por Julio Guilherme Schattschneider
A Constituição, na cabeça do artigo 76, prevê expressamente que “o Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado”. Não é preciso qualquer conhecimento jurídico aprofundado para concluir que, portanto, a denominação do cargo do Chefe do Poder Executivo, queira ele ou não, é “Presidente da República”.
Não haveria qualquer problema mais sério se ele — o Presidente da República — solicitasse ou exigisse que seus assessores de confiança, familiares e amigos o tratassem por “Imperador”, “Rei”, “Comandante-em-Chefe” ou “César”. Seria ridículo, mas não ilegal. Ilegal seria se ele baixasse Decreto prevendo que, a partir de então, o Chefe do Executivo não se intitularia mais Presidente e sim, por exemplo, “Primeiro-Ministro”.
Mas a Constituição não nomeia apenas o Chefe do Executivo. Os integrantes do Senado Federal, obviamente, são os Senadores (§ 1º do artigo 46). O Chefe do Poder Executivo Municipal é o Prefeito (§ 6º do artigo 14). Os Legisladores Municipais são os vereadores (letra d do inciso VI do § 3º do artigo 14). Por isso, acredita-se que nenhuma Câmara cogitaria de emendar a Lei Orgânica do Município com o intuito de alterar a denominação dos seus integrantes para “Senadores Municipais” – a zombaria seria retumbante.
No âmbito do Poder Judiciário, a Constituição também é expressa. Os juízes do Supremo Tribunal Federal denominam-se Ministros (artigo 101), assim como todos os integrantes dos Tribunais Superiores (STJ, TST, TSE e STM). No sistema federal, tanto os magistrados dos Tribunais Regionais do Trabalho (artigo 115) quanto os dos Tribunais Regionais Federais Comuns (artigo 107) intitulam-se simplesmente “juízes”; que é exatamente a mesma denominação atribuída aos magistrados de primeiro grau (inciso II do artigo 106 e inciso III do artigo 111).
E é possível concluir, com absoluta segurança, que a expressão juiz não indica simplesmente o gênero; ao contrário, é a própria denominação do cargo. Basta ver que a Constituição expressamente declara que o Superior Tribunal de Justiça (inciso I do parágrafo único do artigo 105) é formado de “um terço dentre juízes dos Tribunais Regionais Federais e um terço dentre desembargadores dos Tribunais de Justiça, indicados em lista tríplice elaborada pelo próprio Tribunal”.
Eis aí uma curiosidade: o que é um Desembargador? Por uma questão de lógica — visto que a conclusão decorre da literalidade do texto da Constituição –, Desembargadores são juízes que integram os Tribunais de Justiça dos Estados. A denominação é mais antiga que a República e foi mantida pela tradição.
Um Tribunal de Justiça é a mais alta Corte do sistema judiciário estadual e, portanto, possui importância análoga à do STF no âmbito federal. E o que se diria de uma reforma do regimento do Tribunal de Justiça mediante a qual fosse alterado o seu próprio nome para “Supremo Tribunal Estadual” e os seus Desembargadores passassem a se denominar “Ministros Estaduais”? Sem dúvida, a chacota seria geral. E, talvez por isso, não haja registro de semelhante delírio na nossa história.
Por causa disso, é impressionante tenha passado despercebida a alteração do Regimento Interno do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (cujos integrantes são constitucionalmente denominados “Juízes”). Por meio dela (Assento Regimental nº 34, de 27-8-2001), foi alterado o parágrafo único do artigo 33, cuja redação passou a ser a seguinte: “os integrantes do Tribunal terão o título de Desembargador Federal, receberão o tratamento de Excelência e usarão capa como traje oficial; conservarão o título e as honras correspondentes mesmo depois de aposentados, sendo o título extensivo aos já anteriormente aposentados”.
Desembargador Federal? Como pode haver Desembargador Federal, se Desembargador — como se viu, por determinação expressa do Legislador Constituinte — é o integrante do Tribunal de Justiça do Estado? Não seria algo tão esdrúxulo quanto a existência de um “Presidente da República Estadual”? A explicação, conforme notícia veiculada pelo Tribunal no dia 6-9-2001 (http://www.trf4.gov.br/trf4/noticias/index.htm), é a seguinte:
“O objetivo da modificação é proporcionar uma identificação mais direta do nome do cargo com a condição de julgadores de uma corte, tendo em vista que o termo desembargador já é bastante conhecido da população quando se refere aos membros dos Tribunais de Justiça dos Estados”.
Duas questões: é muito provável que a esmagadora maioria da população não saiba o que seja um Desembargador ou uma “corte”; menos ainda a diferença entre um magistrado que integra uma “corte” e outro que não a integra. A segunda e primordial: qual o problema se um Juiz do Tribunal Regional Federal não se identificar de uma forma mais direta com um magistrado que induvidosamente ostenta a “condição” de julgador de uma corte?
E ainda que fosse algo extremamente insuportável ser confundido com um juiz de primeira instância, nada se poderia fazer, pois é essa a vontade do legislador constituinte. Tanto que o artigo 34 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional — plenamente recebida pela Constituição de 1988 — expressamente declara que “os membros do Supremo Tribunal Federal, do Tribunal Federal de Recursos, do Superior Tribunal Militar, do Tribunal Superior Eleitoral e do Tribunal Superior do Trabalho têm o título de ministro; os dos Tribunais de Justiça, o de desembargador; sendo o de juiz privativo dos integrantes dos outros tribunais e da magistratura de primeira instância”.
A coisa toda aparenta ser uma ninharia, mas não é. É o Poder Judiciário — a quem compete cumprir e fazer cumprir as Leis e a Constituição — praticando um ato direta e insofismavelmente contrário à própria Constituição e à Lei Orgânica da Magistratura Nacional. Trata-se, sem dúvida, de um péssimo exemplo.
Por isso mesmo é que defendo o seguinte ponto de vista: sendo algo tão relevante alterar a denominação dos cargos dos integrantes dos Tribunais Regionais da União, ao menos que isso se faça de forma válida, mediante a aprovação de mais uma Emenda à nossa já bastante remendada Carta. Assim, todos seriam Desembargadores – Federais, do Trabalho e Eleitorais. Por certo, continuaria a ser um tanto grotesco, mas pelo menos seria legítimo.
Julio Guilherme Schattschneider é juiz federal em Santa Catarina