Co-autoria culposa nos crimes de trânsito

José Carlos Gobbis Pagliuca

A doutrina brasileira, em regra, admite a co-autoria no crime culposo. (1) Contudo, embora alguns autores divirjam quanto ao efetivo estado do instituto, outros não fazem qualquer distinção, e outros ainda, destacam ser possível a unicidade de conduta, mas não de culpabilidade, eis que, sendo a culpa uma conduta não desejada e imprevista sob o prisma da conceituação pessoal sobre o risco, impossível que duas pessoas, num mesmo momento, pensem em atingir o idêntico objetivo culposamente, num mesmo valor de ataque ao bem jurídico então ofendido. Sem embargo dessas peculiaridades, já dificultosas, temos, na legislação nacional, bem como em outras do exterior, crimes culposos próprios e de mão própria, onde, pelo que se conhece sobre a doutrina dessas modalidades de infração, a co-autoria dolosa já se mostra aflitiva ao conhecimento dogmático.
Tratemos, aqui, e porque o resultado é idêntico a outros, apenas dos crimes previstos nos artigos 302 e 303 da Lei 9503/97 (Código de Trânsito brasileiro), respectivamente homicídio culposo e lesão corporal culposa. Ambos são, ao que demonstram seus elementos constitutivos objetivos e subjetivos, crimes de mão própria, já que dizem: “praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor” e “praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor.” Será possível se estender a culpa realizada pelo condutor de veículo àquele que, também culposamente o instiga ou induz, ou até mesmo, numa extensão de hipótese, o auxilia pisando no pedal do acelerador? É o terceiro co-autor de um crime culposo da Lei do Automóvel? Ou não são estes dois delitos acima nomeados crimes de mão própria? Parece que a resposta é que são. Isso porque a lei determina qualidade exclusiva para o sujeito ativo da conduta, ou seja, tem que estar o agente na condução de automotor, veículo assim considerado consoante o Anexo I, da Lei 9503/97. Portanto, quem está, por exemplo, ao lado, no assento do passageiro e diz ao motorista, “é isso aí cara, pisa mais” e o condutor anima-se e aquiesce, causando um resultado jurídico culposo, não está (o induzidor), efetivamente, na condução da máquina. Deveras, coopera e anui (determina, talvez) para o resultado culposamente. Destarte, se a doutrina e praxe não aceitam a co-autoria culposa para crimes de mão própria, não será viável, nos crimes de trânsito, a co-autoria. (2) Muito bem. O induzidor ficará impune? Restarão a ele outras figuras típicas, quais sejam, as fórmulas genéricas dos artigos 121, § 3º e 129, § 6º do Código Penal (homicídio e lesões corporais culposas)? Perfeito. Quiçá por ciência da natureza, não pela de espírito, pois valorativamente algo nos toca. E assim o faz porque as sanções do Código Penal são mais brandas que as reguladas no Código de Trânsito, ficando, pois, duas condutas resultantes de um mesmo resultado jurídico desvalioso desniveladas no que tange à culpabilidade, pois esta, da forma como proposta, foi idealizada qualitativamente pela lei especial. Assim, teremos duas normas distintas para imputação (Lei 9503/97 para o condutor e Código Penal para o acompanhante). Não obstante, porém, talvez na culpabilidade geral, o induzidor poderá ter agido com maior reprovabildade e, mesmo assim, qualitativamente ainda, sua conduta estará sob a égide de tipo menos severo. O paradoxo é abismal. Mas há outra solução jurídico-penal? Será possível analogia “in bonam partem” ao motorista para subsumir sua conduta ao Código Penal? Ou não, pois o crime é de mão própria e sua conduta foi por conta e risco próprio? Ou a condução imaginária e entusiasta do induzidor ao mandar acelerar poderá ser considerada como “direção”? Ou tudo isso é dispensável, pois quem induz é partícipe do crime de mão- própria, mesmo culposo? Parte da doutrina admite a participação nos crimes culposos, mormente para o caso em apreço, ao que denomina “instigação ou cumplicidade psíquica”. (3) Outra parte repele essa possibilidade. (4) Não parecem fáceis as conclusões jurídico-penais. Aliás, qualquer delas a que se chegue indicam, já, também imperfeição. Se o crime de trânsito é de mão própria e este não pode ser realizado, senão exclusivamente pelo próprio possuidor da qualidade típica, não se vê como seja possível co-autoria ou mesmo participação, mesmo em se entendendo esta última cabível em delitos culposos em geral, o que já é complicado. Por outra banda, não se afigura interpretação coerente se aplicar analogia “in bonam partem” ao condutor, pois sua conduta tem tipicidade estrita; não há qualquer lacuna para seu comportamento. Para o induzidor a impunidade também se mostra insatisfatória como solução legal. Destarte, resta apenas a tipificação da conduta do “extraneus” como subsumida ou no artigo 129, § 6º ou 121, § 3º do Código Penal, já que, na verdade, há, entre os dois agentes, uma espécie de concorrência de culpas ou de causas, mas divergentes em aquiescência e previsibilidade. Cada qual labora com sua culpabilidade, com sua dose distinta de imprudência, não sendo possível se aferir unicidade nas condutas, justamente porque distintas quanto ao fim. Mas será isso possível? Ou seja, para condutas idênticas aplicar-se-ão tipos legais distintos? Antes de se pretender responder a esta indagação, outra surge. Serão mesmo idênticas as condutas. Com supedâneo no que acima foi estudado, não. Se fossem iguais, haveria a possibilidade da co-autoria culposa no crime próprio e, em razão dessa mesma qualidade típica é que se distinguem as condutas. Porque caso sejam admitidas como idênticas, não seria possível a sustentação do crime próprio e, por seqüência, insustentável a impossibilidade do concurso de pessoas. Apesar disso, a solução pode resultar-se injusta no campo objetivo sancionatório, vez que, em muitas oportunidades, a culpabilidade do passageiro poderá ser superior à do condutor, que, sem embargo, terá, por razão quantitativa da lei, sempre maior severidade de sanção. Daí porque o conflito entre as resoluções acima analisadas. Destarte, por ventura todas estejam equivocadas, pelo que, se apela à Dogmática Penal para que se manifeste.

NOTAS:

1. Mirabete, Manual de Direito Penal, P. Geral, Atlas, SP, 2000; Damásio, Direito Penal, Saraiva, SP, 1998; Noronha, Direito Penal, v.1, Saraiva, SP, 1998; Hungria, Comentários ao Código Penal, v. 1, RJ, 1967; Fernando A . Pedroso, Direito Penal, Leud, SP, 2000. Contra: Luiz R. Prado, Curso de Direito Penal Brasileiro, P. Geral, RT, SP, 2000; Galdino Siqueira, Tratado de Direito Penal, P. Geral, tomo II, José Konfino editor, RJ, 1947; Nilo Batista, Concurso de Agentes- Uma investigação sobre os Problemas da Autoria e da Participação no Direito Penal Brasileiro, Ed. Liber Juris, 1979, RJ. A respeito, veja-se ainda, a explicação de Cezar R. Bitencourt, Manual de Direito Penal, P. Geral, v.1, Saraiva, SP, 2000.
2. Vejam-se os mesmos autores já mencionados.
3. Luiz R. Prado, Curso de Direito Penal Brasileiro, P. Geral, RT, SP, 2000; Santiago Mir Puig, Derecho Penal, P. General, Ed. Reppertor, Barcelona, 1996; Claus Roxin (com ressalvas), Autoría y Dominio del Hecho en Derecho Penal, Marcial Pons, Madrid, 2000; Noronha, Direito Penal,v. 1, Saraiva, SP, 1998.
4. Nilo Batista, Concurso de Agentes- Uma investigação sobre os Problemas da Autoria e da Participação no Direito Penal Brasileiro, Ed. Liber Juris, 1979, RJ; Damásio, Direito Penal, 1º v., P. Geral, Saraiva, SP, 1999; Fragoso, Lições de Direito Penal, P. Geral, Forense, RJ, 1990; Maurach, Derecho Penal, P. General, Editorial Astrea, B. Aires, 1995 (menciona os §§ 26 e 27 do Código Penal alemão que expressamente condiciona as formas de participação para crimes dolosos. Bem ao contrário do italiano que, no art. 113 aplica punibilidade para a cooperação no crime culposo); Jescheck, Tratado de Derecho Penal, P. General, Editorial Comares, Granada, 1993; Enrique Bacigalupo, Princípios de Derecho Penal, Ediciones Akal, Madrid, 1998; Zaffaroni e Pierangeli, Manual de Direito Penal Brasileiro, P. Geral, RT, 2000 (excluindo a determinação quando ausente o injusto do então autor apenas nos crimes próprios dolosos).

José Carlos Gobbis Pagliuca é Promotor de Justiça em São Paulo/SP, mestrando em Dir. Proc. Penal- Puc/SP e doutorando em Dir. Penal-Uned/ Madrid

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