Por Marcus Vinicius Furtado Coêlho
O Conselho Nacional de Justiça é instituição republicana, de matriz constitucional, possuidor de competência para efetuar o controle ético-disciplinar da magistratura. Sua atuação não é subsidiária em relação às corregedorias estaduais. Diria Geraldo Ataliba, “regime republicano é regime de responsabilidade. Os agentes públicos respondem por seus atos” (1)
O artigo 103-B, parágrafo 4º, inciso III, da Constituição Federal, preceitua ao CNJ a competência para “receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário”. Mantém-se, entretanto, a competência disciplinar e correicional dos tribunais, sem especificar que essa seria principal ou originária em relação ‘aquela. No caso do exercício de competência das corregedorias, o CNJ possui também o poder avocatório dos processos disciplinares em curso. Em qualquer hipótese, desde que assegure a ampla defesa, o Conselho possui poderes para aplicar sanções administrativas.(2)
A questão fulcral se encontra na melhor interpretação da expressão “sem prejuízo da competência” das corregedorias estaduais, decorrendo daí competência subsidiária ou concorrente. Literalmente, tal significa que não exime e que não obsta. Em outras palavras, adiciona-se e não se exclui. As competências assim previstas coexistem de modo concorrente e não subsidiário.
A conjunção de palavras “sem prejuízo de” é repetida na Constituição Federal por dezenas de oportunidades. Em todas elas, a interpretação adequada se dirige em concluir pela adição e não exclusão. Assim ocorre com o artigo 150, inciso I, ao estabelecer as garantias dos contribuintes; artigo 7, XVIII, ao estabelecer o direito da licença à gestante; o artigo 30, inciso III, sobre a obrigatoriedade de prestação de contas; e, de modo emblemático, o artigo 37, parágrafo 4º, pelo qual “os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.
Em se tratando de punição a agente do poder estatal, a Constituição sempre admite o acúmulo de responsabilidades, utilizando-se a expressão em tela para significar aplicação concorrente (3).
A Constituição não utiliza a expressão competência originária e secundária, ou subsidiária. Pelo oposto, lança mão da clássica expressão sobredita que, como visto, significa adição de competências.
Ao declarar constitucional a instituição do CNJ, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a competência do Conselho como “Órgão interno de controle administrativo, financeiro e disciplinar da magistratura”. (4) O ministro Cezar Peluso, relator do julgado, bem ressaltou em seu voto, “Entre nós, é coisa notória que os atuais instrumentos orgânicos de controle ético-disciplinar dos juízes, porque praticamente circunscritos às corregedorias, não são de todo eficientes, sobretudo nos graus superiores de jurisdição (…) Perante esse quadro de relativa inoperância dos órgãos internos a que se confinava o controle dos deveres funcionais dos magistrados, não havia nem há por onde deixar de curvar-se ao cautério de Nicoló Trocker: “o privilégio da substancial irresponsabilidade do magistrado não pode constituir o preço que a coletividade é chamada a pagar, em troca da independência dos seus juízes”.
Com propriedade, aduz o relator, “Longe, pois, de conspirar contra a independência judicial, a criação de um órgão com poderes de controle nacional dos deveres funcionais dos magistrados responde a uma imperfeição contingente do Poder, no contexto do sistema republicano de governo”.
Sobre a composição plural do CNJ, com representantes da advocacia, do ministério público e do parlamento, lapidar o voto ao enunciar, “bem pode ser que tal presença seja capaz de erradicar um dos mais evidentes males dos velhos organismos de controle, em qualquer país do mundo: o corporativismo, essa moléstia institucional que obscurece os procedimentos investigativos, debilita as medidas sancionatórias e desprestigia o Poder. Uma das mais graves degenerações suscetíveis de acometer os modernos aparatos judiciários é, segundo a observação incontestável de Mauro Cappelleti, a “monopolização da responsabilidade disciplinar em mãos da própria magistratura e, conseqüentemente, na sua degeneração em instrumento de controle puramente corporativo, isolado da sociedade”.
Sobre a proeminência do CNJ em relação a autonomia dos tribunais, asseverou o relator, “a Jurisdição, enquanto manifestação da unidade do poder soberano do Estado, tampouco pode deixar de ser una e indivisível”. E, vaticina, “o Conselho não anula, reafirma o princípio federativo”. E conclui, “O Judiciário necessita de um órgão nacional de controle, que receba as reclamações contra as atividades administrativas dos juízes e tribunais, assim como contra a qualidade do serviço judicial prestado”. Quanto a competência do CNJ para processar os desembargadores, o voto do relator é expresso, “o Conselho Nacional deve controlar diretamente os Tribunais”, dizendo, sem maior fundamentação, que em relação aos juízes o controle seria indireto. A Carta Constitucional trata todos, desembargadores e juízes, de forma igual, aglutinando-os como membros da magistratura.
Além dos Mandados de Segurança impetrados contra decisões do CNJ, a atuação subsidiária do órgão será apreciada pelo STF nos autos da ADI 4.638, ajuizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros, em 15 de agosto último. Para a AMB, o Conselho não possui poderes para uniformizar o trâmite de processos administrativos disciplinares contra juízes e as penas previstas para os casos de punição, tal qual feito pela Resolução do CNJ 135.
A AMB objetiva também, com o julgamento da ADI, afastar a incidência das sanções administrativas previstas na Lei de Abuso de Autoridade. Deveria ser aplicado unicamente o regime jurídico sancionatório disciplinar previsto na LOMAN – Lei de Organização da Magistratura.
A ADIn da AMB quer impedir que qualquer cidadão possa representar contra magistrado perante às Corregedorias, ficando tal prerrogativa como faculdade do Poder Executivo, Poder Legislativo, Ministério Público e Conselho Federal ou Secional da Ordem dos Advogados do Brasil.
Com a devida reserva do respeito, as pretensões postas na ADI da AMB demonstram a busca pela não submissão dos magistrados ao CNJ e pela completa ausência de normatização do funcionamento das Corregedorias. Seria o retorno ao regime de irresponsabilidade, incompatível com o regime republicano.
O presidente nacional da OAB, Ophir Cavalcante Junior, bem situou o tema, “o Conselho Nacional de Justiça surgiu com a Emenda Constitucional 45 que tratou da reforma do Poder Judiciário com o objetivo de suprir uma lacuna existente que desacreditava a sociedade brasileira em relação ao Poder Judiciário. Era a falta de punição dentro do Poder. A falta de punição era decorrente da falência das Corregedorias internas que eram órgãos muito mais corporativistas do que órgãos que pudessem fazer a correição nos tribunais”. E avalia com razão, ”Agora, se vê novamente um ataque muito forte ao CNJ, principalmente depois que ele começou a punir a cúpula de muitos Tribunais de Justiça e muitos juízes no Brasil em função de corrupção, de má gestão e até de improbidade administrativa”.
A pesquisadora Maria Tereza Sadek vaticina (6), “um conselho criado justamente porque os meios de controle existentes até a década passada eram ineficazes e parciais não pode ter a sua atuação condicionada ao prévio esgotamento dos meios de que os tribunais há muito tempo dispõem e que, na prática, pouco ou nunca utilizaram para corrigir os desvios de seus integrantes”.
Seria muito luxo para uma nação criar um órgão constitucional para atuar no banco de reserva das corregedorias estaduais. O CNJ, que tem se demonstrado não subserviente aos donos do poder, também não há de ser considerado subsidiário.
(1) ATALIBA, Geraldo. República e Constituição, 2ª ed.. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 65;
(2) Além da competência de conhecer de reclamações contra membros do Judiciário, a Constituição atribui ao CNJ a função de “rever, de ofício, ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano” (artigo103-B, CF).
(3) Constituição Federal, Artigo 52, parágrafo único e Artigo 86.
(4) STF, ADI 3367 / DF, Rel: ministro Cezar Peluso. Julgamento: 13/04/2005.
(5) CAVALCANTE JUNIOR, Ophir. Entrevista concedida à Revista Eletrônica Consultor Jurídico, em 29-08-11.
(6) SADEK, Maria Tereza, artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo, em 28/08/11.
Marcus Vinicius Furtado Coêlho é Secretário-Geral do Conselho Federal da OAB.