Autor: César Dario Mariano da Silva (*)
Desde o final do século XIX verificou-se o grande número de mulheres que eram vítimas de tráfico internacional com os mais diversos intuitos. Muitas iam por vontade própria e outras eram obrigadas.
Dentre outros tratados internacionais, o Brasil tornou-se signatário do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial de Mulheres e Crianças, que foi adotado em Nova York em 15 de novembro de 2000. O Protocolo foi aprovado pelo Congresso Nacional por meio de Decreto Legislativo 231/2003, e determinada sua execução através do Decreto 5.017/2004.
O artigo 3º, alínea “a”, do Protocolo define as condutas que configuram tráfico de pessoas. Quanto ao consentimento dado pela vítima, diz a alínea “b” do mesmo dispositivo que será considerado irrelevante se tiver sido obtido por meio do uso da força ou outras formas de coação, do rapto, da fraude, do engano, do abuso de autoridade, dentre outros modos de execução. No que tange ao menor de 18 anos de idade, seu consentimento para o tráfico é inócuo, de acordo com as alíneas “c” e “d” do dispositivo.
Até o momento estão em vigor os artigos 231 e 231-A do Código Penal, que tipificam os crimes de tráfico internacional e interno de pessoas para exploração sexual. Tais dispositivos serão expressamente revogados pelo artigo 16 da Lei 13.344, de 06 de outubro de 2016, passando suas condutas a estar previstas no novo artigo 149-A, não ocorrendo, portanto, o fenômeno da abolitio criminis.
Não há dispositivo penal que puna outros tipos de tráfico de pessoas, tais como para a remoção de órgãos e trabalho escravo. Por conta desse vácuo legislativo e visando a adequar a legislação aos diversos diplomas internacionais dos quais o Brasil é signatário, foi publicada a Lei 13.344/2016, que entrará em vigor no dia 21 de novembro de 2016. Referido diploma dispõe sobre a prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às suas vítimas.
O artigo 149-A do Código Penal, que ainda se encontra em vacatio legis, diz:“Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de: I – remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo; II – submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo; III – submetê-la a qualquer tipo de servidão; IV – adoção ilegal; ou V – exploração sexual. Pena – reclusão, de quatro a oito anos, e multa”.
A norma tutela a liberdade individual, que consiste na livre determinação de fazer ou não fazer. Não exige a norma nenhuma condição especial do sujeito ativo e do passivo, ou seja, do autor e da vítima do delito, podendo ser cometido por homem ou mulher, independente de qualquer condição pessoal.
O tráfico de pessoa pode ser praticado para o próprio agente ou para terceiro, que será partícipe do delito. Pode ser que o próprio traficante vá explorar sexualmente a vítima ou sujeitá-la a trabalhos forçados, por exemplo. Ou pode estar realizando o tráfico para outra pessoa, que concorre para a prática do crime como seu mandante, indutor ou financiador, dentre outras formas de participação.
O tipo é misto alternativo. Assim, por exemplo, se o sujeito, mediante fraude, alicia e também transporta a vítima para exploração sexual, condutas praticadas dentro do mesmo contexto fático, o crime é único. As condutas atingem o mesmo bem jurídico (liberdade individual).
Mesmo quando o tráfico tem por finalidade atingir mais de um bem jurídico da vítima, o crime é único. Nesse caso, apenas a liberdade individual é violada. Ainda não há lesão a outro bem jurídico, que dependerá da prática do crime para o qual a vítima foi traficada (posterior). Com efeito, sendo a vítima traficada para exploração sexual e também para trabalho escravo, há apenas um delito de tráfico de pessoa.
No caso de os crimes posteriores serem efetivamente cometidos, aí sim haverá concurso material entre eles (art. 69 do CP). São condutas diversas, que atingem diferentes bens jurídicos da vítima.
Para que possa obter seu propósito, o sujeito deverá empregar como modo de execução a grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso. Com efeito, a vítima não age por vontade própria, uma vez que ela está inibida pelos modos de execução empregados pelo agente.
Diante do disposto nas alíneas “c” e “d” do artigo 3º do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, mesmo que o tráfico não envolva violência, grave ameaça, coação, fraude ou abuso, o consentimento da vítima menor de 18 anos é inválido.[1]
Como essas pessoas, de acordo com o Protocolo, não podem validamente consentir em ser objeto do tráfico, sua eventual aquiescência para esse fim é juridicamente inválida, respondendo o traficante pelo delito em estudo. Esse entendimento é corroborado pelo artigo 218-B do Código Penal, que pune a exploração sexual de menor de 18 anos de idade. Ora, se a pessoa nessa idade não pode validamente consentir em ser explorada sexualmente, também não pode fazê-lo para o tráfico com essa e outras finalidades.
Ao praticar as ações o sujeito deve ter por propósito a remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo da vítima; a sua submissão a trabalho em condições análogas à de escravo ou a qualquer tipo de servidão; a adoção ilegal, ou a exploração sexual, que são elementos subjetivos do tipo específicos.
A maior incidência deste crime no Brasil é para a exploração sexual, condutas que até então se encontram previstas nos artigos 231 e 231-A do Código Penal. Exploração sexual é uma atividade em que o agente vise à obtenção de lucro com o emprego da sexualidade. É o gênero que tem como espécie a prostituição, que consiste na prática de atos sexuais com um número indeterminado de pessoas de forma habitual e com o intuito de lucro.
O crime posterior praticado contra a vítima será igualmente imputado ao traficante em concurso material (art. 69 do CP). Assim, por exemplo, no caso de a pessoa ter sido traficada para ter relacionamentos sexuais forçados, o traficante também responderá pelo crime de estupro (art. 213 do CP).
A aplicação do concurso material entre o tráfico de pessoas e o crime posteriormente praticado se justifica dada à autonomia dos delitos. Eles são cometidos em situações fáticas distintas e mediante mais de uma conduta, atingindo dois ou mais bens jurídicos.
Mesmo no caso de a vítima do tráfico ser destinada a terceiro, responderá o traficante pelo crime posterior. A partir do momento em que o tráfico é cometido visando a certo e determinado resultado, encontra-se presente o vínculo psicológico necessário para ser reconhecido o concurso de agentes, nos termos do artigo 29 do Código Penal. Assim, pode ocorrer que o sujeito, mediante grave ameaça, transporte pessoa para a remoção de seu rim.
Advindo a retirada desse órgão pelo destinatário da pessoa traficada, o traficante terá concorrido para a prática do crime posterior (lesões corporais), sendo considerado partícipe. Para a perfeita adequação típica os verbos do tipo deverão ser praticados com o emprego dos modos de execução e visando às finalidades previstas na norma. De acordo com o princípio da legalidade, faltando alguma das elementares, o fato é atípico.
Note-se que as condutas podem ser praticadas visando o tráfico interno (no território brasileiro) ou o internacional (para saída ou entrada no território brasileiro). Aplica-se, no caso, o disposto no artigo 6º do Código Penal (teoria da ubiquidade).[2]
Com efeito, haverá o delito, v.g., quando a vítima é aliciada no exterior, por meio de fraude, e trazida ao Brasil para ser explorada sexualmente, ou quando o recrutamento ocorre no Brasil, mediante o emprego de grave ameaça, e a vítima é levada ao exterior para trabalho análogo à de escravo.
Também é possível o tráfico interno de pessoas, que igualmente é uma constante no território nacional, notadamente para o chamado turismo sexual. São principalmente mulheres novas, muitas vezes adolescentes, que são aliciadas, mediante fraude, em cidades interioranas e levadas para as capitais dos Estados, onde são inseridas ou reinseridas na prostituição.
O parágrafo 1º prevê as formas circunstanciadas do delito. A pena é aumentada de um terço até metade se:
I – o crime for cometido por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las;
II – o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência;
III – o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função; ou
IV – a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território nacional.
O conceito de funcionário público nos é dado pelo artigo 327 do Código Penal. Pode ser que o crime seja praticado por funcionário público que esteja no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las. No primeiro caso, o sujeito efetivamente está exercendo uma função pública; no segundo, ele diz a estar exercendo, quando na realidade não está. O crime assume maior gravidade quando praticado por aquele que se desvirtua das suas funções.
De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, criança é a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente, aquela entre doze e dezoito anos de idade. Pessoa idosa, nos termos do Estatuto do Idoso, é a maior de sessenta anos de idade. Pessoa portadora de deficiência é aquela que possui qualquer defeito físico ou mental, como: o cego, o surdo, o deficiente mental. Nesses casos, a vítima possui menores condições de oferecer resistência ou defesa, justificando o aumento da reprimenda.
Pode ser que o agente para a prática do delito se prevaleça de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função, tornando a vítima mais suscetível ao delito, o que justifica a majoração da pena.
Relações de parentesco são as decorrentes da consanguinidade ou da afinidade. Relações domésticas são as resultantes da vida no recesso do lar. Relações de coabitação estão ligadas à vida sob o mesmo teto. Relações de hospitalidade indicam a permanência de alguém em casa alheia, sem que haja coabitação, como no convite para pernoite ou almoço.
O termo autoridade é empregado como o de uso ilegítimo daquela no âmbito da vida privada, como a do tutor sobre o pupilo e de hierarquia em uma empresa.
Dependência econômica pressupõe o domínio financeiro de uma pessoa sobre a outra, de modo que a vítima não possa sobreviver condignamente sozinha. Superioridade hierárquica normalmente está ligada ao exercício de atividade no setor público, tanto na esfera militar quanto na civil. Assim, possui superioridade hierárquica o sargento em relação ao soldado, o delegado de polícia em relação ao investigador, o chefe de seção em relação ao escrevente etc.
Contudo, a norma disse menos do que pretendia, devendo ser empregada a interpretação extensiva. Como a norma se refere a emprego, que é a relação trabalhista existente entre empregado e patrão no setor privado, regido pela Consolidação das Leis do Trabalho, também a superioridade hierárquica na esfera privada enseja o aumento da pena.
Cargo é o público, ou seja, o criado por lei, com denominação própria, em número certo e pago pelos cofres públicos. Função é o conjunto de atribuições que o Poder Público impõe aos seus servidores para a realização de serviços no plano dos três poderes.
Assim, a subordinação hierárquica pode ser inerente ao exercício de cargo ou função (setor público) ou estar ligada ao exercício de emprego (setor privado). Quando a vítima do tráfico de pessoas é retirada do território nacional a conduta se mostra ainda mais grave, uma vez que será muito mais difícil sua proteção pelo Estado brasileiro.
Assim, ocorrendo a efetiva retirada da vítima do território brasileiro, a pena será agravada. São causas que, reconhecidas na sentença ou no acórdão, devem obrigatoriamente elevar a reprimenda, não ficando ao critério do julgador aplicar o aumento da pena ou não. O comando legal é taxativo.
Ao lado das causas de aumento de pena, que devem obrigatoriamente elevar a reprimenda quando reconhecidas, prevê o § 2º uma causa de diminuição da reprimenda, que, do mesmo modo, quando presente, deve reduzir a pena de um a dois terços, se o agente for primário e não integrar organização criminosa.
Com efeito, para que o agente tenha direito ao privilégio, terá de ser primário e não integrar organização criminosa. Não basta, assim, a presença de um dos requisitos, os dois devem estar presentes, sendo cumulativos.
Não vemos como aplicar o benefício para a pessoa já condenada criminalmente, muito embora primária. O dispositivo visa a aplicar menor reprimenda para aquele que envereda no crime pela primeira vez, demonstrando ser merecedor do benefício. Assim, a personalidade voltada para a prática de delitos e os maus antecedentes são óbices para a redução da pena.
No caso de o delito atingir mais de um país (crime transnacional) e havendo tratado internacional para sua punição, qualquer país signatário que dele tomar conhecimento poderá aplicar sua legislação (princípio da justiça universal). Além disso, os atos executórios do delito fatalmente ocorrerão em um país e o resultado advirá em outro, sendo competente para seu julgamento a Justiça Federal (art. 109, V, da CF).
Verifica-se, assim, que o Brasil está cumprindo os tratados internacionais ao fazer ingressar no ordenamento jurídico legislação que busca proteger as pessoas, mormente as mais vulneráveis, de seus exploradores, que infelizmente existem não só no Brasil, mas em todo o mundo.
Autor: César Dario Mariano da Silva é promotor de Justiça em São Paulo, mestre em Direito das Relações Sociais e especialista em Direito Penal. É professor da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo.