Brasil e EUA ensaiam um cala-boca histórico contra o jornalismo

por Claudio Julio Tognolli

Voltar atrás, conforme os ventos ideológicos se lhe aprouverem, não seja talvez quiçá a face mais insinuante dos nossos políticos: é a feição mais recorrente de quem vai para o poder, no mundo em particular, e no universo (também quiçá), em geral. A bola da vez é calar a boca da mídia, vetar o acesso às informações públicas e, de chofre, tentar calar a boca do Ministério Público. São ventos que correm ao mesmo tempo, em todo o mundo, apenas contrapontuados por latitudes variadas e longitudes mais ladinas, oblíquas: longitudes morais.

O centro cinético dessa discussão aconteceu há poucos dias, e é um barômetro a decretar solenemente o sinal dos novos tempos. Em Chicago, entre 28 e 30 de junho, a MTF (como é conhecida a Robert R. McCormick-Tribune Foundation, www.rrmtf.org) promoveu seu seminário anual. O deste ano foi realizado na cidade de Chicago (Illinois), no hotel Le Meridién Chicago, quase em frente ao edifício-sede do jornal The Chicago Tribune. O tema da reunião de Chicago foi “Press Freedom”. O assunto mais quente em todas as exposições: o que é considerado um retrocesso nas liberdades da mídia no pós-11 de Setembro.

Na contramão

Esteve no seminário Fernando Rodrigues, diretor-executivo da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, www.abraji.org.br). Causou espécie a Fernando o que viu lá: um retrocesso bárbaro das chamadas Sunshine Laws, leis de acesso à informação de interesse público, e que renderam belíssima frase ao juiz Hugo Black, da Corte Suprema dos EUA. “A luz do sol é o mais poderoso detergente”.

Relata Fernando Rodrigues a este Observatório: “Os Estados Unidos têm uma das legislações mais avançadas do planeta no que diz respeito ao acesso a informações públicas. Depois do 11 de Setembro, foi aprovada uma lei (o Patriot Act) que permite a muitos agentes públicos dificultar o acesso a informações – ao classificar documentos de maneira vaga; por exemplo, como “sensitive”. Na dúvida, muitos servidores públicos fazem essa classificação e o público fica sem ter acesso”.

Prossegue Rodrigues que um dos políticos que mais defendem a restrição ao acesso é Donald Rumsfeld, secretário da Defesa, alegando segurança nacional. “É um caso clássico de mudança de opinião. Durante o seminário da McCormick, uma palestrante leu uma frase de Rumsfeld, de 1966, quando ele era deputado e um forte defensor do Freedom of Information Act,nos EUA. Era justamente o contrário, pelo acesso total às informações públicas”.

Na semana passada, aqui no Brasil, tivemos algumas novidades da contramão da linha filosófica de Rumsfeld. O Ministério Público do Estado de São Paulo anunciou, na quinta-feira (8/7), a veiculação de três vídeos institucionais, cada um de 30 segundos, encomendados a uma agência de publicidade, em defesa do MP. A Rede Globo de Televisão se comprometeu a exibir os vídeos gratuitamente. Foi a primeira emissora que teve essa atitude, o que causou comoção entre a elite do MP paulista.

Minando as bases

“Os três vídeos tratam de questões como o que é a limitação dos poderes do MP, o que representam essas mudanças e como funciona o MP. Serão distribuídos a toda a mídia, em teatros e já temos acordo de exibição deles em grandes cadeias de cinemas de São Paulo”, disse o promotor Roberto Livianu, durante ato em prol do MP, realizado semana passada na PUC, zona oeste de São Paulo.

“Contamos com a mídia porque devemos pensar agora: o que teriam acontecido com casos como o do PCC na Rodovia Castelinho, o da máfia dos fiscais, o caso Celso Daniel, se não fosse a atuação do MP”, disse o procurador-geral de Justiça, Rodrigo Pinho.

A reação da mídia nunca foi tão bem-vinda. Isso porque, em todo o mundo, governos, sobretudo com a consulta aos spin doctors – os bruxos do lobby e da contra-informação –, sabem que vetar acesso às informações públicas é minar as bases do jornalismo sério, o de interesse público. Vamos lembrar de uma frase disparada pelo ministro José Dirceu.

“Portanto, é o governo, são os partidos que sustentam o governo que querem amordaçar o MP. Porque querem encobrir as suas relações com irregularidades. Querem impedir a ação do MP. No caso da CPI do narcotráfico e do crime organizado, ou da CPI do PC, ou da CPI do Orçamento, e da atuação diária do MP, nós estamos lendo nomes e filiações partidárias daqueles que são denunciados, cassados.

Acredito que o Brasil precisa de leis para combater o crime organizado, o narcotráfico e a corrupção. O Brasil não precisa de leis para controlar o MP. Eu considero isso uma mão para o crime organizado. Já disse e repito, sem meias palavras: esses projetos de lei, essa PEC são instrumentos que vão apenas estimular a impunidade e dar a mão ao crime organizado.”

A frase consta de entrevista ao jornal da Associação Nacional dos Procuradores da República, abril de 2000. Agora vejamos dois exemplos a mostrar que a escola de Dirceu é a mesma de Rumsfeld. “O ministro José Dirceu (Casa Civil) defendeu ontem, durante ato de apoio ao deputado federal Luiz Eduardo Greenhalgh (PT), um maior controle da atividade do Ministério Público.” É da Folha de S. Paulo do dia 17/1/2004. Vejamos outra:

“O ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, sugeriu que o Congresso Nacional tome providências sobre a ‘persistente e permanente violação’ de direitos dos cidadãos pelo Ministério Público (MP) e por parte da imprensa. Ao fazer a crítica ao MP, o ministro disse que falava como cidadão. “O Congresso Nacional precisa se debruçar sobre essa situação de extrema gravidade”, disse, sugerindo que a Ordem dos Advogados do Brasil agisse. “Estamos vendo a Constituição ser violada diariamente numa série de procedimentos feitos seja pelo Ministério Público seja pela imprensa”, afirmou. “Não é mais razoável tolerar esse estado de coisas’”.

Trata-se de reportagem de O Povo de 17/1/2004. O fator Rumsfeld repetiu-se no fim do ano passado. Causou grande surpresa no fim de 2003 ato da prefeita paulistana Marta Suplicy ao vetar projeto de lei promulgado pela Câmara Municipal de São Paulo que obrigava a prefeitura a publicar na internet e nas subprefeituras informações sobre o orçamento da cidade e sobre a execução desse orçamento (quanto se gastou e em quê).

O projeto, de autoria do vereador e economista Odilon Guedes (PT), buscava ampliar o acesso de analistas, jornalistas, formadores de opinião etc (daí a internet) e da população em geral (por meio da afixação de quadros nas sedes das subprefeituras) a informações fundamentais sobre como o Executivo municipal gerencia a vida da cidade. (Leia a íntegra do projeto de lei em www.transparencia.org.br/docs/pl-msp-091-03.pdf.). As razões apresentadas para o veto (ver em www.transparencia.org.br/docs/veto-pl-msp-091-03.pdf) são de que o projeto seria inconstitucional, ilegal e contrário ao interesse público.

Afirma a prefeita que, ao obrigar o Executivo a publicar dados sobre seu desempenho, o Legislativo infringiria a independência entre poderes (daí a pretensa inconstitucionalidade). De acordo com a prefeita, caberia ao Executivo, e apenas a ele, dispor sobre como divulgar as informações sobre seu próprio desempenho. Claramente, trata-se de argumento falacioso, uma vez que não cabe à Prefeitura exercer o controle externo sobre si própria, mas à Câmara Municipal – conforme estipula o Art. 31 da Constituição.

A segunda justificativa do veto seria a ilegalidade da iniciativa, a qual, conforme a prefeita, estaria no fato de o projeto não especificar a fonte de recursos ou a estimativa do impacto orçamentário que acarretaria.

Ronco popular

O repórter Flávio Siqueira, do sítio Última Instância, informa que um memorial que defende posição contrária à condução de investigações criminais pelo Ministério Público foi entregue ao STF (Supremo Tribunal Federal) por sete entidades jurídicas com o objetivo de pressionar os 11 ministros do tribunal, que devem decidir sobre a questão em agosto.

Diz ele que “no documento, que inclui um parecer do professor de direito constitucional da Universidade de São Paulo José Afonso da Silva, são rebatidos quase todos o argumentos utilizados por promotores e procuradores para defender o seu poder de investigação. Subscrevem o memorial o Instituto de Defesa do Direito de Defesa, a Associação Internacional de Direito Penal, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, o Instituto Carioca de Criminologia, o Instituto de Criminologia e Política Criminal, o Instituto Manoel Pedro Pimentel e Instituto Interdisciplinar de Estudos Criminais.”

Como se vê, seja nos EUA, seja na Casa Civil, seja na Prefeitura de São Paulo, instala-se a vontade do veto geral às informações públicas. Que perigosamente poderá ter a sua coroação em agosto próximo, quando o STF vota a limitação dos poderes de investigação do Ministério Público. Em todo o mundo, e no Brasil e nos EUA em particular, ensaia-se um cala-boca histórico contra o jornalismo. Ainda não se esboçou o que deveria ser necessário: um reativo ronco popular do tamanho das Diretas Já. Até nisso estamos ficando mais lentos, apesar da internet e dos celulares: esperemos que não seja tarde demais.

*Artigo transcrito do site Observatório da Imprensa

Claudio Julio Tognolli é repórter especial da revista Consultor Jurídico e da Rádio Jovem Pan, professor da ECA-USP e do Unifiam (SP) e membro do International Consortium of Investigative Journalists (www.icij.org).

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