Brexit — a saída do Reino Unido do ponto de vista Jurídico

Autora: Melissa Guimarães Castello (*)

 

Na condição de cidadã britânica, acordo triste com o resultado do referendo ocorrido no Reino Unido na última semana, pois acredito que o modelo de integração regional da União Europeia (UE) implicou em grandes avanços para todos os países membros. Não obstante, o fato é que os britânicos, por apertada maioria, optaram por sair do bloco, de modo que se impõe a análise das consequências jurídicas dessa saída.

Para efetuar tal análise, a primeira pergunta é: o que é a União Europeia? Esse bloco de integração regional iniciou em 1952, com um tratado internacional que objetivava a livre circulação de carvão e aço entre os seis membros fundadores. Aquele bloco de integração econômica cresceu e se desenvolveu imensamente ao longo de seus mais de sessenta anos de existência, transformando-se em um bloco formado por 28 países — serão 27, após a saída do Reino Unido – que compõem um mercado comum, ou seja, uma região dentro da qual se assegura quatro liberdades: a livre circulação de bens, de serviços, de pessoas e de capitais. O Reino Unido ingressou na UE em 1972.

Para assegurar essas quatro liberdades, a UE tem um sistema legislativo próprio, chamado de direito comunitário europeu, que é escrito com base na autorização de cada país membro ao ratificar os tratados internacionais. Essa delegação de competência legislativa era um ponto de inconformidade dos britânicos, pois eles percebiam que a UE, ao legislar em nome do Reino Unido, limitava a soberania do país. O raciocínio é semelhante ao que alguns brasileiros fazem em relação ao Mercosul, que muitas vezes é apontado como uma “camisa de força” para o país: como o Brasil é membro de um mercado comum, não pode entabular negociações econômicas bilaterais com países não-membros deste mercado, tendo que negociar em bloco. Como a negociação em bloco é mais complexa do que a negociação bilateral, ela torna os avanços brasileiros no comércio exterior mais lentos, levando à percepção — equivocada, no meu entender — de que o Mercosul é prejudicial ao Brasil. A mesma dificuldade foi percebida pelos britânicos que votaram pela saída da UE.

Retornando ao tema “sistema legislativo da UE”, os tratados internacionaisratificados pelos membros desta estabelecem as regras de formatação da instituição União Europeia (criam o Parlamento Europeu, o Conselho Europeu, o Tribunal de Justiça da União Europeia, dentre tantos outros órgãos europeus), bem como regras para ingresso ou saída da organização internacional. Ao ratificar os tratados, os países membros delegam competência legislativa para o bloco regional, e, com base na delegação, esta aprova diretivas e regulamentos que impõem obrigações a todos. Asdiretivas europeias são os atos legislativos que traçam diretrizes gerais, que devem ser seguidas pelos países membros, mas que dependem de legislação a ser aprovada pelo Estado membro para entrar em vigor. Já osregulamentos são os atos legislativos de direito comunitário obrigatórios para todos os Estados membros, que podem ser imediatamente aplicados. Portanto, há três instrumentos legislativos principais: os tratados, as diretivas e os regulamentos. O que acontece com cada um deles, agora que o Reino Unido não quer mais ser membro da UE?

Os tratados internacionais, que foram aprovados e ratificados pelo país, devem ser denunciados, ou seja, o Reino Unido deve formalmente informar aos demais signatários que não quer mais ser parte deles. Nos termos do art. 49º.-A do Tratado da União Europeia, com a redação dada pelo Tratado de Lisboa, o Reino Unido deve notificar a sua intenção ao Conselho Europeu, e haverá uma negociação que estabelece os termos da saída. Os tratados continuam sendo aplicáveis ao Reino Unido até a data em que o acordo de saída entrar em vigor, ou até dois anos após a notificação efetuada pelo Reino Unido ao Conselho Europeu. Portanto, ainda há muita negociação pela frente, antes do Reino Unido efetivamente sair da UE.

As diretivas europeias, por outro lado, não precisam ser formalmente revogadas ou alteradas. Elas ordenam como os países membros devem legislar sobre determinados assuntos. Considerando que o Reino Unido atendeu ao ordenado nessas diretivas, fazendo as leis recomendadas, essas leis só deixarão de valer se e quando o Parlamento do Reino Unido decidir modifica-las. Ademais, essa modificação só será possível a partir do momento em que o acordo de saída entrar em vigor, pois é nessa data que o Reino Unido será liberado de suas obrigações para com a União Europeia, como exposto no parágrafo acima.

Por fim, os regulamentos europeus são a parte mais sensível dessa transição, como bem apontado por Elizabeth Prochaska em artigo publicado no jornalThe Guardian no dia 22 de junho deste ano. Como dito, os regulamentos são direito comunitário europeu imediatamente aplicado, independentemente de qualquer ato legislativo do Estado membro. Quando o Reino Unido deixar de ser membro da UE, as normas estabelecidas nos regulamentos simplesmente deixarão de existir no país. Esses regulamentos abarcam as mais variadas áreas do direito, em geral estabelecendo standards, tais como limites máximos de poluição e requisitos de segurança para a fabricação de medicamentos. As normas jurídicas europeias, que minuciosamente estabeleceram esses standards ao longo dos últimos quarenta anos, deixarão de existir para os britânicos, que terão que restabelecer essas normas através de legislação interna.

A delicada situação dos regulamentos europeus evidencia que o processo de saída do Reino Unido da União Europeia deve ser lento, gradual e bem pensado. Os britânicos precisarão de tempo para adaptar suas leis, legislando internamente sobre assuntos que eram tratados no âmbito da União Europeia. Há muito trabalho pela frente para o parlamento britânico!

 

 

 

 

Autora: Melissa Guimarães Castello é procuradora do Estado do Rio Grande do Sul, mestre em Direito pela Universidade de Oxford e professora de Relações Internacionais na ESPM-Sul.


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