Por Cristovam Buarque,
professor da UnB e senador pelo PDT-DF
Diversos repórteres descreveram a rebelião em Canudos. Mas foi Euclides da Cunha quem ficou na história, porque no lugar de apenas descrever as aparências entre o que parecia um Conselheiro insensato e Generais sensatos, mostrou o que havia por baixo das aparências: a disputa entre Cidade e
Campo, Império e República, Moderno e Arcaico.
Cem anos depois, estamos repetindo a mesma forma superficial de fazer reportagens sem descrições mais profundas da sociologia da corrupção. As notícias giram em torno de denúncia dos fatos visíveis: vídeos, contratos, fotos e propinas. Ainda não surgiu o Euclides da Cunha da corrupção. Estamos vendo e descrevendo o superficial.
Por trás dos fatos de políticos roubando dinheiro público, está a realidade de uma sociedade acostumada a desprezar o que é público. A indignação contra a corrupção é um bom sinal de que o interesse público começa a nascer, mesmo assim muito discretamente, porque as causas mais profundas não são denunciadas.
Como Canudos, há uma barreira protegendo a percepção das causas mais profundas.
Depois de séculos em que até o trabalhador era propriedade privada e de décadas de uma democracia servindo aos interesses de minorias, o interesse privado ainda prevalece sobre o público. Fica explicado – não justificado, obviamente – porque tantos se sentem no direito de vandalizar os bens públicos, como se destruir bens públicos não fosse uma forma de corrupção. Fica explicada também a aceitação de expressões como “isto não é roubo”, ou “rouba, mas faz”, ou “mas, e daí, se todos roubam”, ou a mais moderna e cínica “rouba, mas é um dos nossos”, ou ainda “rouba, mas não é para si, é para a campanha”.
Até há pouco tempo, pelo menos existiam partidos e militantes que repudiavam essas afirmações. A democracia cooptou-os, absorveu-os e os fez tolerantes, criando uma geração de céticos e cínicos, porque a realidade da primazia do privado é mais forte do que as idéias, os sonhos e a vontade dos que querem defender o público.
Isso faz com que os jovens que há poucos meses estavam sendo pisoteados pelas patas de cavalos da polícia, ao manifestarem-se contra a corrupção, não compareçam e até repudiem as recentes manifestações pela ética. Pode ser por ingenuidade ou por convicção de que os fins justificam os meios, ou pode ser por cinismo até porque as ações não mostram fins diferentes do ponto de vista dos interesses do público e do longo prazo.
Esse desprezo pelo interesse público induz e permite uma tolerância com o roubo dos recursos públicos a ponto de, eufemisticamente, chamá-lo de corrupção, no lugar de roubo. A sociedade aceita como natural o uso do dinheiro público para obras desnecessárias ou que beneficiam apenas uma minoria.
Felizmente, cobrar propina na construção de prédio público já começa a provocar indignação, mas fazer obra faraônica ou estádios ao lado de casas sem esgoto não escandaliza. A primazia do privado sobre o público, do indivíduo sobre a Nação, leva à “corrupção pelo vandalismo”, à “corrupção nas prioridades” e à “corrupção do imediatismo”, provocando o consumo de recursos que pertencem também às gerações futuras, como acontecerá com os royalties do petróleo, como se isto não fosse também uma corrupção.
É por isso que, nas palavras do professor Kurt Weyland, citado pelo jornalista Rudolfo Lago, no saite Congresso em Foco: “O Brasil tem uma democracia estável, mas de baixa qualidade”. Porque a política não está comprometida com a causa pública. Felizmente, enquanto não surge um Euclides da Cunha, temos repórteres atuantes, desvendando segredos e descrevendo a realidade apenas nas aparências.
Como os repórteres que foram a Canudos, os de hoje talvez tenham interesses e visão das minorias privilegiadas, viciadas no interesse particular da renda e do consumo privado, que impedem a visão das causas da corrupção que vão muito além do comportamento dos políticos imorais.
A corrupção está na estrutura social, na qual o Estado pertence e existe para poucos. Euclides da Cunha, além da genialidade literária, possuía uma habilidade sociológica que não dá para exigir de todos nós, nem dos nossos leitores que, provavelmente, não gostariam de tomar conhecimento de toda a verdade.
Mas dá para exigir que os militantes não sejam cínicos no presente, para que não sejam todos céticos quanto ao futuro.