Cartéis: definição e efeito sobre o bem-estar

Um cartel, definido em termos bastante amplos, é toda forma de coordenação de decisões entre empresas concorrentes, que elimine a rivalidade entre elas e busque a obtenção de lucros mais elevados do que seriam auferidos na ausência do cartel.

A última frase, que qualifica o sentido de “coordenação de decisões”, é bastante dúbia. Todas as decisões coordenadas necessariamente eliminam a concorrência, desde que definida em um sentido mais amplo, como capacidade das empresas agirem independentemente (1), em condições de incerteza quanto às decisões e às reações dos concorrentes. Qualquer decisão coordenada, ademais, possivelmente objetiva ou busca criar condições para a obtenção de lucros mais elevados do que seriam obtidos sem a existência delas.

Deve-se distinguir, portanto, entre, de um lado, o cartel aceitável, que, por ter essa condição, não é chamado de cartel, mas de “colaboração entre competidores”, e, de outro, o cartel ilícito.

Os Antitrust Guidelines for Collaborations among Competitors (2000), da Federal Trade Commission e do Department of Justice, do governo norte-americano, trazem pormenorizada análise do tema, razão pela qual basta mencionar que na raiz da distinção entre o “bom” e o “mau” cartel encontra-se a presença ou a ausência de objetivos virtuosos, que versem latu sensu sobre o uso mais eficiente dos recursos disponíveis entre os concorrentes. Na presença de efeitos compensatórios, a autoridade julgadora deve aplicar a regra da razão, procedendo ao balanço dos prós (eficiências almejadas e obteníveis) e contras (riscos de aumento de preços, redução da produção etc.) da colaboração entre concorrentes. Em outros, quando se está diante de acordos que não tenham outros objetivos que não sejam a supressão da concorrência e a criação de condições para o exercício de posição dominante, nos termos dos Guidelines, tais acordos são considerados ilegais per se:

“Agreements Challenged as Per Se Illegal. Agreements of a type that always or almost always tends to raise price or to reduce output are per se illegal. The Agencies challenge such agreements, once identified, as per se illegal. Types of agreements that have been held per se illegal include agreements among competitors to fix prices or output, rig bids, or share or divide markets by allocating customers, suppliers, territories, or lines of commerce. The courts conclusively presume such agreements, once identified, to be illegal, without inquiring into their claimed business purposes, anticompetitive harms, procompetitive benefits, or overall competitive effects. The Department of Justice prosecutes participants in hard-core cartel agreements criminally.” (FTC/DOJ, 2000)

A menção à ilegalidade per se da prática de cartel foi feita propositadamente, sendo tema caro e espinhoso no meio jurídico. Não pertencendo a ele, apenas participando dele, fica-se livre para uma simples opinião.

Há acordos analisados pela regra da razão, porque não estabelecem mecanismos de fixação de preços, divisão de mercado, entre outras restrições concorrenciais mencionadas acima e analisadas em detalhe nos Guidelines. Nesses casos é feito o cotejo de possíveis riscos à concorrência e ganhos de eficiência proporcionados pelo acordo.

Mas o que dizer de um acordo com as seguintes características: (i) todos os concorrentes em dado mercado estão próximos da plena utilização de suas respectivas fábricas e o mercado segue em crescimento, lento, mas contínuo, (ii) é estabelecido entre todos os concorrentes um cronograma de ampliação da capacidade produtiva (por exemplo, primeiro um, depois o outro e assim sucessivamente), bom como regras de compensação entre as empresas envolvidas.

O exemplo refere-se a um tipo de divisão de mercado. Aspecto fundamental da concorrência entre capitais, que é o investimento (e não só o preço!), deixa de existir. Em compensação evita-se que o retardamento de decisões individuais comprometa o abastecimento do mercado (com elevação dos preços). Do mesmo modo, elimina-se o problema que ocorreria caso cada empresa independentemente ampliasse sua capacidade de oferta, de modo que, no todo e ao final, haveria baixa utilização da capacidade produtiva instalada total e, conseqüentemente, desperdício de recursos e aumento do custo médio de produção.

O que se afirma, e que pode parecer ingênuo, é que é muito tênue a separação entre um acordo lícito e eventualmente ilícito (2). No exemplo acima, o busílis talvez recaia apenas sobre o caráter secreto ou público (na forma de um ato de concentração) do acordo. Como um contrato submetido ao escrutínio das autoridades competentes (um ato de concentração), um acordo com aquelas características pode ser visto sob ótica diferente. Todo acordo / contrato que trate de temas quaisquer de natureza concorrencial deve ser analisado sob a regra da razão (e o será na prática), sem atender a qualquer posição dogmática pré-estabelecida. Vale a redundância: só não devem ser analisados os argumentos de defesa quando estes, na prática, são inexistentes.

Retomando o curso da caracterização econômica dos cartéis, esses são equiparados a um monopólio para efeito de determinação de impactos sobre o bem-estar dos consumidores do(s) produto(s) ou serviço(s) comercializado(s). Como ilustra o gráfico abaixo (já que se trata de análise econômica), em um mercado perfeitamente competitivo a oferta de cada firma individualmente considerada é tão pequena que, variando, não é jamais capaz de alterar as condições de equilíbrio dadas pelo mercado (3). Assim, o mercado como um todo apresenta a curva de demanda D, mas a empresa individual tem a curva de demanda d’, perfeitamente elástica para o preço de equilíbrio Pc = 10 (a esse preço, a empresa poderia aumentar indefinidamente sua própria oferta atomística, sem provocar uma redução do preço). A empresa competitiva, então, deve limitar-se a ajustar a quantidade produzida de forma a igualar sua receita marginal Rc (igual a Pc = 10) ao seu custo marginal CMg, em Qc = 10. O preço Pc = 10, portanto, é um preço de equilíbrio, ao qual a empresa competitiva aufere lucros normais ou, justamente, lucros competitivos.

Não há estímulo para aumentar a quantidade vendida, pois o aumento da receita obtida com a 11ª unidade vendida (e seguintes) não compensaria o aumento do custo incorrido com a produção da 11ª unidade produzida (e seguintes). De maneira semelhante, não seria racional restringir vendas, pois, mantido inalterado o preço de mercado, a redução dos custos por unidade não produzida não compensaria a perda de receita por unidade não comercializada. No mercado competitivo, a rigor, verifica-se muito pouca concorrência, identificada como estratégias individuais que visem aumentar vendas, lucros ou qualquer outro objetivo. Exceto pelas mudanças nas condições (impessoais e exógenas) que dizem respeito a todo o mercado demandante e/ou ofertante, as empresas competitivas limitam-se a ajustar quantidades a serem produzidas ao preço dado pelo mercado.

A situação de um monopólio ou de um cartel constituído por todas as empresas atuantes no mercado em questão é expressa pelo “reconhecimento” da verdadeira curva de demanda do mercado. A empresa monopolista ou o cartel tem ciência de que, ao variar as quantidades ofertadas, o preço varia na direção inversa, mas não na mesma proporção, o que é expresso graficamente pela receita marginal Rm negativamente inclinada. O equilíbrio da firma (igual ao do mercado) passa a ocorrer na quantidade Qm=6, onde a receita marginal igual o custo marginal, ao preço Pm=17.

Na ausência de efeitos compensatórios aceitos como válidos, a cartelização traz sem dúvida perdas de bem-estar para o conjunto dos consumidores dos produtos em questão. Em relação a um mercado perfeitamente competitivo, como na ilustração acima, essa perda do chamado excedente do consumidor é igual (desconsiderando a transferência de renda para os produtores) a área em cinza no gráfico, correspondente tanto à diminuição da quantidade consumida (de Qc=10 para Qm=6), quanto ao preço maior pago pela quantidade consumida remanescente (de Pc=10 para Pm=17).

No entanto, retomando para concluir, cartéis (ou o eufemístico “formas de colaboração entre concorrentes”) sempre significam a eliminação de “alguma” concorrência (e quanto mais abrangente esse conceito, maior o escopo do que há para ser eliminado). É razoável supor que os acordos minimamente formalizados possam ter efeitos líquido positivos sobre o bem-estar, quando trazem suas restrições de natureza concorrencial como algo acessório ou instrumental para se alcançar objetivos publicamente defensáveis. Na ausência de evidências formais do acordo, a identificação de eficiências ou efeitos compensatórios pelas próprias empresas envolvidas pode ser entendida como uma confissão de culpa. O embate, por isso, situa-se normalmente na demonstração (indireta) do cartel. Ainda assim, como regra, não se deve presumir (por razões de ordem econômica e, possivelmente com mais acerto, por razões jurídicas) a ilegalidade dos acordos sobre preços, quantidades ou divisões de mercado (para citar os casos clássicos).

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Referências Bibliográficas

Federal Trade Commission / Department of Justice (2000). Antitrust Guidelines for Collaborations among Competitors. Disponível em http://www.ftc.org.

OCDE / Banco Mundial (1998). A Framework for the Design and Implementation of Competition Law and Policy. Disponível em http://www.oecd.org.

Salomão, Calixto (2001). “Apontamentos para Formulação de uma Teoria Jurídica dos Cartéis”. Revista de Direito Mercantil, vol. 121.

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Notas

1 “Agreements among competitors, often referred to as ‘horizontal’ agreements, are implicit or explicit agreements that restrict competitors’ ability to act independently. The term encompasses a broad range of conduct, from joint ventures, joint advertising or marketing, or trade association activities, to price-fixing and bid rigging.” OCDE / Banco Mundial (1998).

2 Calixto Salomão (2001) afirma que o valor jurídico a ser preservado contra a prática de cartel é a concorrência. “É, portanto, o objetivo realizável de dominar o mercado através de ajuste entre empresas fator chave para caracterização da antijuridicidade.” Parece haver concordância sobre a necessidade de uma abordagem menos esquemática, que privilegie a análise caso a caso, orientada, acima de tudo, para a manutenção da concorrência. Pode-se até pinçar a seguinte frase no referido artigo: “Isso não significa tender a uma regra per se sobre cartéis que impeça qualquer tipo de acordo.” Em se tratando de um acordo entre concorrentes, quanto ou que tipo da concorrência pode ser suprimida em favor da obtenção de níveis mais elevados de eficiência (em consonância com o § 1° do art. 54 da Lei 8.884/94)?

3 Esse “modelo” depende crucialmente de hipótese restritivas acerca, por exemplo, do comportamento dos custos até o limite da capacidade de produção da empresa (que não podem ser ao menos constantes; têm de ser crescentes), do comportamento dos consumidores diante dos produtos ofertantes (eles têm de ser indiferentes às marcas ou qualquer outra forma de apelo comercial, subjetivo ou objetivo, associado ao produto, que, assim, seria perfeitamente homogêneo para os consumidores). Não são hipóteses apenas simplificadoras, formuladas para facilitar e apreender o essencial da análise. Se deixadas de lado, os resultados do “modelo” caem por terra, inclusive para fins normativos, mas isso é outra discussão.

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João Paulo Garcia Leal
Mestre em Economia para UNICAMP, Economista da Edgard Pereira & Associados

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