Cabimento de recursos nos juizados de violência contra a mulher

Autores: Lorena Araújo de Oliveira e Davi Valdetaro Gomes Cavalieri (*)

 

A Lei Maria da Penha representa um marco de atuação do Poder Legislativo, uma vez que, ao criar mecanismos eficazes para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, tornou-se uma das leis mais efetivas dentro do vasto ordenamento jurídico brasileiro. Como se diz no antigo jargão, é uma lei que “pegou”.

Efetividade esta fundamental, tendo em vista que a referida lei tem o condão de combater um dos mais graves problemas que assola a sociedade brasileira: a impunidade do machismo por parte daqueles que sempre acharam que poderiam exercer um direito correicional em relação a quem não fazia o que eles mandassem, não se comportassem como eles esperavam, ou seja, as mais variadas formas de violência contra a mulher — e, por que não dizer, contra os filhos e filhas, muitas vezes usados como instrumentos de agressão à mulher.

Desde a promulgação da chamada Lei Maria da Penha, pouco se debateu acerca da natureza jurídica das medidas protetivas de urgência por ela disponibilizadas. Tendo em vista o caráter pedagógico da lei, viu-se a necessidade, através do presente trabalho, de difundir o entendimento jurídico acerca do cabimento do recurso em eventual indeferimento do pedido de medida protetiva requerida.

Natureza jurídica das medidas protetivas de urgência
A Lei Maria da Penha dedica um rol extenso de medidas protetivas que visa dar efetividade ao direito da mulher de viver sem sofrer violência em qualquer dos ambientes de seu cotidiano, seja no lar, no trabalho ou no lazer.

Trataremos, no presente trabalho, das medidas protetivas consideradas urgentes, as quais, em virtude da gravidade da situação, podem ser concedidas de ofício ou mediante provocação do Ministério Público ou da ofendida.

Um fator que demonstra ser a Lei Maria da Penha a de maior efetividade em nosso país atualmente é a possibilidade de a vítima postular medidas protetivas de urgência perante a autoridade policial, que adotará, de imediato, as providências legais cabíveis.

Esta previsão denota o caráter democrático, célere e desburocratizado de acesso à proteção estatal dispensada à vítima, uma vez que esta não necessita de advogado ou defensor público para pleitear a medida protetiva de urgência, bastando formular seu pedido diretamente à autoridade policial, que dará o devido encaminhamento ao juiz no prazo de 48 horas (LMP, art. 12, III).

Desde a entrada em vigor da Lei Maria da Penha, debates vêm sendo travados acerca de qual seria natureza jurídica das medidas protetivas de urgência nela previstas.

De um lado, autores afirmam que tais medidas são de natureza penal, pressupondo um processo criminal; de outra banda, doutrinadores entendem que as medidas possuem caráter civil, servindo para resguardar um processo cível.

Por sua vez, o renomado jurista Fausto Rodrigues de Lima (DIAS, p.141) afirma que a discussão é equivocada e desnecessária, pois as medidas protetivas não são instrumentos para assegurar processos. O fim das medidas protetivas é proteger direitos fundamentais, evitando a continuidade da violência em situações que a favorecem. Não são, necessariamente, preparatórias de qualquer ação judicial. Não visam processos, mas pessoas.

Depreende-se da leitura atenta da Lei Maria da Penha que, de fato, as medidas protetivas não são acessórias de um processo principal, e nem a ele se vinculam, razão pela qual podemos classificar as medidas protetivas de urgência em medidas cautelares inominadas, uma vez que resguardam direitos fundamentais à mulher, à criança e ao adolescente no âmbito das relações familiares e funcionais.

Embora as medidas protetivas não sejam acessórias ou instrumentos para assegurar um processo principal, consoante esposado acima, analisando o rol contido da Lei Maria da Penha, é de se perceber uma aproximação de determinadas medidas com a esfera criminal, enquanto de outras com a seara civil. A título de exemplo, observa-se um nítido caráter civil na medida de restrição ou suspensão de visitas do agressor aos dependentes menores (artigo 22, IV, da LMP), enquanto clara a feição penal na medida de proibição do agressor de aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas (artigo 22, III, “a”).

Feita a análise da natureza jurídica das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha, passa-se ao estudo dos recursos das decisões que versam sobre a aplicação de tais medidas no âmbito dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher.

A recorribilidade das decisões nos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher
Inicialmente, convém mencionar que a Lei Maria da Penha trouxe importante novidade ao retirar a violência doméstica do âmbito dos juizados especiais criminais, dispondo expressamente sobre a criação dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Ainda que não tenhamos tais juizados devidamente instalados em todo o território nacional, deve-se reconhecer o avanço contido na previsão legislativa, uma vez que tais órgãos contam com equipe de atendimento multidisciplinar, a ser integrada por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde, tudo para dar o mais amplo atendimento às demandas de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Feita esta breve digressão a respeito dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher, necessário analisar a questão prática atinente às decisões proferidas no âmbito dos referidos juizados e a sua recorribilidade.

Diante de um indeferimento de pedido de aplicação de medida protetiva de urgência, de que forma a postulante, vítima de violência, poderia se insurgir contra tal decisão?

Inicialmente, deve-se asseverar que as decisões proferidas nos mencionados juizados são plenamente recorríveis, em prestígio ao duplo grau de jurisdição que confere à vítima a possibilidade de análise de seu pedido por outra instância julgadora.

As decisões que versam sobre a aplicação das medidas protetivas de urgência possuem nítido caráter interlocutório, sujeita a recurso, conforme dito acima. A identificação do recurso cabível, se agravo de instrumento ou recurso em sentido estrito, dependerá da espécie de medida protetiva requerida, especificamente no que diz respeito à aproximação com a seara civil ou criminal.

Importante se faz ressaltar que, embora tenham recebido a nomenclatura de “juizados”, o rito previsto na Lei Maria da Penha para os feitos em trâmite nos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher não se confunde com o procedimento previsto nos juizados especiais cíveis e criminais. Dessa forma, não se há falar em recurso dirigido a turma recursal nos âmbito dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher, sendo inaplicáveis as disposições da Lei 9.099/95 para os referidos feitos.

Com efeito, o cabimento do recurso contra as decisões que versam sobre as medidas protetivas de urgência está intrinsecamente ligado à esfera de aproximação penal ou civil das próprias medidas.

Caso a medida protetiva seja de feição cível, a matéria deve ser analisada na seara cível, sendo cabível o recurso de agravo de instrumento a ser processado e julgado por Turma Cível do Tribunal de Justiça competente, afastando-se a competência da Turma Criminal.

Nesse sentido a jurisprudência:

PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. INDEFERIMENTO DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE NATUREZA CÍVEL. RECURSO PRÓPRIO. NÃO CONHECIMENTO. 1 As medidas protetivas de natureza cível e o processo criminal são absolutamente independentes e desafiam deslinde específico, sendo que o indeferimento daquelas desafia recurso próprio na esfera cível, mais especificamente o de agravo de instrumento, tornando-se inadmissível o manejo de apelação criminal. Afasta-se a competência da Turma Criminal em favor da Turma Cível. 2 Remessa dos autos a uma das Turmas Cíveis, competente para conhecer da matéria questionada[3].

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – AMEAÇA – INDEFERIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS – NATUREZA CÍVEL – INCOMPETÊNCIA DA TURMA CRIMINAL. I. As cautelas relacionadas no art. 22, incisos II e III, alíneas “a” e “b” da Lei 11.340/06 possuem natureza cível. O recurso interposto pelo indeferimento das medidas refoge à competência da Turma Criminal. II. Recurso não conhecido. Determinada a remessa a uma das Turmas Cíveis.

RECLAMAÇÃO. VARA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. INDEFERIMENTO DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE NATUREZA CÍVEL. RECURSO PRÓPRIO. NÃO CONHECIMENTO.
1 AS MEDIDAS PROTETIVAS DE NATUREZA CÍVEL E O PROCESSO CRIMINAL SÃO ABSOLUTAMENTE INDEPENDENTES E DESAFIAM DESLINDE ESPECÍFICO, SENDO QUE O INDEFERIMENTO DAQUELAS DESAFIA RECURSO PRÓPRIO NA ESFERA CÍVEL, MAIS ESPECIFICAMENTE O DE AGRAVO DE INSTRUMENTO, TORNANDO-SE INADMISSÍVEL O MANEJO DA RECLAMAÇÃO.

De outra banda, caso e medida protetiva possua feição penal, a decisão que versa sobre sua aplicação desafia a interposição do recurso em sentido estrito.

É necessário frisar, contudo, que, a despeito da falta de previsão legal acerca do recurso cabível, o que certamente tem causado enorme dificuldade para as partes, bem como à míngua de deliberação do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal, divergem as cortes acerca do recurso cabível e da turma competente para apreciá-lo.

Por tal razão, entende-se como extremamente salutar a aplicação do princípio da fungibilidade dos recursos em face das controvérsias pertinentes ao tema.

Lei consolidada
A Lei Maria da Penha está consolidada nos dias atuais como a lei de maior eficácia em nosso país, sendo símbolo do empoderamento feminino que garante a defesa dos direitos da mulher, como a preservação de sua integridade física, moral, sexual, psicológica, e a igualdade de gênero.

Graças ao advento da referida lei, milhares de mulheres não permanecem mais caladas diante de agressões recebidas em seu ambiente familiar, de trabalho ou lazer, estando cada vez mais encorajadas a denunciar os diversos tipos de violência que infelizmente sofrem.

Merece destaque, ainda, o espírito da Lei Maria da Penha e o seu caráter pedagógico, contribuindo de forma indelével no combate da impunidade e verdadeiramente educando muitos homens que, diante de uma lei de tamanha efetividade, despertam uma consciência social e passam finalmente a tratar as mulheres de modo digno, com o respeito que merecem.

Com a edição de uma lei de tamanha magnitude, o Estado cumpriu com um de seus objetivos, que é o de garantir que todos vivam de forma livre, digna e igualitária, sem sobreposição de um gênero em relação a outro.

Nas belas e singelas palavras de Simone de Beauvoir: “Que nada nos limite. Que nada nos defina. Que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância”.

 

 

 

 

Autores: Lorena Araújo de Oliveira é procuradora federal da Advocacia-Geral da União em Brasília, especialista em Advocacia Pública e Direito Público.

Davi Valdetaro Gomes Cavalieri é procurador federal da Advocacia-Geral da União em Brasília, especialista em Direito Público.


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