportuno ressaltar, aliás, tenho ouvido de importantes advogados que atuam no Carf o seu profundo descontentamento com a própria OAB e com aqueles que estão a defender tais ideias, como a da ilegalidade do voto de qualidade. Quem lá trabalha sabe muito bem do que estou falando: as formalidades que se exigem são mínimas, as custas inexistem, o acesso aos conselheiros é amplo e a experiência que estes costumam apresentar na área tributária é significativa. Perder o Carf é perder importante foro de debates e resolução de conflitos.
O impedimento, sabe-se, é vício grave que macula o julgamento. No caso do processo judicial, pode ser alegado em qualquer momento, mesmo após o prazo da ação rescisória. Quanto ao impedimento nas decisões colegiadas, a jurisprudência se firmou no sentido de que, se a participação do impedido não influiu no resultado do julgamento, não há que se invalidar a decisão judicial, entendimento que, no caso do Carf, acredito, não poderia ser observado, considerando que a metade das turmas é composta por Auditores-Fiscais. A solução, procedente a tese, seria a invalidade da decisão.
O dispositivo que fundamenta a alegação de impedimento dos conselheiros fazendários é o artigo 42 do Anexo II do seu Regimento Interno, segundo o qual está impedido de atuar no julgamento de recurso o conselheiro em cujo processo tenha interesse econômico ou financeiro, direto ou indireto. Todavia, a primeira observação que se impõe é que o impedimento reclama, no caso, a configuração de interesse econômico direto ou indireto com o processo que está sendo julgado! Ademais, sequer interesse há no sentido que ao termo tem emprestado a Ciência Jurídica: aquela vontade de conseguir algum benefício ou vantagem pessoal a partir do que se está discutindo em juízo, vale dizer, do fato levado à apreciação do juiz.
É, portanto, um dado objetivo e deve ser provado por quem o alega existir, algo que, com relação ao caso, entendo ser absolutamente impossível de ocorrer, notadamente porque o bônus de eficiência está vinculado a metas anuais estabelecidas pela Receita Federal, não havendo sequer vinculação à atuação individual, mas à atuação conjunta de toda a categoria de auditores fiscais e analistas tributários. E o seu recebimento decorre do pagamento das multas, não do julgamento de litígios tributários na esfera administrativa. Até lá, os contribuintes podem, inclusive, se for o caso, recorrer ao Poder Judiciário, pleiteando o que entenderem ser de direito, como a invalidação do lançamento.
Não se pode esquecer, ademais: sempre foi função precípua do Auditor-Fiscal fiscalizar e, quando possível, ampliar a arrecadação federal. E isso permanece, com ou sem participação no resultado, o que nunca nos impediu de revisar o lançamento, função que compete às Delegacias da Receita Federal de Julgamento, composta exclusivamente por servidores da carreira, e ao Carf, na sua composição paritária. O auditor fiscal, esteja ou não na função de julgador, está vinculado a lei. A sua atividade nada tem de discricionária, de modo que a manutenção das multas tributárias nunca pode depender de seu único e exclusive alvitre.
Ademais, não se pode confundir impedimento com neutralidade. Impedimento é um dado objetivo e deve estar configurado com relação ao processo em julgamento (frise-se!), o que difere da neutralidade, esta, sim, jamais presente. Não há, afinal, como conceber um juiz ou conselheiro desprovido de vontades. Ninguém é neutro, porque todos têm medos, traumas, preferências, experiências etc.
Outra questão que merece ser melhor refletida pelos que entendem impedidos os conselheiros fazendários reside na consequência de se obstar, em sede judicial, o julgamento de processos tributários. Como o Carf é órgão paritário, o impedimento, a prevalecer a tese que se sustenta, permanecerá, de modo que o que de fato está a ocorrer é a pura e simples renúncia ao contencioso administrativo-tributário federal.
O contribuinte não é obrigado a litigar na esfera administrativa. Certo do seu direito, pode fazê-lo diretamente no Poder Judiciário. Se opta pela discussão administrativa, está inequivocamente aderindo, concorde ou não, com a configuração jurídica que disciplina o seu funcionamento. Se não se sente obrigado a dele participar, consideradas as suas regras preestabelecidas, ainda que assim não exteriorize, está, na verdade, renunciando à esfera administrativa, o que tem por consequência o ajuizamento, em sendo o caso, da ação de execução fiscal pela Procuradoria da Fazenda Nacional. O que não se pode conceber, por absurdo, é a paralisação ad aeternum do processo, em detrimento da Justiça Fiscal.
Depois desta nova tentativa de fragilização do Carf, será muito interessante observar como passarão a se comportar os advogados que neste atuam. Irão simplesmente alegar o impedimento em todo e qualquer processo sob sua responsabilidade, ou o farão seletivamente, somente naqueles casos em que, tendo em vista as suas peculiaridades, considerarem absolutamente perdida a discussão na esfera administrativa? Irão requerer, na mesma reunião de julgamento, ainda que em turmas diferentes, a retirada da pauta de um processo, mas silenciar a respeito de outro? As contradições certamente surgirão. E servirão para descortinar o que se esconde por trás da iniciativa.
A OAB merece um parágrafo à parte. Poderia estar colaborando para o aperfeiçoamento do Carf. Assim fazendo, estaria totalmente alinhada à sua função de pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas, a qual está expressamente prevista no art. 44 do Estatuto da Advocacia e a OAB (Lei 8.906/1994). Sim, porque a atuação do conselho serve, concomitantemente, aos interesses do Fisco e dos contribuintes, na medida em que ajuda no aperfeiçoamento do título jurídico-tributário, eliminando, por exemplo, aqueles que não se sustentam ou decotando-os, na parte em que se apresentam sem fundamento legal.
É inusitado que, em vez disso, uma entidade com tão importante missão prefira se preocupar com aquelas “cordinhas” que separam a plateia, presente nos julgamentos, dos conselheiros do Carf, ou ajuizar ação direta de inconstitucionalidade contra o bônus de eficiência. Neste último caso, militando num esforço interpretativo que extrapola o próprio comando constitucional: a Constituição Federal veda a vinculação de impostos a órgãos, fundos ou despesas, não a vinculação de multas. Logo a OAB, que nunca se mostrou muito preocupada com a incompatibilidade do exercício da advocacia com a atividade de julgador administrativo, a despeito de o Supremo Tribunal tê-la considerado compatível com a Constituição Federal há mais de dez anos.
Parece-me, fora de qualquer dúvida, que tais tentativas de enfraquecimento do Carf derivam de uma certa nostalgia com tempos passados, como se a instituição não devesse caminhar para frente, aperfeiçoando o seu funcionamento, para melhor se adequar aos novos ventos que sopram e que renovam a esperança neste país.
Autor: Charles Mayer de Castro Souza é Auditor-Fiscal da Receita Federal, Conselheiro Titular da 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 3ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda.