Luiz Salvador*
Ao assumir o governo, Bush pegou a administração pública dos EUA com um superávit de US$ 3 trilhões. Em 12 meses, ele conseguiu fazer o superávit se transformar em déficit de US$ 2 trilhões.
A análise é do economista Joseph Stiglitz, prêmio Nobel em economia, reputado como o inimigo número 1 do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial (do qual foi diretor). Está chegando ao Brasil para proferir palestras e lançar a versão em português de seu livro mais recente, “A globalização e seus malefícios”.
Leia reportagem da Folha de S. Paulo – edição de 12 de setembro de 2002:
Para economista, se as taxas de juros externas continuarem moderadas, o país terá condições de pagar a dívida.
Brasil não entrará em colapso, diz Stiglitz
Claudia Daut – 16.ago.02/Reuters
O economista Joseph Stiglitz, que vem ao Brasil divulgar livro
SÉRGIO DÁVILA
DE NOVA YORK
Joseph E. Stiglitz, o inimigo número 1 do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial (do qual foi diretor), chega hoje ao Brasil. Vem dar palestras e divulgar seu livro mais recente, “A Globalização e Seus Malefícios”, que será lançado nesta semana em português. Traz consigo, porém, sua bagagem de opiniões polêmicas e originais, que lhe valeram o Nobel de Economia.
Em entrevista exclusiva à Folha, o economista diz que não há razão para que o Brasil entre em colapso. “Se as taxas de juros externas continuarem moderadas, o Brasil pode pagar sua dívida. E na hora em que pagar sua dívida, não há por que as taxas de juros internas continuarem altas”, afirma.
Ele explica também por que considera o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, mais perigoso para a economia brasileira do que o candidato petista à Presidência, Luiz Inácio Lula da Silva.
A economia americana tinha superávit de US$ 3 trilhões. Em 12 meses, Bush conseguiu fazer o superávit se transformar em déficit de US$ 2 trilhões, diz ele. “É uma conquista inacreditável, e esse tipo de política é uma ameaça enorme para a estabilidade econômica mundial.”
A seguir, os principais trechos da entrevista.
Folha – Há dias, o sr. escreveu no “The New York Times” que não há possibilidade de colapso da economia brasileira. Wall Street, no entanto, parece pensar o oposto. Quem está certo?
Joseph E. Stiglitz – Veja que depois de meu artigo as coisas se estabilizaram em Wall Street em relação ao Brasil, o que é uma reafirmação de que o mercado internacional reconhece que realmente não há razão para que o Brasil entre em colapso. Meu artigo dizia que se as taxas de juros externas continuarem moderadas, o Brasil pode pagar sua dívida. E na hora em que pagar sua dívida, não há por que as taxas de juros internas continuarem altas. Assim, há um equilíbrio consistente na expectativa racional, como se diz em economia. Traduzindo: não há nenhum problema (risos).
Folha – O sr. disse recentemente que o presidente Bush representa um risco maior para a economia brasileira do que qualquer um dos candidatos à Presidência. E que, entre Bush e Lula, o sr. escolheria Lula. O sr. poderia elaborar melhor esse pensamento?
Stiglitz – Não sei se fui citado corretamente nas frases, mas tenho a dizer que nós conhecemos os antecedentes do Bush, e seus antecedentes apontam para o abismo (risos). Nenhum presidente conseguiu inverter as finanças de um país tão rapidamente quanto ele. A economia americana, na janela de dez anos de orçamento que usamos, tinha superávit de US$ 3 trilhões. Em 12 meses, ele conseguiu fazer com que isso se transformasse em déficit de US$ 2 trilhões.
É uma conquista inacreditável, e esse tipo de política é uma ameaça enorme para a estabilidade econômica mundial. Além disso, ele tem coragem de propor mais cortes nos impostos para os ricos e para as grandes corporações. Também acho que as políticas que aumentam a desigualdade ameaçam a coesão social dos Estados Unidos.
Folha – Seu livro critica o FMI do começo ao fim. Em sua opinião, qual seria o papel ideal do Fundo?
Stiglitz – Primeiro, temos de recordar que o FMI foi fundado sob a liderança intelectual de John Maynard Keynes (1883-1946), para prover dinheiro para os países que estavam enfrentando dificuldades econômicas, para financiar a política fiscal expansionista, para que essas dificuldades não tivessem consequências nos países vizinhos.
E também para ajudar o país apenas pela preocupação com o próprio país. Isso é tudo o que eles não vêm fazendo nos últimos 20 anos, como vimos na crise do Sudeste Asiático e, mais recentemente, na Argentina e em outro países da América Latina. Eles estão fazendo o oposto de tudo o que era a intenção inicial do Fundo e do próprio Banco Mundial.
Folha – Na opinião do sr., por que houve esse desvio de rota?
Stiglitz – Se você voltar ao tempo da Grande Depressão [período de 1929-1932″, havia duas escolas de pensamento econômico. A primeira era relacionada ao mercado financeiro, e seus defensores acreditavam que o mais importante era a responsabilidade fiscal, a redução do déficit. A outra era a de Keynes, que dizia que o governo precisava gastar dinheiro. Intelectualmente Keynes venceu, e em todas as universidades do mundo se ensina a economia keynesiana. Infelizmente, no entanto, o FMI foi colocado no comando do interesse financeiro antigo, dos que ainda acreditavam nas velhas teorias que foram rejeitadas por Keynes.
Isso provavelmente está ligado ao fato de que o que mais preocupa o mercado é o pagamento das dívidas. Então, a maior preocupação não é o reforço dos fundamentos da economia dos países, mas o reembolso desses países devedores a seus credores. O FMI defende que, se você mantiver o balanço fiscal e diminuir a dívida, traz de volta a confiança na economia. Só que essas teorias não funcionam: você não traz a confiança de volta a uma economia que está em recessão.
Folha – O sr. não está livrando a cara dos governos corruptos na derrocada econômica de um país, principalmente na América Latina?
Stiglitz – Todos os problemas econômicos têm causas múltiplas, e o FMI obviamente não é a única fonte de problemas. Mas pense nisso: presuma que a Argentina, por exemplo, não tivesse tido corrupção nenhuma, tivesse um governo perfeitamente legal, e mesmo assim tivesse aceitado o conselho do FMI de manter a taxa de câmbio fixa e tivesse privatizado as estatais, como fez. Ainda assim teria entrado na crise atual?
A resposta é muito clara: sim, teria tido uma crise tão severa quanto a atual -ou talvez até mais severa. A honestidade não teria salvado a Argentina. A corrupção agrava os problemas, mas a honestidade não teria salvado a Argentina.
Folha – Seus críticos dizem que o sr. tem uma briga pessoal com o FMI e apontam a troca de cartas insultuosas com diretores da instituição como prova…
Stiglitz – Não é verdade. Estou completamente satisfeito com algumas mudanças feitas no FMI. Acho que é uma boa notícia que o Fundo esteja finalmente disposto a falar sobre moratória, por exemplo. Acho que é uma boa notícia que eles finalmente aceitaram que havia um excesso de condicionais no passado, que eles estão colocando mais ênfase na pobreza hoje do que no passado. Só que numa democracia há uma legítima diversidade de pontos de vista.
Assim, critico a administração Bush quando acredito que eles adotam uma política errada, critico quando eles não prestam atenção suficiente aos pobres, assim como critico o FMI e como critiquei a administração Clinton quando eles cometeram erros na globalização, apesar de ter feito parte do governo. O papel de um acadêmico e da sociedade acadêmica é muito importante: é exatamente o de servir de crítico e apontar as coisas que estão erradas. Essa é uma responsabilidade moral quando se tem o privilégio de ver de perto o que está sendo feito de forma errada, o que é o meu caso. Há poucas pessoas que têm esse ponto de vista privilegiado. Portanto os que podem comentar devem fazê-lo.
Folha – O que deu errado na globalização?
Stiglitz – O problema é o jeito como ela foi gerenciada. Há muita coisa boa acontecendo por causa da globalização. Melhoras na saúde, o alívio da dívida, a democratização do conhecimento. E os países do Sudeste Asiático que gerenciaram a globalização de acordo com seus próprios termos conseguiram crescer de uma maneira incrível e reduzir a pobreza.
Folha – O mesmo mau gerenciamento que levou ao colapso do Consenso de Washington?
Stiglitz – O Consenso de Washington foi errado desde a concepção. Refletiu uma visão ideológica muito particular e uma visão de economia muito simplista, uma teoria econômica que já tinha sido rejeitada com base em pesquisas extensivas feitas nos últimos 25 anos. E não só pelo que estava na agenda, mas pelo que ficou de fora. Foi insuficiente a atenção dada a assuntos sociais, à saúde e à educação. E sem estabilidade social não há estabilidade econômica. Veja que o país mais bem-sucedido da América Latina é o Chile, citado frequentemente como exemplo pelos ideólogos do Consenso.
Só que o Chile gerenciou a globalização em seus próprios termos, foi seletivo, não pegou os preceitos do Consenso como uma fórmula, mas deu enorme ênfase nas políticas sociais e na educação. O governo chileno ainda tem um papel muito importante na economia. Então teve mais chance de conseguir um bom balanço entre o liberalismo e a sua própria política. Os países precisam arrumar um jeito de adaptar suas políticas, e o principal erro foi achar que era possível ter uma única política para o mundo todo.
Folha – Os EUA correm o risco de se tornarem um novo Japão, como escreveu recentemente Paul Krugman?
Stiglitz – Não, não há essa hipótese. O perigo para a posição global dos EUA é depender da política econômica hipócrita de Bush. Cito como exemplos ele elevar os subsídios à agricultura norte-americana em níveis inéditos enquanto fala de um tratado de livre comércio das Américas [a Alca]. É esse tipo de hipocrisia econômica que prejudica a globalização.
Revista Consultor Jurídico
Luiz Salvador é advogado trabalhista em Curitiba e em Paranaguá, comentarista de Direito do Trabalho da Revista Consultor Jurídico, diretor do Departamento de Internet da Abrat, diretor de Assuntos Legislativos da Alal e integrante do corpo técnico do Diap.