Cláusula resolutiva expressa em recuperação judicial precisa de ponderação

Autor: Bruno Paiva Cruz (*)

 

Tornou-se usual na dinâmica empresarial atual a inserção de cláusula resolutiva expressa em contratos bilaterais que prevê a hipótese de requerimento de recuperação judicial como causa de rescisão, a qual é conhecidamente denominada como cláusula resolutiva expressa por insolvência (também chamada de cláusula ipso facto de insolvência).

Tal disposição contratual permite que ocorra a resolução do contrato ainda que outra obrigação não tenha sido descumprida, senão a de manter-se solvente e de preservar sua saúde financeira. No entanto, a referida cláusula é alvo de forte divergência doutrinária e jurisprudencial, dividindo-se em duas correntes o entendimento acerca de sua validade.

A primeira tese doutrinária defende a invalidade da cláusula de rescisão contratual no caso de haver o requerimento de recuperação judicial por um dos contratantes, uma vez que esta disposição contratual colide com o objetivo precípuo da recuperação judicial, qual seja, promover a superação de crise econômico-financeira da empresa para preservar sua existência, já que dessa surgem diversos benefícios reflexos à toda sociedade.

Já a segunda corrente sustenta que não há qualquer proibição legal das partes se acautelarem em face de potencial inadimplemento contratual por meio da estipulação prévia da cláusula resolutiva expressa por insolvência. Tem-se como fundamento os princípios contratuais históricos da autonomia da vontade e força obrigatória dos contratos.

Para melhor compreensão do tema, essencial abordar primeiramente o conceito e a validade, de um modo geral, da cláusula resolutiva expressa. A referida cláusula, também conhecida como pacto comissório, está prevista no artigo 474 do Código Civil e consiste na previsão expressa das hipóteses nas quais o contratante prejudicado poderá declarar, de pleno direito, a rescisão contratual.

Salienta-se que o autor Nelson Rosenvald preconiza que se trata, neste caso, de um direito potestativo, ou seja, os efeitos da cláusula independem de interpelação judicial. Dessa forma, quando existente cláusula resolutiva expressa, a resolução opera-se de acordo com a forma convencionada, sem a necessidade de levar a questão ao Judiciário.

Contudo, conforme mencionado acima, muito se tem questionado a validade da cláusula ipso facto de insolvência, inclusive, quando esta é analisada sob o prisma da Lei nº 11.101/05, a qual regulamenta o instituto da recuperação judicial e cuja ratio legis revela-se em seu princípio maior instituído no artigo 47, qual seja, preservação da empresa por meio do empreendimento de meios jurídicos e esforços que visem o seu soerguimento diante de uma situação de crise econômico-financeira.

Nessa linha que se posiciona a primeira corrente ao defender a nulidade da cláusula resolutória operada em virtude de uma das partes contratantes ingressarem em regime de recuperação judicial.

Déborah Kirschbaum (2006, página 44) cita os autores J. Silva Pacheco, J. A. Penalva Santos, J. Lobo e M. J. Bezerra Filho entre aqueles que se posicionam a favor da invalidade da cláusula resolutória por insolvência.

Do mesmo modo, André Hostalácio Freitas (2012, página 65/67) menciona os autores Gladston Mamede, Marcelo M. Bertoldi e César Fiuza como defensores da inafastabilidade das normas da Lei de Recuperação Judicial e Falência, de modo que os princípios nela esculpidos não devem ser superados por disposição pactuada entre as partes.

Apregoa-se que a vontade expressa na referida cláusula não pode se sobrepor à lei de recuperação judicial, pois esta tem caráter de lei especial, de modo que sua aplicação promove alterações no direito das obrigações. Nessa esteira, entende-se que deve predominar a norma do artigo 49, §2º da Lei 11.101/05, a qual estabelece como regra a continuidade das relações contratuais, salvo se de modo diverso dispuser o plano de recuperação.

Além do mais, defende-se que a efetividade dos princípios da preservação da empresa e função social está condicionada à manutenção dos contratos, pois, lado outro, restaria inviabilizada a atividade empresarial ante ao risco de diversos contratos virem a ser rescindidos.

Assim, em contratos tidos como relevantes e/ou indispensáveis para a continuidade e soerguimento da empresa em recuperação, deve-se preponderar a relevância da recuperação judicial em detrimento da cláusula resolutiva expressa, a fim de viabilizar a superação de crise econômico-financeiro do devedor para manter a atividade produtiva, o emprego dos trabalhadores e o interesse dos credores de modo geral. Destaca-se, inclusive, que há precedente jurisprudencial nesse sentido:

Agravo de instrumento. Recuperação judicial. Habilitação de crédito. Instrumento particular de confissão de dívida. Quitação integral do débito. Ocorrência. Inoperabilidade da cláusula resolutiva expressa em face do advento da recuperação judicial da devedora. Preponderância do bem comum e da função social da empresa. Nulidade da cláusula. Reconhecimento. Regularidade dos pagamentos e das parcelas adimplidas neste ínterim. Falta de interesse na interposição da habilitação. Decisão mantida. (TJPR, Agravo de Instrumento Nº 1.292.381-0, Des. Rel. Luis Sérgio Swiech, 17ª Câmara Cível, julgado em 22/07/2015).

Aliás, a função social não é base de interpretação e de objetivo perseguido somente pela norma da recuperação judicial, mas também do contrato firmado entre particulares, consoante o artigo 421 do Código Civil.

A função social do contrato impõe que a autonomia de vontade deve ser vista sob a égide do interesse social, não devendo considerar os interesses dos contratantes isoladamente, pois do contrato surge infindáveis interesses da coletividade, como a circulação de riquezas que propicia o desenvolvimento econômico do país.

Assim, da função social desdobra-se o princípio da preservação do negócio jurídico, por meio do qual se entende que o inadimplemento da obrigação deve ser relevante para justificar a rescisão contratual.

Com esses arrazoados é que se conclui que a finalidade contemporânea do Direito é a busca pela preservação da empresa em dificuldade financeira e, também, a manutenção dos contratos, em prol do interesse comum, predominando-se os benefícios econômicos advindos da recuperação da empresa sobre a rescisão do contrato motivada unicamente pelo descumprimento da obrigação de se manter solvente.

Já a segunda corrente, defendida por autores como Miranda Valverde, Waldemar Ferreira, Amador Paes de Almeida, Sampaio Lacerca, Rubens Requião e Fábio Ulhoa Coelho, apresenta-se favorável à validade da cláusula resolutiva expressa por insolvência, ao argumento de que as normas do direito empresarial possuem aplicação supletiva em relação à vontade dos contratantes, de modo que se as partes dispuseram como causa de rescisão contratual o pedido de recuperação judicial, esta deve prevalecer em atenção aos princípios da liberdade contratual e força obrigatória dos contratos.

Importante ressaltar ainda que não há proibição legal dos contraentes prevenirem-se em face da incerteza que se instaura em relação ao cumprimento da prestação prevista no contrato quando a outra parte se submete ao regime de recuperação judicial, conforme explicita o autor José Xavier Carvalho de Mendonça.

Lado outro, a imposição de continuar prestando serviços contratuais a uma empresa em recuperação judicial, pode ocasionar a insolvabilidade da outra parte em razão do risco real de haver inadimplemento por parte da recuperanda. Ou seja, trata-se de potencial insolvência gravosa ao desenvolvimento da atividade empresarial do outro contratante.

A cláusula ipso facto de insolvência visa exatamente proteger a parte contratante contra as consequências da insolvência da outra parte. Inclusive, o Código Civil demonstra preocupação nesse sentido quando em seu artigo 333, inciso I estipula o vencimento antecipado da dívida oriunda de contrato no caso de falência do devedor ou de instauração de concurso de credores.

Argumenta-se, também, que o rompimento contratual não inviabiliza a superação de crise econômico-financeira da recuperanda, haja vista que esta possui a prerrogativa de estabelecer vínculo contratual com outras empresas que atuam em idêntico mercado, uma vez que impera no país o princípio da livre-concorrência. Há precedentes que também defendem essa corrente doutrinária, veja:

Ementa: Apelação Cível. Contrato de distribuição. Resolução da avença por uma das partes, após deferimento do processamento da sua recuperação judicial. Fundamento em cláusula resolutiva expressa, que previu fosse o contrato resolvido na hipótese de recuperação judicial de qualquer das contratantes. Ação de obrigação de fazer. Pretensão deduzida pela outra parceira contratual, visando seja a primeira obrigada ao cumprimento do contrato. Sentença de improcedência. Inconformismo. Cláusula resolutiva expressa que opera de pleno direito. Inteligência do artigo 474 do Código Civil. Validade de semelhante disposição contratual. Posicionamento adotado em precedente deste E. Tribunal e pela doutrina majoritária. (…). (TJSP, Ap. 4002604-92.2013.8.26.0038, Des. Rel. Hélio Nogueira, 22ª Câmara de Direito Privado, julgado em 19/05/2016).

Ementa: Apelo. Falência. Pedido de restituição de ações de sociedade anônima em face do não pagamento pela compradora. Contrato de alienação de participação acionária com cláusula expressa de resolução na hipótese de falência da sociedade compradora. Artigo 85 da LRF c.c. artigo 474 do CC. Validade da cláusula resolutória expressa em face da falência de um dos contratantes. Restituição deferida. Alegação de pagamento parcial do preço das ações a ser apurada em liquidação por artigos, necessária para que as partes retornem ao “status quo ante”. Apelo provido, em parte. (TJSP, Ap. 0003654-06.2011.8.26.0100, Des. Rel. Pereira Calças, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, julgado em 06/05/2015).

Apesar dos argumentos consistentes das duas correntes antagônicas com relação à validade da cláusula resolutiva expressa por insolvência, em situação excepcional, como a de monopólio da exploração do objeto previsto em contrato, tem surgido consenso na jurisprudência com relação à imperiosa necessidade de preponderar os princípios da recuperação judicial em detrimento aos efeitos da cláusula ipso facto de insolvência, ou seja, a excepcionalidade do caso pode impulsionar a relativização dos princípios da autonomia da vontade e da força obrigatória do contrato em face dos princípios da preservação da empresa e função social, probidade e boa-fé objetiva.

Assim, em vista da excepcionalidade de determinados casos, árduo trabalho é taxar a validade ou não da cláusula resolutiva expressa por insolvência, ainda que a segurança jurídica anseie por isso, uma vez que a ponderação de um princípio em detrimento de outro exige detida análise das peculiaridades do caso concreto.

Desse modo, solução razoável proposta para findar a controvérsia da validade da cláusula resolutiva expressa por insolvência é a ponderação, no caso concreto, da relevância entre os princípios da autonomia da vontade e preservação da empresa, isso porque podem existir situações que a rescisão contratual não inviabilizará a superação de crise do devedor, como no caso em que o objeto contratual é fornecido por diversos comerciantes e considerado de fácil contratação.

Por outro lado, há certas situações que a rescisão de um contrato pode significar a ruína da empresa em recuperação em razão da importância do objeto contratual para a continuidade de sua produção e, concomitantemente, existência de um reduzido número de fornecedores de determinado insumo, como ocorre nas estruturas de mercado monopólio e oligopólio, devendo nesses casos sopesar o princípio da preservação da empresa em detrimento da autonomia da vontade, pois se assim não fosse, restariam eliminadas todas e quaisquer chances de soerguimento econômico da empresa.

 

 

 

 

Autor: Bruno Paiva Cruz é advogado atuante na área de Recuperação Judicial e Falência no escritório Chenut Oliveira Santiago.


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