por Luiz Rogério Sawaya Batista
Foi muito festejada a introdução em nosso ordenamento jurídico da Lei 10.755/2003, que estabelece multa nas operações de importação com DI — Declaração de Importação, registrada no Siscomex — Sistema Integrado de Comércio Exterior, quando o importador: (i) contratar operação de câmbio ou efetuar pagamento em reais sem observância dos prazos e das demais condições estabelecidas pelo BC — Banco Central do Brasil; ou (ii) não efetuar o pagamento de importação até cento e oitenta dias a partir do primeiro dia do mês subseqüente ao previsto para pagamento da importação.
Mencionado diploma legal, que revogou a anterior Lei 9.817/1999 e disciplinou a aplicação desta no tempo, foi posteriormente regulamentado pela Circular BC 3.231/2004, que foi revogada pela recente Circular 3.280/2005, a qual dispõe que nas importações amparadas em DI registrada no Siscomex a partir de 4/11/2003 ou em DI registrada anteriormente, mas cujo vencimento ocorra a partir de 3/5/2004, o importador está sujeito ao pagamento de multa caso não efetue o pagamento da importação em até 180 dias a partir do primeiro dia do mês subseqüente ao previsto para pagamento de importação.
O motivo de tanta comemoração se deve ao fato de que a Lei 10.755/2003 limitou a multa a ser aplicada pelo BC a 100% do valor equivalente em reais da respectiva importação, sendo que a tanto a Circular BC revogada, de 3.231/2004, como a atual, 3.280/2005, estabelecem que a multa é de 0,5% ao equivalente em reais do valor em atraso da importação e que deve ser apurada e passa a ser devida ao BC no 181º dia a partir do primeiro dia do mês subseqüente ao previsto para pagamento, utilizando-se a taxa de câmbio de fechamento divulgada pela transação PTAX800 do dia da apuração da multa.
Com isso reduziu-se intensamente o valor das multas aplicadas pelo BC, com base na Lei 9.817/1999, nessas operações de importação, que previa a sujeição do importador à multa diária, sob a modalidade de encargo financeiro, o que não raro resultava em processos administrativos veiculando exigências completamente desproporcionais, pois muito superiores ao valor da importação e, por conseguinte, distantes da realidade econômica dos importadores.
Diante do inegável caráter punitivo da multa legalmente adotada pelo BC, parece claro que a Lei 10.755/2003 incorreu em grave inconstitucionalidade ao dispor expressamente, em seu artigo 4º, que o regime mais benéfico por ela previsto não retroagiria para beneficiar os importadores, contrariando frontalmente o inciso XL, do artigo 5º da Constituição Federal.
Tendo em vista o deslize, utilizando-se de eufemismo, do legislador ordinário, as autoridades administrativas e judiciais, no caso concreto, devem levar a retroatividade benéfica em consideração, ainda mais considerando que a aplicação da Lei 9.817/1999, conforme será abordado adiante, implicou flagrante desvio de finalidade da multa por inobservâncias das regras de importação, motivo pelo qual o próprio Poder Legislativo reconheceu a falácia da multa diária sob a modalidade de encargo financeiro e editou a Lei 10.755/2003.
Nesse ponto, faz-se importante relembrar a mudança ocorrida na política cambial em janeiro/fevereiro de 1999, que passou de um regime fixo, com taxas pré-estabelecidas, a um regime flutuante, que, pela sua natureza, possibilita que mercadorias sejam importadas por valores de mercado, não importando o momento da operação ou do seu pagamento, demonstrando o equívoco e a extemporaneidade da Lei 9.817/1999.
Em virtude dos inúmeros processos administrativos surgidos sob a vigência da Lei 9.817/1999 e dos correspondentes recursos ao Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, em trâmite nos moldes da Lei 9.784/1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, algumas observações extraídas de casos concretos são pertinentes.
De início, não se pode perder de vista que o processo administrativo é marcado pela busca da verdade real, o que obriga tanto o importador como a própria autoridade julgadora a verificar a ocorrência do ilícito, que muitas vezes figura aparentemente no sistema eletrônico do BC, única fonte de informação do agente autuante, mas que não corresponde à realidade da operação.
Em outras palavras, primeiro que tudo, deve o importador evidenciar, se possível, que as circunstâncias da operação, por exemplo, refinanciamento, capitalização, perdão de dívida, não refletem as características da operação de importação no sistema, em que ainda consta, por erro formal, a ausência de registro modificativo da DI em aberto.
De igual modo, utilizando a mesma linha de raciocínio, não pode o importador deixar de chamar a atenção das autoridades fazendárias que qualquer ocorrência na DI aparentemente em aberto, por exemplo, refinanciamento, capitalização, perdão de dívida e etc., pode se aplicar retroativamente, alterando totalmente o perfil da operação de importação, frise-se, ainda que seja registrada posteriormente ao próprio vencimento da operação.
A título ilustrativo, o refinanciamento de uma DI em aberto, ocorrido 100 dias após o vencimento do prazo regulamentar para o seu pagamento, ou seja, 100 dias após o 180º dia, altera, desde então (“ex tunc”) com retroatividade, a relação jurídica entre devedor (importador) e credor (exportador), o qual expressamente reconhece que aquela operação ainda não se encontra vencida.
Ora, qual o ilícito cometido pelo importador nesse caso e que fato objetiva o BC evitar com a aplicação de multa nessa situação? Evitar a manipulação das taxas de juros externas e internas pelos importadores, conforme restou consignado na Exposição de Motivos do Projeto de Lei 6.239/1997, o qual originou a Lei 10.755/2003?
Evidentemente que não há que se falar em ilícito nessa situação, uma vez que, em nosso entendimento, o importador apenas e tão-somente poderia ser responsabilizado por ter deixado em aberto a DI nos registros do BC, isto é, por um simples erro formal que não fundamenta a aplicação de multa diária sob a modalidade de encargo financeiro.
Qual o prejuízo verificado ao BC ou à economia nacional com o ato do importador? Em nossa opinião, nenhum, sendo certo que, na realidade, seja refinanciando, caso do exemplo acima, seja mediante capitalização, perdão de dívida e ou novação, o importador contribui para a permanência das divisas no país.
Dessa forma, a relevância da investigação fática, a ser efetuada pelo importador e também pela autoridade administrativa, das circunstâncias que levaram à inflingência da multa pelo BC, para o deslinde do processo administrativo, que, por vezes, se inicia, se se desenvolve e, por fim, até acaba desfavoravelmente ao importador, sem que tais pontos tenham sido devidamente abordados.
Tudo isso sem mencionar o dever que recai ao importador, neste mesmo processo administrativo, de quantificar o valor das DI’S apontadas pelo BC como em atraso e comparar os seus valores com o valor da multa aplicada e com a sua realidade econômica (faturamento, lucro líquido apurado), demonstrando assim o despropósito de tal penalidade, que desvia de sua verdadeira finalidade gerando situação longe da razoabilidade e da proporcionalidade.
Somente após a colocação desses importantes argumentos, que, se não afastam totalmente a multa, contribuem para sua profunda redução, o importador deve se dedicar à matéria estritamente de direito, aduzindo princípios gerais de direito, constitucionais e administrativos e demonstrando a sua aplicação ao caso discutido, sempre lembrando que a aplicação da multa com base na Lei 9.817/1999 freqüentemente incide em ofensa aos Princípios da Finalidade, Proporcionalidade e Razoabilidade.
Nesse patamar, assume importância uma análise da autuação calcada em nosso sistema jurídico, no qual se insere a Lei 9.784/1999, que dispõe acerca da aplicação de princípios constitucionais e administrativos aos processos em trâmite no BC, os quais foram muito bem abordados por Glênio Sabbad Guedes (1), Procurador da Fazenda Nacional com assento no CRSFN — Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, em artigo específico em que propõe uma forma de interpretação e aplicação desses mesmos princípios nos processos oriundos do BC e da Comissão de Valores Mobiliários.
Por essas e outras razões que o CRSFN, ao julgar Recurso de Ofício proveniente do processo origem 9900958594, manteve a decisão da autoridade de primeira instância, afastando a aplicação de multa punitiva, conforme segue:
“EMENTA: RECURSO DE OFÍCIO – Câmbio – Importação – Falsa declaração em contrato – Existência de Declarações de Importação (DI’s) com saldos não pagos em nome da recorrente – Infração não caracterizada – Recurso improvido. ACÓRDÃO/CRSFN 3244/01: Vistos, relatados e discutidos os presentes autos, decidem os membros do Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, por unanimidade, negar provimento ao recurso de ofício interposto, mantida a decisão do órgão de primeiro grau no sentido de arquivar o processo em relação à recorrida, IMPORTADORA FINESSE LTDA., demonstrando-se que a apelante tinha diversas Declarações de Importação (DI’s) com saldos impagos relativas ao exercício aludido nos autos, algumas das quais correspondentes aos contratos de câmbio em aberto, a revelar quadro não configurador de prejuízo às reservas do País.”
Dessa maneira, concluímos o nosso raciocínio com a assertiva de que a aplicação literal da Lei 9.817/1999 pelas autoridades cambiais resultou na multiplicação de autuações relacionadas à aplicação de multa, na grande maioria das vezes fixada em valores irreais, aos importadores, até que sobreveio a Lei 10.755/2003 e as Circulares BC 3.231/2004 e 3.280/2005, prevendo regime punitivo mais benéfico, o qual deve ser aplicado retroativamente pelas autoridades administrativas.
Em face da relevância econômica desses processos administrativos, as autoridades administrativas, na prática, obrigaram os importadores a se defenderem cuidadosamente da aplicação da multa, mediante a abordagem de circunstâncias fáticas de cada DI supostamente em aberto, incluindo a prova da desproporcionalidade da pena aplicada, e a oposição à exigência com princípios constitucionais e administrativos sobre os quais se sustenta o nosso ordenamento jurídico, que não pode permitir, seja administrativa ou judicialmente, a permanência de cobranças como as ora descritas.
Notas de rodapé
(1) in “Dos princípios da Lei 9.784/99 aplicados aos processos administrativos da CVM e do BACEN: uma proposta de interpretação”. www.bcb.gov.br/crsfn/doutrina
Revista Consultor Jurídico