Autora: Márcia David (*)
A Advocacia-Geral da União é um órgão onipresente. É o único com braços em toda a estrutura de governo. Com suas unidades consultivas em todos os ministérios, a AGU presta consultoria e assessoramento jurídicos ao Poder Executivo, bem como faz a defesa em juízo dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Por elaborar pareceres e recomendações que podem viabilizar ou apontar equívocos insuperáveis na execução das políticas públicas do governo federal, que não raro impactam a sociedade e o mercado, a AGU necessita de uma blindagem adicional contra as frequentes tentativas de aparelhamento, situação que tem o único propósito de beneficiar poderosos carteis às custas do bem do serviço público. Essa camada protetiva é a governança corporativa.
Não é de hoje que a Advocacia-Geral da União precisa de um sistema administrativo transparente de seleção dos quadros de gestão, que a proteja de interferências políticas, a começar por reservar aos cargos de carreira as indicações de chefias. Não raro as chefias das consultorias junto aos ministérios são ocupadas por pessoas de fora da carreira de advogado da União. Temos exemplo recente com a nomeação de Daniel Romaniuk Pinheiro Lima, advogado da iniciativa privada, sem qualquer vínculo com a carreira de advogado da União, para chefiar a consultoria jurídica junto ao Ministério da Saúde — que, segundo apontam algumas reportagens, atuou para a mulher e filha do ministro. Os riscos do apoderamento de um cargo estratégico por um indicado que veio do mercado são altos e estão em descompasso com a governança corporativa.
Nunca é demais lembrar que a AGU e os advogados da União atuam em importantes políticas públicas, analisando contratos e convênios para liberação de recursos públicos de elevada monta. São responsáveis pela aferição de legalidade dos atos do poder público federal e orientam os gestores públicos a como praticarem atos sem ferir a Constituição e as leis do país. Não se pode esperar de um advogado da iniciativa privada o mesmo compromisso com a coisa pública e a impessoalidade que um advogado da União aprovado em concurso público. Suas interpretações e aconselhamentos podem ser elaborados com o intuito de beneficiar grupos de interesse, em vez de nortear a estrutura orgânica do Executivo no que se refere a normatizações e regulações que visam, dentre outros objetivos, reduzir o custo Brasil e prevenir a corrupção.
Quando essa lógica é violada, o governo é onerado. Foi assim quando o Ministério do Planejamento revogou no começo deste ano portaria que autorizava a compra direta de passagens aéreas. Os advogados da União haviam recomendado ao governo seguir orientação do Tribunal de Contas da União que desobrigava a União de fazer licitação pública para esse tipo de compra, com economia de alguns milhões de reais aos cofres públicos, que a própria Controladoria-Geral da União comprovara. Por critérios e razões ainda desconhecidos, o atual governo se contradisse e retornou ao padrão anterior, ressuscitando a figura do intermediário, as agências de viagem, encarecendo sobremaneira os custos das compras de passagens aéreas.
De pronto se vê que não se trata de pauta corporativa. Portanto, ao contrário do que se possa supor, a governança corporativa pressupõe que os quadros de servidores públicos foram escolhidos por meio de concurso público impessoal no qual são selecionados no mercado os melhores para, justamente, defender, gerir e cuidar do que é de todos. Essa premissa faz com que em órgão técnico as chefias imediatas tenham de ser ocupadas por quadros de carreira. Não é por outro motivo que, recentemente, a Caixa Econômica Federal, após os fatos envolvendo o então ministro Geddel Vieira Lima, optou por privilegiar quadros de carreira para os postos de direção e gerência que antes estavam ocupados, muitas vezes, por políticos ou por pessoas indicadas por políticos, ou seja, alheias ao quadro de empregados do banco.
Ao mesmo tempo, a indicação dos nomes para postos de comando não pode ser produto da livre escolha de uma pessoa apenas, a despeito da posição hierárquica de que goza, sob o risco de se estar criando uma engrenagem que trabalha para pavimentar pretensões políticas ou para atender a interesses de grupos privados, em vez de cumprir o seu papel constitucional. A Associação Nacional dos Advogados da União (Anauni) vem há anos combatendo as constantes investidas dos governos do momento de nomear chefias em seus órgãos de execução e em sua direção superior. Já tivemos, num passado não tão distante, procuradores-gerais e consultores-gerais de fora da AGU.
Mais recentemente, a advogada-geral da União, Grace Mendonça, ensaiou um movimento de perseguição contra chefias por não rezarem sua cartilha, ao exonerar dois advogados da União que bem exerciam suas atividades há pouco mais de um ano cada um, sem que houvesse argumentos técnicos que justificassem a decisão.
Os recentes episódios só demonstram o quão necessário é a consolidação da prática de nomeação do processo impessoal de membros efetivos das respectivas carreiras para todas as posições de chefia. Uma oportunidade perdida ocorreu na apresentação do PLP 337/2017, cujo texto, infelizmente, não traz avanços moralizadores para a AGU e para o país, mas, ao contrário, privilegia quem tiver o apoio incondicional do advogado-geral da União de plantão (no caso atual, Grace Mendonça, que age diuturnamente como uma ativista na sua defesa), ou seja, frontalmente na contramão da eficiência que se exige na gestão de órgãos e recursos públicos.
Ante tais episódios, que tumultuam a eficiência dos trabalhos na AGU, os advogados da União reafirmam a sua demanda histórica de implantação de sistema administrativo transparente de seleção dos quadros, que privilegie a estabilidade institucional e a legitimidade dos gestores. Não custa lembrar que, desde 2015, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, órgão da AGU que trata dos assuntos tributários, já tem sistema nesse sentido, cuja aplicação tem rendido o reconhecimento de toda a comunidade jurídica. Não existe qualquer razão publicável para que a Portaria PGFN 435/2017 (clique aqui para baixar o arquivo), que instituiu o “processo simplificado de seleção”, ou outra equivalente, não seja aplicada também a todos os demais órgãos da AGU. A seleção dos comissionados na PGFN leva em conta o currículo, a formação acadêmica, a experiência, o conhecimento provado em entrevista e a votação de colegas.
Tendo como modelo esse sistema, o processo de escolha técnica para os cargos de gerenciamento na AGU dará legitimidade aos gestores, a estabilidade institucional necessária para o bom funcionamento do órgão e a autonomia de trabalho indispensável para as chefias. Sem a ameaça de ser arrancado de seu posto sem prévio aviso e sem motivos técnicos — o que comprometeria o bom andamento de seu trabalho —, as chefias, uma vez legitimadas por processo de seleção entre seus pares após processo de seleção, terão tranquilidade para desenvolver e avançar em projetos que bem orientem os Poderes com o fim de dar segurança jurídica aos atos administrativos, notadamente quanto à materialização das políticas públicas, à viabilização jurídica das licitações e dos contratos e, ainda, na proposição e análise de medidas legislativas, que, se elaboradas sem o critério republicano, podem favorecer grupos de interesse.
O tempo do mandato e a forma de escolha das chefias dos órgãos da AGU não é uma questão corporativa ou que interessa apenas à Anauni, pois a eficiência da atividade-fim está diretamente relacionada à estabilidade institucional, à gestão participativa de processos e de pessoas, ao trabalho em equipe e à impessoalidade. Tal qual o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública, a AGU é uma instituição com previsão e assento constitucional cuja missão atribuída pelo constituinte não pode flutuar aos ventos volúveis dos humores pessoais e de interesses em muito afastados do espírito republicano. As instituições não erigem do acaso. Elas são a soma de esforços pessoais e coletivos, que ano após ano vão construindo o edifício institucional. O ministro aposentado Carlos Ayres Brito, ex-presidente do STF, recentemente lembrou que “a vida civilizada só pode gravitar em torno de instituições, e não em torno de pessoas”.
Autora: Márcia David é presidente da Associação Nacional dos Advogados da União (Anauni).