Chegou a hora de emancipar o dano temporal e apronduar os debates sobre ele

Autor: Heder Rubens Silveira e Souza (*)

 

Tema palpitante nas relações de consumo é o que versa sobre a existência de um dano provocado pelo desperdício de tempo.

Os pontos nodais da questão gravitam em torno de saber-se o tempo perdido indevidamente merece reparação, ese comporta rubrica à parte do dano moral, como a que vem ganhando forma sob o epíteto de “dano temporal”.

A vida moderna, em irrefreável metamorfose, opera em nova dinâmica, sendo plausível – e até desejável – que novos institutos surjam para preencher as lacunas deixadas pelas novas realidades. “Só há transformação quando muda o eixo das ideias”, já dizia, com razão, Joaquim Nabuco[1].Assim, novos fenômenos, novos direitos.

A propósito dessas constantes mudanças, o ministro Herman Benjamin, em artigo intitulado Teoria da Qualidade [2] – voltado à análise dos vícios redibitórios, mas cujo raciocínio aqui também se aplica –, pontificou que “Inimaginável seria o desenvolvimento do direito do consumidor sem uma modificação profunda nas bases e sistematização da responsabilidade civil”, anotando, em seguida, que “qualquer alteração passa, necessariamente, por uma releitura da questão da qualidade”.

De fato, o direito à qualidade, na nossa ótica, é o principal pilar de sustentação do reconhecimento do prejuízo temporal como categoria independente de dano.

Com efeito, é incontestável alargamento das modalidades de dano e suas respectivas espécies indenizatórias.

Nesse sentido, vide o enunciado 445 da V Jornada de Direito Civil do CJF/STJ: “A expressão “dano” no artigo 944 abrange não só os danos individuais, materiais ou imateriais, mas também os danos sociais, difusos, coletivos e individuais homogêneos a serem reclamados pelos legitimados para propor ações coletivas”.

É dizer: se o vocábulo “dano” plasmado no artigo 944 do Código Civil abrange os danos sociais, por que não albergaria, também, o dano temporal? Traga-se à ribalta o brocardo odiosa restringenda; favorabilia amplianda(restrinja-se o odioso; amplie-se o favorável).

Dessa compreensão não dissente Carlos Maximiliano[3]:

“A palavra, quer considerada isoladamente, quer em combinação com outra para formar a norma jurídica, ostenta apenas rigidez ilusória, exterior. E por sua natureza elástica e dúctil, varia de significação com o transcorrer do tempo e a marcha da civilização. Tem, por isso, a vantagem de traduzir as realidades jurídicas sucessivas. (…) debaixo do invólucro fixo, inalterado, dissimula pensamentos diversos, infinitamente variegados…”.

Nessa senda, vale invocar um antigo aresto do STJ, que preconiza uma interpretação lata do instituto do dano, encampando raciocínio que se amolda, hoje, ao debate do dano temporal (REsp 4236, DJ 01/07/1991): “os termos amplos do artigo 159 do Código Civil hão de entender-se como abrangendo quaisquer danos…”.

Ora, o correspondente do artigo 159 do Código Civil de 1916, no Código Civil de 2002, é o artigo 186, que, na esteira daquele comando, menciona, genericamente, “dano”, para depois complementar a frase com a locução “ainda que exclusivamente moral”. E, a propósito do alcance vocabular no texto legal, já advertia o festejado Carlos Maximiano: “Pode a lei ser mais sábia que o legislador; porquanto abrange hipóteses que este não previu”[4].

Nesse ritmo, tem-se que os métodos de interpretação que devem guiar o exegeta no deslinde dessa vexata quaestio são o sistemático e, principalmente, o evolutivo, como resultado de uma imposição do progresso, adaptando-se “velhas fórmulas aos tempos modernos”, na linha do magistério doutrinário de José Flóscolo da Nóbrega e Paulo Nader[5].

Adicionalmente, ainda no plano do Código Civil, o injustificado desperdício de tempo pode encontrar aderência, também, ao que dispõe o art. 187 do referido Codex, na medida em que o fornecedor, com o seu desidioso e negligente agir, incorre em patente abuso de direito, por ofensa à boa-fé, ao deixar de observar os deveres anexos de proteção e cooperação recíproca, bem como por sujeitar-se à função de controle,inibitória de desvios comportamentais e condutas ilegítimas, emanada do referido princípio.

Em sentido convergente, cumpre assinalar que o próprio instituto do dano moral vem passando por consideráveis mudanças nos últimos anos, como a concepção de novos requisitos para caracterização do dano suportado pela pessoa física, com o abandono, por respeitável corrente jurisprudencial, do requisito da reação psíquica (dor, sofrimento etc.) para que tenha lugar o pleito indenizatório.

Nesse passo, segundo a ministra Nancy Andrighi (REsp 1.292.141, DJe 12/12/2012) –, basta uma “conduta injusta” para desencadear o dever de indenizar, verbis:

“…não é a dor, ainda que se tome esse termo no sentido mais amplo, mas sua origem – advinda de um dano injusto – que comprova a existência de um prejuízo moral ou imaterial indenizável. (…) Assim, em diversas oportunidades se deferiu indenização destinada a compensar dano moral diante da simples comprovação de ocorrência de conduta injusta e, portanto, danosa”.

Na mesma vertente, segue o escólio do min. Luís Felipe Salomão (REsp 1.245.550, DJe 16/04/2015):

“O dano moral não se revela na dor, no padecimento, que são, na verdade, sua consequência, seu resultado. O dano é fato que antecede os sentimentos de aflição e angústia experimentados pela vítima, não estando necessariamente vinculado a alguma reação psíquica da vítima”.

Examinando a íntegra desse último julgado, percebe-se que o eminente ministro, abeberando-se na lição de notáveis doutrinadores, afirma ser “possível concluir que o dano moral se caracteriza pela ofensa a determinados direitos ou interesses.”

Palmilhando essa interpretação abrangente do dano moral, seria factível compreender nela, igualmente, o dano temporal, por ser possível aferir uma ofensa proveniente de uma conduta injusta consubstanciada em um flagrante desrespeito ao consumidor.

Sucede que, malgrado os acórdãos acima mencionados defendam essa exegese ampliativa do instituto – o que, decerto, abarcaria o próprio dano temporal –, consulta ao repositório de jurisprudência do STJ permite encontrar julgados também recentes em que, nos votos proferidos, há expressa menção aos pressupostos do “sofrimento” ou do “abalo excepcional” para caracterização do dano moral.

Confiram-se, por exemplo, os seguintes: AgRg no AREsp 799.330/SP, rRelator ministro Raul Araújo, DJe 22/02/2016; AgRg no REsp 1.408.540, relator ministro Antônio Carlos Ferreira, DJe 19/02/2015; REsp 1.395.647, DJe 19/12/2014, trecho do voto do ministro João Otávio de Noronha.

Nessa ordem de ideias, parece que manter o dano temporal atrelado ao dano moral é solução reducionista e pouco judiciosa. A uma, por negar a patente autonomia daquela espécie de dano; a duas, pela tendência de recusa à reparação do desperdício de tempo, mercê do pendor de querer enquadrar tal fato nos chavões “mero aborrecimento” e “mero dissabor” [6], de há muito arraigados como “filtros” de aferição do dano moral.

Noutro quadrante, ao examinar as diretrizes doutrinárias e jurisprudenciais existentes sobre dano moral, fica clara a exigência de uma ofensa mais severa e de maior gravidade suportada pelo lesado[7]. É como se o dano moral, em linha de princípio, reclamasse um agravo mais sério à dignidade da pessoa, estando, por isso, situado um grau acima da lesão provocada pelo dano temporal.

Noutra vertente, para uma melhor compreensão do tema,vale examinar os fundamentos dos precedentes que deram origem à súmula 387 do STJ (É lícita a cumulação das indenizações de dano estético e dano moral).

Sondando o inteiro teor do REsp 65.393, DJ 18/12/1995, o ministro Ruy Rosado de Aguiar, ao sopesar as consequências do acidente ferroviário em pauta naquele recurso especial – com a experimentação de dor, a perda de um projeto de vida, a limitação das potencialidades do indivíduo –, concluiu que todas essas perdas “podem existir sem o dano estético, sem a deformidade ou aleijão”, o que estaria a justificar o reconhecimento de algo distinto do dano moral.

Noutro julgado da Corte (REsp 595.866/RJ, DJ 04/10/2004) que também serviu de baldrame para confecção do aludido verbete, o ministro Cesar Asfor Rocha, assinalou: “Permite-se a cumulação de valores autônomos, um fixado a título de dano moral e outro a título de dano estético, derivados do mesmo fato, quando forem passíveis de apuração em separado, com causas inconfundíveis”.

A repercussão em esferas distintas do lesado é, de fato, um forte argumento para dirimir o impasse existente entre dano temporal e dano moral como espécies distintas.

Reflitamos com um caso emblemático de injusto desperdício de tempo: qual seria o estímulo que as instituições financeiras teriam para buscar a melhoria do atendimento, se uma espera de dois horas numa fila é enquadrada como fato “normal” do dia a dia?

Em 2012, o STJ, ao enfrentar caso símile, deferiu a reparação vindicada, porém registrou que “O dano moral decorrente da demora no atendimento ao cliente não surge apenas da violação de legislação que estipula tempo máximo de espera, mas depende da verificação dos fatos que causaram sofrimento além do normal ao consumidor” (Informativo 504 – REsp 1.218.497).

Como se vê, o dano moral ainda está muito condicionado à ideia de sofrimento e dor, sendo que a ocorrência do dano temporal, em que pese merecedora de punição e reparação, não necessariamente desencadeará tais consequências.

Em última análise, mantido o atrelamento dos institutos, a tendência é a inviabilização do pleito indenizatório por prejuízo de tempo, pois serão muito raras as situações em que o consumidor, por causa da desídia do fornecedor, experimentará um autêntico e verdadeiro sofrimento. Ou seja, muitas vias-crúcis vivenciadas, que bem se ajustam ao figurino do transtorno, mas não caracterizam um padecimento, ficarão sem uma justa indenização, com o incentivo à precarização das já degradadas relações de consumo.

Noutro vértice, o reconhecimento do dano temporal como tipo autônomo encontra conforto no princípio da reparação integral, uma vez que o caso concreto, pelas suas nuances, pode revelar um dano de ordem moral aliado a um dano temporal.

Imagine-se o exemplo:um usuário de plano de saúde que, apesar da recomendação médica de imediata cirurgia cardíaca, por risco de morte, experimenta a angustiante e aflitiva demora de um mês para obter uma recusa do setor burocrático do convênio médico. Há, neste caso, indiscutivelmente, uma dupla ofensa passível de dúplice reparação: 1ª) dano moral pela negativa infundada do procedimento cirúrgico; e 2ª) dano temporal pela ineficiência, desleixo e falta de qualidade do serviço prestado, ante a injustificada demora na apreciação do pleito do paciente/consumidor.

Sendo assim, a persistir a equivocada unificação desses institutos sob o signo de dano moral, corre-se o risco, muitas vezes, de se negar, indevidamente, o dano temporal, ou mesmo diluí-lo no dano moral, mensurando o valor da indenização deste último em patamar inferior, frustrando os vetores compensatório e pedagógico da reprimenda.

Em sentido contrário, alerta Fábio Ulhôa Coelho[8] que “Os acidentes inevitáveis da era contemporânea não deixarão de acontecer pelo aumento no valor das indenizações”. Com a devida vênia, discorda-se, veementemente, dessa visão cética, pois a bússola norteadora do arbitramento do valor das indenizações é a razoabilidade, mandamento que deflui do artigo 944 do Código Civil – A indenização mede-se pela extensão do dano.

Tal aspecto ganha especial relevo quando se trata de prática abusiva perpetrada, reiteradamente, por grandes conglomerados, sendo indubitável que, quanto menor o valor da condenação, mais apoucado e tímido será o impacto do exemplo dissuasório que se pretende incutir na mentalidade do ofensor.

Ainda na abordagem das balizas que traça acerca do dano moral, Ulhôa Coelho [9] chega a falar, em tom de censura, na criação de “um mundo de não me toques”, que, a seu juízo, não interessa à sociedade e à economia. Ora, se é certo que nem tudo é indenizável, não menos correto é que vivemos um tempo em que o grau de exigência e tolerância nas relações de consumo é maior e continua passando por consideráveis alterações, podendo-se até falar, sem exagero, em um dever de excelência por parte de quem fornece serviços e/ou produtos.

Isso porque a ratio do CDC confere a todo e qualquer consumidor um autêntico direito à qualidade que, em matéria de dispêndio de tempo, não se concilia com demoras demasiadas, resultantes, em larga medida, do descaso e da negligência.

A propósito desse argumento, gize-se que o vocábulo “qualidade” é mencionado 17 vezes ao longo do CDC, merecendo realce o que dispõe o artigo 4º, II, “d”, do referido estatuto protetivo, ao fazer menção a “padrões adequados de qualidade”.

Com efeito, nessa busca pela qualidade, o dano temporal pode ter o condão de estimular a adoção dos princípios da qualidade total, mirando a melhoria contínua e a não-aceitação de erros, num compromisso perene pela otimização.

Nessa perspectiva, vale endossaras irretocáveis palavras de Herman Benjamin: “De nada adiantaria criar-se um dever de qualidade se o seu desrespeito não trouxesse consequências para o violador” [10].

Em sentido contrário, haverá que hasteie, como sempre, a bandeira da impunidade, presente no jargão de que tal reparação fomentará a malsinada “indústria das indenizações”. Ora, aprimorem os produtos e serviços e elevem o padrão de qualidade do que disponibilizam ao consumo que não remanescerá “brecha” para a pretensão indenizatória. É simples.

Há, ainda,quem objete o reconhecimento do dano temporal com o argumento de que “Se for admitida como correta a tese de que a perda do tempo gera direito à indenização, os tribunais serão inundados por ações e não somente contra empresas.” [11].

O problema desse ponto de vista, data venia, é que ele é meramente consequencialista, como se o direito pudesse ceder diante de juízos de conveniência. Anátema! Não se pode inibir que as pessoas busquem a reparação de danos apenas porque tais pedidos desencadearão mais ações judiciais (mais trabalho), num raciocínio análogo ao obstáculo da “jurisprudência defensiva”, concebida no seio das Cortes Superiores para reduzir, a qualquer custo, o estoque de processos.

Tenhamos em mente que a Justiça existe para fazer justiça, que é sonegada quando, a despeito dos conflitos sociais, o(s) julgador(es) busca(m) subterfúgios para se desincumbir(em) do dever de conferir razão a quem tem.

À conta do exposto, está na hora de se aprofundar o debate sobre o tema e emancipar, de uma vez por todas, o instituto do dano temporal, pois, conforme o oportuno trocadilho de Camilo Castelo Branco[12], “o tempo chega sempre; mas há casos em que não chega a tempo”!

 

 

 

 

Autor: Heder Rubens Silveira e Souza  é advogado no Rio Grande do Norte.


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