Por Maria Tereza Sadek
[Artigo originalmente publicado na edição deste domingo (28/8/2011) do jornal Folha de S.Paulo]
Após um longo debate e uma série de propostas, a reforma do Poder Judiciário aprovada em 2004 foi uma resposta à crise da Justiça. O remédio encontrado para afastar os tumores sem matar o corpo foi a criação de um sistema nacional de controle, denominado Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Essa solução está hoje ameaçada por propostas que pretendem acabar com o papel de fiscalização e investigação exercido pelo CNJ. Há quem pretenda subverter, por meio de um exercício interpretativo no mínimo controverso, uma das principais reformas aprovadas em nossa Constituição.
Órgão ainda jovem, a partir de 2008, por iniciativa do então ministro corregedor-geral Gilson Dipp, o conselho começou a realizar inspeções e audiências públicas em diversas unidades do Judiciário, tornando transparente aos olhos da opinião pública o que gerava odor podre em um corpo que necessita ser saudável tanto para a consolidação do regime democrático como para o fortalecimento dos direitos individuais e coletivos.
Ao assumir a Corregedoria Nacional de Justiça em setembro de 2010, em postura pouco comum aos nossos administradores, a ministra Eliana Calmon não só manteve a política de transparência de seu antecessor como ainda procurou aprimorá-la por meio de parcerias com Receita Federal, Controladoria-Geral da União, Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), tribunais de contas e outros órgãos de controle.
A fiscalização, assim, foi se mostrando cada vez mais eficiente e, por isso mesmo, mais incômoda.
Um conselho assim incomoda e muito, sobretudo os interesses corporativos, que, relembremos, não convenceram o Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 3.367-1, que afirmou a constitucionalidade do CNJ, registrando, inclusive, no voto condutor, a inoperância de muitas das corregedorias locais, o que todos já sabíamos.
Perplexos com a faxina levada a efeito pela Corregedoria Nacional de Justiça, os interesses contrariados reabrem a discussão do tema, tentando a todo custo fazer prevalecer o entendimento de que o CNJ só pode punir juiz corrupto após o julgamento do tribunal local.
Era assim no passado, e o Poder Judiciário foi exposto a uma investigação no Parlamento exatamente porque não fez esse dever de casa, e nada nos garante que o fará sem a atuação firme e autônoma do CNJ.
Nesse momento, a vigilância é mais do que sinal de prudência. É imperiosa e sobressai como dever de todos os que aceitam o desafio de aprimorar a Justiça. Políticas voltadas ao combate à impunidade se deparam com resistências.
Não por acaso são criados fatos e elaboradas teses capazes de ludibriar os inocentes e provocar retrocessos que causarão prejuízos irreparáveis ao Brasil.
Um conselho criado justamente porque os meios de controle existentes até a década passada eram ineficazes e parciais não pode ter a sua atuação condicionada ao prévio esgotamento dos meios de que os tribunais há muito tempo dispõem e que, na prática, pouco ou nunca utilizaram para corrigir os desvios de seus integrantes.
A tese de que a competência do CNJ é subsidiária, e, assim, somente pode ser exercida após a constatação de que os tribunais de origem foram inertes ou parciais, interessa tão somente àqueles que depositam suas fichas no jogo do tempo, da prescrição e do esquecimento.
O CNJ incomoda e precisa de nossa proteção para não ser transformado em mais um órgão burocrático e ineficiente.
Maria Tereza Sadek é doutora em ciência política, professora do Departamento de Ciência Política da USP e diretora de pesquisa do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais.