Marcelo Carlos Zampieri
Fabiana Silva
Professor da UFSM, UNIFRA, mestre em direito público
Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Maria. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Jurídicos Avançados – NEJA (UFSM)
1. DA DIVISÃO DOS PODERES DO ESTADO
Um perpassar de olhos na história demonstra que o relacionamento entre os que comandam e governam e aqueles que obedecem e são governados atravessou diversas mutações no passar dos anos.
Em meios aos influxos dessas mutações, surgiu a Teoria da Separação dos Poderes[3] que, sob a influência das concepções trazidas pelo liberalismo político do século XVIII, buscou uma reinterpretação das relações entre governante e governados
A pedra de toque da teoria da separação dos poderes reside na advertência no sentido de que a concentração de poderes em uma única pessoa poderá ensejar situações de arbitrariedade. À evidência
Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o Poder Legislativo é reunido com o Poder Executivo não existe liberdade (…) tão pouco existe liberdade se o poder de julgar não fosse separado do Executivo e do Legislativo (…) tudo estaria perdido se o mesmo homem (…) exercesse os três poderes[4]
As primeiras articulações em torno da divisão compartimentada das funções do Estado pode ser encontrada em Aristótoles, em sua obra “A Política”, onde o pensador grego desenvolveu as primeiras lições a respeito da Estrutura Estatal, demarcando e classificando as diferentes atividades do governo, definindo sua substância e os pormenores da composição em alguns aspectos coincidentes com as atuais atribuições dos poderes legislativo, executivo e judiciário[5].
No ano de 1690, o inglês Jonh Locke, inspirado pela ascensão do liberalismo político que ia de encontro aos ideais do absolutismo monárquico, publicou seus dois tratados sobre o governo (Primeiro Tratado sobre o Governo e Segundo Tratado sobre o Governo) em que, partindo de uma análise a respeito de importantes eventos verificados na história inglesa, especialmente as revoluções do século XVII, deixou mais nítida a idéia em torno de uma demarcação sobre os poderes do Estado, muito embora em dissonância com o modelo constitucional vigente[6].
No entanto, foi a partir da obra subscrita por Charles Louis de Secondat, Barão De La Brede de Monstesquieu, no ano de 1748, analisando as diferentes formas de governo ao longo da história (Monarquia, Despotismo e a República), utilizando-se da mesma constituição inglesa que inspirou Jonh Locke, reinterpretou a tese do filósofo inglês idealizando a teoria da separação dos poderes cujos princípios norteadores são adotados na atualidade em diversos países.
A teoria idealizada por Montesquieu está assentada na presença de poderes distintos e especializados, confiados a diferentes órgãos que se contrabalancem no seio do Estado como forma de evitar abusos decorrentes da concentração do poder.
Marcos Benrstein Seixas, em poucas palavras, sintetiza a idéia de Mostequieu:
(…) Se o poder do Estado é tal que é impossível fazer frente a ele, deve-se dividir esse poder, ou como se verá mais corretamente, se deve dividir o exercício desse poder para que uma parte do poder estatal seja exercído por um grupo de pessoas diferentes daquelas que exercem outra parcela desse poder, a fim de que cada grupo não se permita o exercício arbitrário do poder pelo outro. Desse raciocínio é lícito deduzir o que hoje costuma-se chamar de princípio da separação dos poderes.”[7]
Destarte, Montesquieu partiu da premissa segundo qual a concentração de poderes em uma única pessoa ou órgão deveria ser evitada, porquanto estar-se-ia fomentando a possibilidade de um poder sem limites. Assim, necessário se fazia um sistema de contenção do poder pelo próprio poder.
A distribuição dos poderes, em uma perspectiva atual, deverá ser compreendida como forma de distribuição orgânica das funções (o Poder Legislativo ocupa-se com as funções legislativas, o Executivo da aplicação das leis e o Judiciário cuida, principalmente, do exercício da atividade jurisdicional).
Essa divisão especializada dessas funções tem por objetivo, em especial, a salvaguarda dos cidadãos frente à possível prepotência do Poder Público e ao capricho dos governantes, na medida que permite o equilíbrio decorrente da interação entre as funções estatais, restringindo, a partir de um controle recíproco, possíveis abusos de parte dos agentes administrativos. Nesse aspecto, é que surge o tema da possibilidade do controle jurisdicional sobre os atos administrativos, exsurgindo, não como um exceção do princípio da separação dos poderes – na medida que permitiria a ingerência de um poder sobre o outro –, mas como importante instrumento a tornar efetivo todo o arcabouço de garantias contempladas pela Magna Carta, especialmente considerando o atual panorama identificado pela alteração nas relações do Estado com o cidadão onde perfil da Administração Pública restou cristalizado em princípios constitucionais definidores do seu regime jurídico[8].
2. ATOS ADMINISTRATIVOS COMO ESPÉCIE DO GÊNERO ATO JURÍDICO
Na lição corrente de R. Lomongi França, os ato jurídicos podem ser definitos como declarações de vontade simples ou ligadas a outros fatos, as quais se destinam a construir, modificar ou extinguir relações de direito[9].
Essa definição encontra consonância com a conceituação adotada pelo Código Civil brasileiro em vigor: Todo ato lícito, que tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos…[10]
Nas relações entre particulares, compreendendo as pessoa físicas, jurídicas, a figura do ato jurídico é objeto de análise, principalmente pelo direito civil.
Em sede de Direito Administrativo surge a figura do ato administrativo, espécie do gênero ato jurídico. Com efeito, o Estado, na persecução dos seus objetivos, realiza uma multiplicidade de atos através dos seus agentes, que exteriorizando de vontade Estatal, realizam atividades voltadas à produção de efeitos jurídicos diversos.
Na lição sempre precisa de Hely Lopes Meirelles, seguindo a diretriz traçada pelo Código Civil, acha-se compreendido no conceito de ato administrativo toda manifestação unilateral de vontade de parte da Administração Pública, que tenha por objetivo adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar direitos ou impor obrigações aos administrados ou a si própria, sem prejuízo da possibilidade de, na condição de comandos concretizadores da lei abstrata, serem objeto de controle de legitimidade, legalidade e, mais modernamente, licitude pelo Poder Judiciário[11]
Extrai-se do escólio de Diógenes Gasparini a compreensão de ato administrativo a partir de toda emanação unilateral de vontade, juízo ou conhecimento, predisposta à produção de efeitos jurídicos, expedida pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, no exercício de suas prerrogativas e como parte interessada numa relação, estabelecida na conformidade ou na compatibilidade da lei, sob o fundamento de cumprir as finalidades assinaladas no sistema normativo[12]
No entanto, seguindo a advertência de Odete Medauer, a despeito de costumeiramente ser encontrado na definição de ato administrativo a locução “vontade do Estado”, em analogia a vontade do agente na formação do ato jurídico entre particulares, no que diz respeito ao ato administrativo o elemento vontade não dever ser compreendido com um fato psíquico de natureza subjetiva, mas sim como um elemento objetivo considerando que a atividade da administração pública deve pautar-se pela impessoalidade e legalidade.[13]
Em última análise, o Estado Democrático de Direito, assentado na autoridade impessoal da lei, exige que os caprichos e desejos pessoais do Governante, apanágio do sistema absolutista de governo, sejam substituídos pelo interesse público expresso em um comando normativo fruto da vontade popular por disposição constitucional.[14].
3. CLASSIFICAÇÃO DOS ATOS ADMINISTRATIVOS: ATOS DISCRICIONÁRIOS E VINCULADOS
Os atos administrativos são objeto de classificação na doutrina sob diferentes aspectos. No entanto, voltando-se aos objetivos do presente trabalho, será considerada a distinção consagrada doutrinariamente que diferencia atos administrativos, considerando o grau de liberdade na atuação do agente responsável por sua realização, em atos administrativos vinculados e discricionários.
Os atos administrativos vinculados são aqueles identificados pela na ausência de liberdade do administrador que no momento da realização do ato deverá pautar sua conduta em conformidade com a forma e conteúdo consignado na lei, abstendo-se de juízos de conveniência e oportunidade[15].
Diferentemente disso, nos atos administrativos discricionários sobressai-se certa margem de discricionariedade do executor, franqueando-se a possibilidade de valorar subjetivamente a conveniência e oportunidade da realização do ato. Portanto, nessa espécie, é a própria lei que confere ao agente público uma margem para escolha da solução que melhor atenda os interesses públicos em jogo.
A discricionariedade administrativa encontra assento na complexidade e variedade dos problemas que o Poder Público deve solucionar a cada passo e para os quais a lei, por mais casuística que fosse, não poderia prever todas as soluções, ou pelo menos, a mais vantajosa para cada caso ocorrente. Nesse contexto, fixa-se o direito positivo com base na atividade legislativa, devendo, a partir de então, a administração pública pautar sua atividade conforme os contornos fixados pelo legislador no comando normativo. Porém, seguindo o raciocínio da Carlos Maximiliano, não mantém incólume o pacto celebrado entre o texto expresso na lei e a realidade objetiva. Embora fixado o direito positivo; porém, a vida continua, desdobrando-se em atividades diversas, manifestada sob aspecto múltiplos: morais, sociais e econômicos[16]. Dessa forma, não ser conferida certa margem de discricionariedade para administração pública, estar-se-ia engessando sua atividade, mormente diante das vicissitudes que giram em torno produção legislativa em nosso país.
Portanto, seguido a linha de entendimento sufragada Desembargador Eduardo Luz, a discricionariedade é a faculdade que adquire a Administração para assegurar em forma eficaz os meios realizadores do fim a que se propõe o Poder Público[17].
Todavia, discricionariedade não implica em absoluta emancipação do agente aos parâmetros legais e constitucionais sob pena de ser confundida com arbitrariedade. Hely Lopes Meirelles, ao comentar o tema, salienta que discricionariedade é liberdade de agir dentro dos limites legais; arbitrariedade é ação fora ou excedente da lei, com abuso ou desvio de poder. O ato discricionário, quando se atém aos critérios legais, é legítimo e válido; o ato arbitrário é sempre ilegítimo e inválido; nulo, portanto.[18]
4. DA MOTIVAÇÃO DOS ATOS ADMINISTRATIVOS
A necessidade de motivação dos atos administrativos pode ser concebida como corolário do Estado Democrático de Direito, estando inserida entre os postulados constitucionais sobre o qual deve estar pautada toda a atividade administrativa.
Modernamente, em nível de legislação infraconstitucional, a motivação dos atos administrativos foi objeto de consideração pelo legislador ordinário que através da edição da Lei nº 9.784, de 29.01.1999[19], fixou a necessidade de ser observado, dentre outros princípios que enumera, a necessidade de motivação dos atos realizados pela administração pública.[20]
Na dicção de Germana de Moraes, a motivação dos atos administrativos compreende, ao mesmo tempo, a necessidade de ser trazido a evidência os motivos de fato e os fundamentos jurídicos em que está apoiado o administrador para justificar a tomada de decisão[21]
Diferente não é a opinião de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, que considera a motivação do ato administrativo imprescindível para efeitos de permitir uma avaliação da razoabilidade do ato, franqueando aos administrados conhecerem os motivos que levaram a administração a adotar determinada medida, de forma a alcançar as finalidades consignadas implícita ou explicitamente na lei.[22]
Com efeito, através da motivação do ato administrativo torna-se possível aferir sobre a existência ou veracidade dos pressupostos de fato declinados pelo administrador, cuja análise e interpretação é necessária ao correto processo de subsunção da norma sobre o fato, conferindo, como conseqüência, ampla transparência a atividade administrativa.
A motivação não necessita de forma sacramental, exigindo-se, porém, a documentação dos atos praticados, o que permitirá sua posterior apreciação pela própria administração pública (ver súmula) ou por outros poderes do Estado nos limites da sua competência constitucionalmente delineada.
5. DA OBRIGATORIEDADE DE MOTIVAÇÃO DO ATO ADMINISTRATIVO
Hugo de Brito Machado, em importante estudo sobre os atos administrativos, consigna a existência de defensores de teses arbitrárias, inspirados nas doutrinas nazista e facistas, que influenciaram entendimentos no sentido da desnecessidade de motivação do ato administrativo. No entanto, para aqueles que sufragam cegamente a tese da desnecessidade de motivação o sobredito autor responde que tais pessoas “ não se convenceram de que o direito há de ser tratado como um sistema de limitações ao poder, e não como forma de justificação desse”[23]
O fato da Constituição Federal vigente, ao dispor sobre a fundamentação dos atos emanados pelos Poderes do Estado, faça referência exclusiva ao Poder Judiciário no âmbito de suas funções jurisdicionais ou administrativas,[24] não autoriza concluir sobre a prescindibilidade de motivação dos atos emanados pelos outros poderes. Com efeito, é entendimento já consolidado que mesmo nas decisões originadas dos agentes e órgãos do Poder Executivo, mesmo nessas hipóteses, exsurge extreme de dúvidas o direito do interessado a ter conhecimento dos motivos e do inter percorrido pelo administrador para tomada de decisão. A exigência de uma fundamentação acha-se jungida ao direito do administrado em influir na fundamentação do ato administrativo, sem prejuízo da possibilidade de ser essa motivação apreciada por instância administrativa superior (em caso de recurso administrativo)[25] ou mesmo ser submetida a apreciação do Poder Judiciário.
A respeito do assunto, Germana de Oliveira Moraes registra que muito embora o princípio da obrigatoriedade de motivação abrange todos os atos administrativos, porém, invocando a doutrina de Vieira de Andrade, admite situações onde a motivação mostra-se desnecessária, impossível, impraticável inconveniente ou inadmissível, sem esquecer de situações onde se sobrepõe outros valores prestigiados pela própria constituição como é o direito a intimidade[26].
O mesmo temperamento encontra-se em Hugo de Brito Machado, quando dispõe sobre os atos administrativos vinculados na medida que considera:
Em algumas hipóteses de atos vinculados, isto é naqueles que há aplicação quase automática da lei, por não existir campo de interferência de juízos subjetivos do administrador, a simples menção do fato e da regra de direito a ser aplicada mostra-se suficiente por estar implícita a motivação.[27]
No entanto, ressalvadas essas exceções, a doutrina, de um modo geral, considera que o dever de motivação dos atos administrativos é mais exigido principalmente naquelas hipóteses onde sobressai-se uma margem maior de discricionariedade do administrador na realização do ato.
Em nível de legislação infraconstitucional o tema relativo à necessidade de motivação dos atos administrativos foi objeto de consideração pelo legislador que, sem fixar distinções quanto à natureza discricionária ou vinculada do ato, enumerou no artigo 50 da Lei 9.784, de 29 de janeiro de 1999, os atos de motivação obrigatória, nos quais compreendem todos aqueles que neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses (inciso I); imponham ou agravem deveres encargos ou sanções (inciso II); decidam processo administrativo ou concurso ou seleção pública (inciso III); dispensem ou declarem a inexigibilidade de processo licitatório (inciso IV); decidam recursos administrativos (inciso V); decorram de exame de ofício (inciso VI); deixem de aplicar jurisprudência firmada sobre questão ou discrepem de pareces, laudos, propostas e relatórios oficiais (inciso VII) ou importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação de ato administrativo (inciso VIII).
6. DO CONTROLE JURISDICIONAL DOS ATOS ADMINISTRATIVOS
A motivação dos atos administrativos, além de conferir transparência à atividade administrativa no que diz respeito às razões de fato e fundamentos jurídicos das decisões, permite um auto controle pela própria administração[28] sem prejuízo do controle por outros poderes estatais, máxime do poder judiciário.
No entanto, a despeito de não subsistir dúvidas quanto à possibilidade da própria administração pública revogar ou anular seus atos, a mesma tranqüilidade não aparece quanto o tema tratado diz respeito à intervenção jurisdicional sobre a atividade administrativa, porquanto sempre causou celeuma a questão relativa ao grau de do poder judiciário sobre os atos administrativos.
Seguindo uma tradição sedimentada por longos anos, inspirada no modelo de Estado liberal, difundiu-se a teoria de que a intervenção jurisdicional limitava-se ao aspecto formal do ato administrativo, de forma que toda intervenção que ultrapassasse dos limites de aferição sobre o aspecto das formalidade do ato estaria desrespeitando o princípio da separação dos poderes.[29]
Todavia, uma retrospectiva sobre as transformações do Estado, especialmente no que diz respeito a sua intervenção nos diversos setores da vida social, trouxe consigo a necessidade de dar nova roupagem ao tema do controle jurisdicional da atividade pública.
É certo que a atividade administrativa ampliou suas fronteiras de atuação com os passar dos anos, não se podendo mais falar na figura do Estado absenteísta idealizado pela política liberalista. Diante dessa realidade, considerando que normatização não logra êxito em acompanhar o compasso da evolução das relações do homem com o Estado, Germana de Oliveira Moraes considera imprescindível conferir margem de discricionariedade ao ato administrativo como instrumento de otimização da realização do direito no caso concreto, obtendo-se, por conseguinte, maior eficácia a atuação administrativa.[30]
Nesse contexto, conforme deixa entrever a Doutora em Ciências Jurídicos-Politica linhas acima citada, o espectro do controle judicial dos atos administrativos, antigamente circunscrito a aferição da legalidade do ato frente a principal fonte do direito administrativo – a lei, ampliou-se para o controle da constitucionalidade dos atos administrativos. Em última análise, conforme destaca a ilustre autora, o Poder Judiciário, além de proceder análise sobre o aspecto da legalidade do ato administrativo, verificando sua conformidade com as regras jurídicas, deverá, outrossim, perscrutar sobre a juridicidade desse mesmo ato analisando sua conformação com os princípios relativos à administração pública estatuídos na Lei Fundamental[31].
Dessa forma, a conjugação dos princípios da separação dos poderes e da inafastabilidade da tutela jurisdicional exige uma aferição pelo Poder Judiciário acerca da legalidade de juridicidade do ato administrativo. Com isso, não pairam dúvidas que a extensão do controle jurisdicional do ato administrativo foi ampliada.
A jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul sufraga o entendimento no sentido da competência, constitucionalmente assegurada, do Judiciário coibir ou desfazer atos abusivos ou praticados com desvio de poder.[32]
Porém, essa assertiva não conduz à conclusão de que os atos administrativos, especialmente os não vinculados, possam ser revisados sem limites. Tal afirmação conduziria, insofismavelmente, ao atropelo no princípio da separação dos poderes, atingindo especialmente os atos emanados do Poder Executivo. Portanto, afastada a ilegalidade do processo administrativo e da conseqüente punição aplicada, não é lícito ao Poder Judiciário incursionar no mérito do ato administrativo ou na justiça ou injustiça da penalização. Tratando-se de ato discricionário, as razões sobre a ocasião de pratica-lo e sua utilidade, referindo-se ao mérito do ato, são da competência exclusiva da autoridade administrativa.[33]
7. CONCLUSÃO
A partir de um radiografia superficial sobre a temática relativa ao controle jurisdicional dos atos administrativos, abstraindo qualquer pretensão no sentido de alcançar uma verdade absoluta, mas tão somente desbastar o tema para efeitos de uma futura reflexão a ser desenvolvida em sede de projeto de pesquisa junto ao Núcleo de Estudo Jurídicos Avançados da Universidade Federal de Santa Maria, verifica-se que diante desse novo panorama, identificado pelo alargamento das fronteiras de atuação da administração pública sobre diversos setores da vida social, não há como deixar de reconhecer, em contrapartida, a necessidade de ampliar o grau de intervenção jurisdicional, ultrapassando os limites da legalidade, para infiltrar-se na análise da compatibilidade do ato administrativo, mesmo discricionário, como os princípios constitucionais, conciliando dessa forma os postulados insertos na Magna Carta que delineiam a harmonia e independência dos poderes e o princípio da inafastabilidade da apreciação jurisdicional.
[1] Professor de Direitos Comercial e Tributário na Universidade Federal de Santa Maria, Centro Universitário Franciscano de Santa Maria, Mestrando em Direito Público da Universidade de Santa Cruz do Sul-RS
[2] Fabiana Silva, Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Maria. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Jurídicos Avançcados – NEJA (UFSM)
[3] Há uma crítica generalizada em torno das expressão “divisão dos Poderes” ou “Tripartição dos Poderes” porquanto fomenta, aos menos avisados, a falsa idéia de que o Poder do Estado seria passível de divisão. Como é cediço, o poder estatal é uno e indivisível. Com efeito, constitui entendimento assente na doutrina que a soberania estatal é una e indivisível. No entanto, tais atributos inerente ao poder estatal não se constitui-se óbice para o reconhecimento acerca da possibilidade desse poder manifestar-se por órgãos e formas diferenciadas. Assim, muito embora não seja crível admitir-se a coexistência de mais de uma soberania no território de um Estado, tem-se que o exercício do poder pode manifestar-se através de diferentes órgão que, no exercício das suas respectivas funções, representam a manifestação do poder uno e indivisível do Estado.
Porém, muito embora conclua-se pela impropriedade dos vocábulos utilizados para definir o exercício das funções estatais a partir órgão especializados, a despeito disso, se reconhece não Ter a doutrina logrado êxito em elaborar melhor expressão, tanto que restou consagrada por vários autores e diversos ordenamentos jurídicos. Para um discussão mais aprofundada sobre o assunto da Teoria da Divisão dos Poderes, ver SEIXAS, Marcos Bernstein. A evolução da Teoria da Separação dos Poderes do Estado, in Revista Forense vol. 326, Abril., Forense, Rio de Janeiro, 1994
[4] MONTESQUIEU, Do Espírito das Leis. São Paulo. Ed. Difusão Européia do Livro, 1962, p.35
[5] . Na concepção aristotélica há no governo três partes: uma encarregada de deliberar sobre os negócios públicos, a segunda que exerce a magistratura e uma terceira que administra a justiça. No entanto, conforme advertência de Marcos Bertein Seixas, “apesar de especificar a composição e atribuição de cada uma dessas partes do governo, seria um engano afirmar que o pensador grego teria formulado a tese da separação dos poderes. Com efeito seu grande mérito foi o de ser o mais antigo pensador, cuja obra chegou a nosso conhecimento, a perceber a existência da estrutura do Estado (no caso Cidade-Estado), de uma lógica no exercício do poder que permitisse o estabelecimento de diferentes funções razoavelmente demarcáveis” ibidem, p. 106
[6] A proposta idealizada por Locke afasta da atual fisionomia da divisão das funções estatais por não conferir autonomia ao Poder Judiciário e estabelecer preponderância do Poder Legislativo frente aos demais, afastando-se do atual modelo constitucional. Ibidem, p. 107
[7] Ibidem, p. 107
[8] Nos termo dos Artigo 37 da Constituição Federal de 1988 “A administração pública, indireta ou funcional, de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá os princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade (…)
[9] FRANÇA, R. Limongi, Instituições de Direito Civil. São Paulo:Saraiva. 1988. p.125
[10] Artigo 81 do Código Civil
[11] MEIRELLES, Helly. Direito Administrativo Brasileiro, 19ª Ed. São Paulo: Malheiros. 1994, p. 12.
[12] GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 67.
[13] MEDAUER, Odete, A processualidade no Direito Administrativo. São Paulo:Revistas dos Tribunais, 1993, p.24.
[14] Nos termos do parágrafo único do artigo 1da Constituição Federal de 1988 todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
[15] Exemplo de ato administrativo vinculado é encontrado na licença para construção expedida pela autoridade municipal uma vez estando preenchidos pelo construtor os requisitos estabelecidos em lei.
[16] MAXIMILIANO, Carlos, Hermeneutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro:Forense, 1980. p.12
[17] Nesse contexto, para o Desembargador acima citado, “a discricionariedade adquire relevância jurídica quando a Administração quer custodiar em forma justa os interesses públicos entregues à sua tutela. É, então, a ferramenta jurídica que a ciência do Direito entrega ao administrador para que realize a gestão dos interesses sociais respondendo às necessidades de cada momento. Não é um instrumento legal que se concede ao administrador para fazer o que imponha o seu capricho; nem tampouco para criar normas de caráter legislativo; menos ainda para que intervenha ante uma contenda normativa, como acontece com a jurisdição. É unicamente, uma autorização limitada a um fim determinado, para que o Poder Público aprecie as condições presentes quando administre o interesse social especificado pela norma legislativa. É uma forma de atuar da Administração Pública para poder realizar uma reta administração dos diversificados interesses da coletividade” Apelação cível em mandado de segurança nº 5.150, 2ª Câmara Civil do TJSC, Florianópolis, Rel. Des. Eduardo Luz, 20.09.94)
[18] Op. Cit., P. 119
[19] Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal
[20] A administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança, interesse público e eficiência. (Artigo 2)
[21] MORAES, Germana de Oliveira. Obrigaroriedade de Motivação, Clara, Congruente e Tempestiva dos Atos Administrativos. In Revsita de interesse Público, ano 2, n. 08, outubro/dezembro 2000. São Paulo: Notadez, p.47
[22] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988, São Paulo, Atlas, 1991, p.151
[23] MACHADO, Hugo de Brito, Motivação dos atos administrativos e o interesse Público. Revista AJUFE. Estudos em Homenagem a Jesus Costa Lima e Hugo de Brito Machado. Fortaleza. Ceará, 1999, p.212
[24] Nos termos do artigo 93, inciso IX da Constituição Federal de 1998, todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas suas decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se interesse público exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e as seus advogados, ou somente a estes.
[25] A administração pública, no exercício do poder de autotutela do Estado, poderá anular e revogar seus próprios atos, mediante adrede e devido processo legal (leia-se processo administrativo) na esteira da súmula 473 do Supremo Tribunal Federal. Nesse sentido manifesta-se a jurisprudência: ADMINISTRATIVO PROCESSO – NULIDADE – GARANTIAS.Embora a Administração possa anular os seus atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos (Súmula nº 473, STF), deverá sempre fazê-lo mediante processo regular, assegurando aos interessados o contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV, CF). (Remessa “Ex Officio” nº 950408048-0/RS, 5ª Turma do TRF da 4ª Região, Rel. Amir José Finocchiaro Sarti. Parte A: Eudes Antidis Missio. Parte R: Conselho Regional de Eng. Arquitetura e Agronomia do RS – CREA/RS. Remetente: Juízo Federal da 12ª Vara de Porto Alegre/RS. Advogados Drs.: Neura Clara Missio Becker e Renato Luiz Csaszar e outro. j. 20.06.96, un.).
[26] ibdem. p. 48
[27] Ibidem p. 214
[28] Conforme nota de rodapé número 23
[29] Essa doutrina encontra guarida em precedentes jurisprudenciais: “Não pode o Poder Judiciário ultrapassar os lindes da garantia constitucional e dos vícios formais para ingressar no mérito da soberana decisão cassatória de mandato de Prefeito Municipal” (ACMS nº 5.325, de São José, julgada em 23/05/95).
[30] MORAES, Germanda de Oliveira. O controle Jurisdicional da Administração Pública. São Paulo:Diaética. 1999, p.12
[31] ibid.
[32] RJTJRS n. 88/159. No corpo do acórdão merece destaque o seguinte trecho:
“Ilegais quaisquer que sejam os atos, venham de que Poder vierem, deles deverá cuidar o Judiciário, pois é intolerável que no estado de direito se pratique a lesão à prerrogativa individual. O Poder tem autonomia para criar regras, mas depois de criadas não as pode desrespeitar, atingindo o direito de quem quer que seja”
[33] Ao poder judiciário e vedado apreciar, no exercício do controle jurisdicional, o mérito dos atos administrativos, razão pela qual descabe determinação para que a administração pratique, outra vez, ato discricionário por aquele anulado, pois sua renovação situa-se no campo impenetrável da conveniência e da oportunidade.
(Apelação nº 208119-0, 7ª. Câmara Cível do TAMG, Belo Horizonte, Rel. Juiz Lauro Bracarense, Unânime, 26.06.97, DJ 16.10.97