Autor: Henry Lummertz (*)
O começo de 2016 deve ser marcado por intensos debates acerca da cobrança do ICMS no comércio eletrônico. Isso porque, ao lado das alterações relativas às operações interestaduais tendo como destinatários consumidores finais [1], houve também alterações referentes às operações envolvendo o download de softwares, todas elas produzindo efeitos a partir de 1º de janeiro de 2016.
No Estado de São Paulo, o Decreto 61.522/2015 revogou o Decreto 51.619/2007, que previa metodologia específica para a apuração da base de cálculo do ICMS em operações com softwares, prevendo que o imposto seria calculado sobre valor correspondente ao dobro do valor de mercado de seu suporte informático [2]. Com isso, volta a ser aplicável às operações comsoftwares a regra geral para a apuração da base de cálculo do ICMS, segundo a qual o imposto deve ser calculado sobre o valor da operação, o que incluiria o valor do software, o valor do suporte informático e outros valores que forem cobrados do usuário do software.
Já o Confaz editou o Convênio ICMS 181/2015, que que autoriza diversos Estados [3]: a) a conceder redução na base de cálculo do ICMS nas operações com softwares padronizados disponibilizados por qualquer meio, inclusive nas operações efetuadas por meio da transferência eletrônica de dados, de forma a que a carga tributária corresponda a, no mínimo, 5% do valor da operação; e b) a não exigir débitos fiscais do ICMS relacionados com tais operações, desde que ocorridas até 31 de dezembro de 2015.
A questão que se coloca é se essas alterações legislativas conduzem à cobrança do ICMS nas operações em que se verifica o download do software. E a resposta, entende-se, há de ser negativa. Senão veja-se.
Inicialmente, deve-se recordar que a base de cálculo de determinado tributo deve obrigatoriamente cingir-se a sua hipótese de incidência, guardando com ela uma relação de pertinência, sob pena de descaracterização do tributo [4]. Assim, só poderão ser incluídos na base de cálculo do ICMS valores que guardem relação de pertinência com sua hipótese de incidência definida pela Constituição Federal. Em consequência, os valores relativos às operações referentes ao download de softwares só poderão integrar a base de cálculo do ICMS se tais operações estiverem abrangidas pela hipótese de incidência do imposto.
A hipótese de incidência do ICMS está definida no inciso II do artigo 155 da Constituição Federal, que atribui aos Estados e ao Distrito Federal competência para instituir imposto sobre “operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior”, interessando, para a presente análise, a parcela da hipótese de incidência do ICMS que corresponde às “operações relativas à circulação de mercadorias”, ou seja, àquelas operações que tem por objeto mercadorias e que envolvem a transferência da propriedade destas mercadorias.
Ora, assim definida a hipótese de incidência do ICMS, forçoso concluir-se que as operações em que se verifica o download de softwares não podem ser nela enquadradas, na medida em que: a) o software não pode ser caracterizado como uma mercadoria; e b) o download não pode ser qualificado como operação relativa à circulação do software.
Com efeito, os softwares integram o gênero “obra intelectual” e os direitos que sobre eles podem ser exercidos constituem direitos autorais [5]. Trata-se de bens incorpóreos, que não possuem, em si mesmos considerados, existência física [6]. Mesmo quando o software está gravado em um suporte físico, ele continua possuindo existência autônoma, enquanto obra intelectual, não se confundindo com o suporte físico [7]. Logo, não é possível enquadrar o software no conceito de mercadoria, que abrange apenas bens corpóreos [8].
Por outro lado, quando os usuários realizam o download do software, em geral estão aderindo a contrato de licenciamento do direito de uso dosoftware. Esse direito de usar constitui um direito autoral vinculado aosoftware [9], que pode ser cedido por seu autor a terceiros, por meio de um contrato de licença [10]. Destaque-se que o contrato de licença do softwarecorresponde a uma simples cessão do uso, não envolvendo a transferência da titularidade dos direitos autorais relativos ao software [11]. Por isso, o licenciamento não pode ser qualificado como operação relativa à circulação do software, na medida em que não envolve a transferência de propriedade do bem [12].
Por conseguinte, como as operações referentes ao download de software não constituem operações relativas à circulação de mercadorias, não estão abrangidas pela hipótese de incidência do ICMS, não podendo os valores a elas relativos serem incluídos na base de cálculo do imposto. Em consequência, a legislação infraconstitucional que pretenda incluir os valores referentes às operações relativas ao download de software na base de cálculo do ICMS atrairá para si a pecha de inconstitucional, por contrariar o inciso II do artigo 155 da Constituição Federal.
No âmbito da jurisprudência, o primeiro precedente relativo à tributação do licenciamento de software no Supremo Tribunal Federal corresponde ao Recurso Extraordinário 176.626, em que se discutiu a possibilidade de se caracterizar o software como mercadoria e de se submeter o licenciamento ou cessão de direito de uso do software à incidência do ICMS.
Naquele julgamento, o entendimento adotado de forma unânime pelo Supremo Tribunal Federal foi o de que: a) sendo o software um bem incorpóreo, não pode ser qualificado como mercadoria, pois, como assinalou o ministro Sepúlveda Pertence, “o conceito de mercadoria efetivamente não inclui os bens incorpóreos, como os direitos em geral: mercadoria é bem corpóreo objeto de atos de comércio ou destinado a sê-lo”; b) as operações de licenciamento ou cessão do direito de uso de software, por terem por objeto um bem incorpóreo, e não uma mercadoria — objeto material da norma de competência dos Estados para instituir o ICMS, como destacado na ementa do acórdão —, não se enquadram na hipótese de incidência do ICMS; e c) o ICMS pode incidir nos casos em que haja comercialização de suportes físicos em que estejam gravados os softwares, “os quais, materializando o corpus mechanicum da criação intelectual do programa, constituem mercadorias postas no comércio”, como constou na ementa do acórdão.
O ministro Sepúlveda Pertence esclareceu que, na operação relativa à venda de suportes físicos em que estão gravados softwares standards há dois contratos: um, para que sejam fornecidos os suportes físicos (compra e venda, doação, locação, comodato); outro, relativo ao licenciamento do software. Destacou, ainda, que “[o] comerciante que adquire exemplares para revenda, mantendo-os em estoque ou expondo-os em sua loja, não assume a condição de licenciado ou cessionário dos direitos de uso que, em consequência, não pode transferir ao comprador: sua posição, aí, é a mesma do vendedor de livros ou de discos, que não negocia com os direitos do autor, mas com o corpus mechanicum de obra intelectual que nele se materializa”, concluindo que “é sobre essa operação que cabe plausivelmente cogitar da incidência do imposto questionado [o ICMS]”.
Entendeu, portanto, o Supremo Tribunal Federal, que o ICMS só pode incidir se a operação envolver a circulação dos suportes físicos em que estão gravados os softwares, não podendo incidir se a operação envolver apenas o licenciamento do software.
O segundo caso analisado pelo Supremo Tribunal Federal foi o Recurso Extraordinário 199.464, em que se discutiu a incidência do ICMS no comércio de disquetes em que estavam gravados softwares. Naquele caso, o Supremo Tribunal Federal concluiu se estava diante de operação relativa a suportes físicos em que estavam gravados softwares, concluindo que “[a]produção em massa para comercialização e a revenda de exemplares docorpus mechanicum da obra intelectual que nele se materializa não caracterizam licenciamento ou cessão de direitos de uso da obra, mas genuínas operações de circulação de mercadorias, sujeitas ao ICMS”.
Portanto, o Supremo Tribunal Federal reiterou o entendimento de que, havendo operações relativas à circulação de suportes físicos em que estejam gravados softwares, essas operações podem sofrer a incidência do ICMS, na medida em que envolvem bem corpóreo passível de ser qualificado como mercadoria.
Aplicando esse entendimento às operações em que se verifica o download desoftwares, impõe-se como necessária a conclusão de que tais operações não estão sujeitas à incidência do ICMS, uma vez que nelas não se pode identificar a “comercialização e a revenda de exemplares do corpus mechanicum da obra intelectual que nele se materializa”, havendo tão somente o licenciamento do software.
Cumpre destacar, no entanto, que a matéria ainda não se encontra pacificada no Supremo Tribunal Federal. Com efeito, não obstante os julgamentos do Recurso Extraordinário 176.626 e do Recurso Extraordinário 199.464 tenham sido unânimes, surgiu divergência no julgamento da ADI 1.945, ajuizada contra dispositivos da Lei 7.098/98 do Estado do Mato Grosso que preveem a incidência do ICMS quando softwaresforem adquiridos por meio de transferência eletrônica de dados. O ministro Octavio Gallotti, aplicando o entendimento anteriormente adotado pelo Supremo Tribunal Federal, afastou a incidência do ICMS nas operações relativas a softwares “realizadas por transferência eletrônica de dados”. O ministro Nelson Jobim, no entanto, afirmou que o ICMS pode incidir sobresoftwares, ainda que adquiridos por meio de transferência eletrônica de dados, sustentando que, se o fato de ser o bem incorpóreo obstasse a incidência do ICMS, o imposto não poderia ser cobrado nem mesmo na aquisição de software de prateleira, visto que, nesse caso, não se está adquirindo o CD ou DVD, a caixa ou o livreto de manual, mas também e principalmente a mercadoria virtual gravada no instrumento de transmissão. Os ministros Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio e Celso de Mello acompanharam o ministro Octávio Galotti, ao passo que os ministros Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Eros Grau, Ayres Britto e Cezar Peluso acompanharam o ministro Nelson Jobim, o que redundou no indeferimento da medida cautelar.
Deve-se observar, no entanto, que pesou na decisão dos ministros Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Eros Grau, Ayres Britto e Cezar Peluso a circunstância de as normas virem sendo consideradas constitucionais há mais de doze anos, de modo que não caberia suspender sua eficácia, em sede de cautelar, após tanto tempo, devendo a corte refletir com maior profundidade sobre o tema quando do julgamento de mérito da matéria. Assim, apesar de a decisão proferida no julgamento da ADI 1.945 evidenciar que a matéria ainda não está pacificada no Supremo Tribunal Federal, não se pode afirmar que ela tenha representado uma alteração do entendimento daquela Corte acerca da incidência do ICMS nas operações com softwares.
De todo o exposto, conclui-se que, embora a questão ainda esteja em aberto no Poder Judiciário, não há dúvida de que há sólidos argumentos jurídicos para se questionar a pretensão dos Estados de cobrarem o ICMS nas operações relativas ao download de software. Especialmente porque as premissas em que se funda essa pretensão — a qualificação de bens incorpóreos como “mercadorias” e a identificação de operações que envolvem apenas a cessão de uso como “circulação” — conduzem a uma desestruturação da partilha das competências tributárias definidas pela Constituição Federal, na medida em que trariam para o âmbito do ICMS diversas operações que integram a competência tributária de outros entes federados, rendendo ensejo um sem-número de conflitos.
1 EC 87/2015; Convênios ICMS 93/2015, 152/2015 e 183/2015.
2 Essa sistemática de apuração da base de cálculo do ICMS nas operações com software foi introduzida pelo Dec. 35.674/92, que acrescentou o art. 51-A ao RICMS aprovado pelo Dec. 33.118/91, havendo sido mantida no art. 50 do RICMS aprovado pelo Dec. 45.490/2000, até que este foi revogado pelo Dec. 51.520/2007, passando, então, a constar no Dec. 51.619/2007.
3 AC, AL, AP, AM, BA, CE, GO, MA, MS, PR, PB, PE, PI, RJ, RN, RS, SC, SP e TO.
4 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990. p. 111-2; CARRAZZA, Roque Antônio. ICMS. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 18; FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato gerador da obrigação tributária. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1974. p. 137-8; SOUZA; Rubem Gomes de. Taxa Municipal de Conservação de Estradas de Rodagem. Revista dos Tribunais. a. 47, v. 277, p. 61-75, nov. 1958. p. 65-6.
5 Lei 9.610/98, art. 7º, inc. XII; Lei 9.609/98, art. 2º
6 BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na Lei. 2. ed. São Paulo: Dialética, 2005. p. 134, 137 e 138; CHIESA, Clélio. Competência para tributar operações com programas de computador (softwares). Revista Tributária e de Finanças Públicas, a. 9, n. 36, jan./fev. 2001, p. 41-53. p. 49 e 52.
7 BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na Lei. 2. ed. São Paulo: Dialética, 2005. p. 134; CHIESA, Clélio. Competência para tributar operações com programas de computador (softwares). Revista Tributária e de Finanças Públicas, a. 9, n. 36, jan./fev. 2001, p. 41-53, p. 49.
8 BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na Lei. 2. ed. São Paulo: Dialética, 2005. p. 136, 137 e 138; CHIESA, Clélio. Competência para tributar operações com programas de computador (softwares). Revista Tributária e de Finanças Públicas, a. 9, n. 36, jan./fev. 2001, p. 41-53, p. 52.
9 Lei 9.610/98, art. 28.
10 Lei 9.609/98, art. 9º.
11 BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na Lei. 2. ed. São Paulo: Dialética, 2005. p. 136, 137 e 138; CHIESA, Clélio. Competência para tributar operações com programas de computador (softwares). Revista Tributária e de Finanças Públicas, a. 9, n. 36, jan./fev. 2001, p. 41-53, p. 52; GONÇALVES, Renato Lacerda de Lima. ISS sobre licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação. In MACHADO, Rodrigo Brunelli. ISS na Lei Complementar nº 116/2003. São Paulo: Quartier Latin, 2004. p. 143, 144 e 146; REIS, Emerson Vieira. Não-incidência do ISS sobre licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computador. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 160, jan. 2009, p. 25-34. p. 27.
12 BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na Lei. 2. ed. São Paulo: Dialética, 2005. p. 136, 137 e 138; CHIESA, Clélio. Competência para tributar operações com programas de computador (softwares). Revista Tributária e de Finanças Públicas, a. 9, n. 36, jan./fev. 2001, p. 41-53, p. 43, 51 e 52; GONÇALVES, Renato Lacerda de Lima. ISS sobre licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação. In MACHADO, Rodrigo Brunelli. ISS na Lei Complementar nº 116/2003. São Paulo: Quartier Latin, 2004. p. 143; REIS, Emerson Vieira. Não-incidência do ISS sobre licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computador. Revista Dialética de Direito Tributário, n. 160, jan. 2009, p. 25-34, p. 27.
Autor: Henry Lummertz (*) é advogado e sócio do escritório Souto Correa.