Código Civil de 2002: a Iniciativa Privada e a Atividade de Produção ou Circulação de Bens ou Serviços
1. A importância da Constituição Federal na abordagem do tema
Há uma regra estrutural do Direito, segundo a qual uma norma jurídica sempre encontra o seu fundamento de validade numa outra que lhe é superior. Isso significa que o ordenamento jurídico é um sistema unitário de normas dispostas numa estrutura hierarquizada. Como a Constituição Federal é considerada o marco inicial do Direito escrito, nela encontram-se as normas de maior hierarquia. Algumas normas do texto constitucional podem ser modificadas por Emenda Constitucional, exemplo disso é a reforma tributária e previdenciária em curso no Congresso Nacional. Existe, porém, na Constituição, um conjunto de normas, denominadas princípios constitucionais, que não podem ser modificadas e, por isso, são consideradas cláusulas pétreas. Por essas razões, pode-se dizer que, dentre todas as normas as quais compõem o ordenamento jurídico, as de maior hierarquia são os princípios constitucionais.
Nesse sentido, os princípios constitucionais fundamentam todas as demais normas do ordenamento, razão pela qual estão situados numa posição de superioridade, posto que as normas subordinadas não podem contrariar as normas de hierarquia superior. Desse modo, os princípios orientam: a) a atividade interpretativa do operador do Direito e b) a produção e aplicação das normas pelos órgãos estatais.
Na abordagem de qualquer tema jurídico, portanto, é necessário, em primeiro lugar, identificar os princípios constitucionais aos quais o tema se submete e, a partir deles, caminhar em direção às normas jurídicas das leis, decretos, portarias etc. O princípio jurídico, conseqüentemente, orienta a interpretação de outras normas, inclusive as de âmbito constitucional. A norma que se apresenta vaga e ambígua deve ser interpretada e aplicada em sintonia com os princípios que a Constituição acolhe. Em síntese: os princípios constitucionais, por serem normas qualificadas, são considerados vetores para soluções interpretativas.
O conjunto normativo do Código Civil, que regula a produção ou circulação de bens ou serviços (Direito de Empresa), dessa forma, deve ser interpretado e sistematizado de acordo com os princípios constitucionais.
2. A Constituição e a atividade de produção ou circulação de bens ou serviços
A Constituição Federal (art. 170) estabelece que a atividade econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados determinados princípios, dentre os quais destaco: a) o princípio da livre concorrência (art. 170, IV, da CF): o qual afirma que a livre iniciativa é para todos, sem exclusões e discriminações e b) o princípio do tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte (art. 170, IX, da CF).
O princípio do tratamento favorecido aos empreendimentos de pequeno porte é reafirmado no art. 179 da CF, nos seguintes termos: “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei”. Trata-se de um princípio isonômico, princípio equalizador que expressa o reconhecimento das desigualdades que de fato existem, por isso impõe às pessoas políticas um dever que consiste em tratar desigualmente os desiguais, vale dizer, numa ordem econômica fundada na livre iniciativa, é necessário dispensar tratamento favorecido às pequenas empresas para que estas possam resistir no mercado competitivo da livre concorrência, cujas vantagens são todas favoráveis aos grandes oligopólios.
O Código Civil de 2002 repete o princípio constitucional ao estabelecer que “a lei assegurará tratamento favorecido, diferenciado e simplificado ao empresário rural e ao pequeno empresário, quanto à inscrição e aos efeitos daí decorrentes” (art. 970).
Em conformidade com o princípio constitucional foram editados a Lei do Simples (Lei n. 9.317/96) e o Estatuto da Microempresa – ME – e da Empresa de Pequeno Porte – EPP (Lei n. 9.841/99), que definem o pequeno empresário de acordo com a receita bruta anual, observada, no caso do Estatuto, a obrigatoriedade de enquadramento na Junta Comercial e, no caso da Lei do Simples, o enquadramento na Receita Federal. O Estatuto e a Lei do Simples fixam, para a EPP, a receita bruta anual máxima de R$ 1.200.000,00; para a ME, o Estatuto fixa a receita bruta anual máxima em R$ 244.000,00 e a Lei do Simples em R$ 120.000,00. É importante observar que os citados diplomas legais não estabelecem receita mínima, portanto, os microempresários, mesmo aqueles com faturamento anual inferior a R$ 120.000,00, não estão dispensados da inscrição na Junta Comercial e, caso optem pela tributação da Lei do Simples, devem providenciar a inscrição na Receita Federal. Nesse sentido, o conceito de “empresa”, ao contrário do que pode sugerir alguma manifestação doutrinária, abrange também as micro e pequenas empresas organizadas por pessoas físicas ou jurídicas, posto que, conforme determina a Constituição Federal, a livre iniciativa é para todos.
A Constituição Federal, ao proclamar o princípio da livre iniciativa como fundamento da ordem econômica, atribui à iniciativa privada o papel primordial na produção ou circulação de bens ou serviços. A livre iniciativa, dessa forma, constitui a base sobre a qual se constrói a ordem econômica, cabendo ao Estado apenas uma função supletiva porque a Constituição determina que “(…) a exploração direta da atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo (…)” (art. 173). No caso de segurança nacional, são monopólio estatal (da União) “a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados” (art. 177, V, da CF); também constituem monopólio estatal as demais atividades previstas no art. 177 (incs. I ao IV), cujo exercício poderá ser realizado por empresas estatais ou privadas mediante contratos com a União (art. 177, § 1.º). No caso de relevante interesse coletivo (saúde e educação, por exemplo), a iniciativa privada pode concorrer com o Estado, sem necessidade de contratação (arts. 197 e 206, III, da CF).
A Constituição determina o papel primordial do Estado nos seguintes termos: “como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento” (art. 174 da CF). A Constituição Federal não repudia, portanto, o intervencionismo estatal na produção ou circulação de bens ou serviços, mas também não se trata de um intervencionismo que nega ou cerceia o acesso à livre concorrência, pelo contrário, o Estado deve assegurá-la e estimulá-la, por meio de ações sistemáticas fundadas na lei. Vale dizer, o intervencionismo não se faz contra a iniciativa privada, até porque a Constituição estatui a liberdade de iniciativa e o Direito de Propriedade dos bens de produção como princípios básicos da ordem econômica.
A Carta Magna, enfim, atribui: a) à iniciativa privada (pessoa física e pessoa jurídica de Direito privado) o papel primordial no exercício da atividade de produção ou circulação de bens ou serviços e b) ao Estado o papel primordial de normatizar o exercício da atividade de produção e circulação de bens e serviços, tendo em vista facilitar e estimular a iniciativa privada e fiscalizá-la no sentido de evitar irregularidades.
Causa estranheza, por conseguinte: a) a demora de algumas Juntas Comerciais a se adaptar às novas regras introduzidas pelo Código Civil de 2002 e b) a resistência de alguns Cartórios de Registro Civil de Pessoas Jurídicas aos pedidos de transferências dos atos constitutivos de sociedades empresárias (antigas sociedades civis) para as Juntas Comerciais. Essas situações geram falsas incertezas, desestimulam e perturbam o ambiente empresarial, especificamente o do pequeno empresário, a quem o Estado, por intermédio de suas administrações direta e indireta, deve dar tratamento favorecido, de igual modo, perturbam o ambiente dos profissionais que prestam assessorias jurídica e contábil aos pequenos empresários.
A minha palestra, ao cuidar da sistematização do Código Civil na parte que trata do Direito de Empresa, tem também essa finalidade operacional de apontar, dentre as pessoas que exercem a atividade de produção ou circulação de bens ou serviços, as que se vinculam às Juntas Comerciais e as que se vinculam ao Registro Civil das Pessoas Jurídicas.
3. A iniciativa privada e a atividade econômica
Para legalizar a produção ou circulação de bens ou serviços, é preciso definir a pessoa ou pessoas responsáveis pelo empreendimento. Existem regimes jurídicos distintos e esses se definem não apenas em função da atividade exercida, mas também da pessoa que a exerce. Tem-se, portanto, o entrelaçamento do fator subjetivo (pessoa) com o fator objetivo (atividade). Vale dizer, o regime jurídico da sociedade anônima, por exemplo, não é o mesmo da sociedade limitada, da cooperativa ou da associação. Algumas atividades de produção ou circulação de bens ou serviços podem ser exercidas por diferentes pessoas (física ou jurídica) e isto implica uma escolha.
A escolha é um ato da vontade, mas a vontade está submetida à razão. Pode-se dizer que a escolha pressupõe um cálculo econômico racional fundado em duas premissas: a) a neutralização dos riscos e b) a otimização de resultados. O cálculo, ou, como preferem os economistas, a reengenharia empresarial com vistas à qualidade total, implica conexões complexas porque deve considerar não apenas as normas do Direito de Empresa, mas também outros conjuntos normativos do Direito Comercial, do Tributário, do Trabalhista, do Civil e do Previdenciário, cuja conjugação permite a redução de custos e despesas. São exemplos desse cálculo: a) a terceirização de linhas de produção da grande empresa (sociedade anônima) para pequenas e médias empresas (sociedades empresárias limitadas); b) a substituição de empregados assalariados por cooperativas ou pequenas sociedades prestadoras de serviços (simples ou empresárias) e c) a constituição de associações sem fins lucrativos que controlam atividades cuja organização constitui empresa.
Pessoa é um conceito amplo que envolve pessoas físicas e jurídicas. De acordo com o Código Civil, a atividade de produção ou circulação de bens ou serviços pode ser exercida por empresário e por não-empresário. O empresário pode ser: a) pessoa física, denominada empresário individual, ou b) pessoa jurídica, designada sociedade empresária, que deve adotar um dos seguintes tipos previstos no Código: sociedade em nome coletivo, sociedade em comandita simples, sociedade limitada, sociedade anônima e sociedade em comandita por ações (art. 983 do CC). O não-empresário pode ser: a) pessoa física, designada profissional intelectual ou empresário rural, ou b) pessoa jurídica, as sociedades simples (cooperativa e sociedade simples), a associação e a fundação. O Código prevê ainda a hipótese do exercício da atividade por sociedade não personificada (sociedade em comum), aquela cujos atos constitutivos (contrato social ou estatuto) não estão inscritos no órgão competente (art. 986 do CC), motivo pelo qual não é considerada pessoa, mas apenas ente despersonalizado.
Nesse conjunto de pessoas, indubitavelmente, o empresário é a figura de destaque no que concerne à exploração da atividade de produção ou de circulação de bens ou serviços. Há necessidade, então, de traçar a sua definição.
Conforme estabelece o Código Civil: a) “Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços”. É obrigatória a sua inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis (Junta Comercial) da respectiva sede, antes do início de sua atividade (arts. 966 e 967) e b) “Salvo as exceções expressas, considera-se empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art. 967); e, simples, as demais” (art. 982). Empresário, portanto, é pessoa física (empresário individual) ou jurídica (sociedades empresárias) que toma a iniciativa de organizar a empresa.
Empresa, conforme estabelece a doutrina, é atividade econômica organizada, cuja marca essencial é a obtenção de lucros com o oferecimento ao mercado de bens ou serviços, gerados mediante a organização dos fatores de produção: trabalho, capital e tecnologia. Empresa é, por conseguinte, atividade, não se confunde com o empresário (pessoa que exerce a atividade) nem com o estabelecimento empresarial (o complexo de bens corpóreos e incorpóreos organizados racionalmente).
Fica evidente que as demais pessoas físicas (profissional intelectual e empresário rural) e jurídicas (cooperativa, sociedade simples, associação e fundação), ainda que tenham por objeto a mesma atividade do empresário (produção ou circulação de bens ou serviços), não são consideradas empresários porque não exploram uma empresa.
Nesse sentido, é possível relacionar, com os respectivos fundamentos jurídicos, as pessoas (físicas e jurídicas) que não são empresários: a) a associação: porque se organiza para fins não econômicos, ou seja, está proibida de distribuir lucros para os seus associados (art. 53 do CC); b) a fundação: porque não pode ser constituída para fins econômicos, mas somente para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência (art. 62, par. ún., do CC); c) o profissional intelectual: porque o Código Civil não considera empresário “quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa” (art. 966, par. ún.); d) o empresário rural: porque “o empresário, cuja atividade rural constitua sua principal profissão (…)” está dispensado de requerer sua inscrição na Junta Comercial e somente será equiparado a empresário se optar pela inscrição (art. 971 do CC); e) a sociedade rural de pequeno porte: já que “a sociedade que tenha por objeto o exercício de atividade própria de empresário rural (…)” somente será equiparada à sociedade empresária se for constituída de acordo com um dos tipos de sociedade empresária e depois de requerer a inscrição na Junta Comercial (art. 984 do CC); f) a sociedade cooperativa: uma vez que, independentemente de seu objeto, é considerada sociedade simples (art. 982, par. ún., do CC); g) a sociedade simples: porque a lei considera simples a sociedade a qual tem por objeto o exercício de atividade que não é própria de empresário sujeito a registro (art. 982 do CC), portanto, simples é a sociedade que tem por objeto o exercício de profissão intelectual, de naturezas científica, literária ou artística, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.
Os empresários vinculam-se à Junta Comercial e os não-empresários ao Registro Civil das Pessoas Jurídicas, exceto a cooperativa que, embora não seja empresário, deve arquivar seus atos constitutivos na Junta Comercial. Aliás, é preciso anotar que: a) os empresários e não-empresários (sociedades, associações e fundações), constituídos na forma das leis anteriores, devem se adaptar às disposições do Código Civil até 10 de janeiro de 2004 (art. 2.031 do CC) e b) as “pessoas obrigadas a requerer o registro responderão por perdas e danos, em caso de omissão ou demora” (art. 1.151, § 3.º, do CC).
Repito que o exercício da atividade de produção ou circulação de bens ou serviços não está adstrito apenas à iniciativa do empresário (sociedades empresárias e empresário individual). A atividade, quando não organizada em empresa, pode ser exercida por outras pessoas (físicas ou jurídicas), até mesmo o Estado, como dito, pode explorar tais atividades quando necessárias aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo (art. 173 da CF). Serviços na área da saúde e do ensino, por exemplo, podem ser praticados por sociedade empresária ou por outra pessoa jurídica (sociedade simples, cooperativa, associação ou fundação), podem ser exercidos até por pessoa física (empresário individual ou profissional liberal).
O Código Civil de 2002 absorve a Teoria da Empresa e introduz mudanças no Direito Comercial. Na vigência da lei anterior (Código Civil de 1916 e Código Comercial de 1850), a atividade de produção ou circulação de bens ou de serviços, mesmo quando organizada em empresa, estava submetida à Teoria dos Atos de Comércio, razão pela qual a atividade era subdividida em comercial (indústria, comércio e algumas atividades de prestação de serviços também consideradas atos de comércio) e civil (a prestação de serviços não considerada ato de comércio), fato que implicava a existência de: a) sociedades comerciais e comerciante individual explorando a atividade comercial e b) sociedades civis e profissionais autônomos explorando a atividade civil.
Com as mudanças introduzidas pelo Código Civil de 2002, as sociedades civis (exceto as que exercem atividades científica, literária ou artística, cujo exercício não constitui elemento de empresa) passam a compor, juntamente com as sociedades comerciais, o conjunto que hoje se denomina sociedades empresárias, e os profissionais autônomos (exceto os que exercem profissão intelectual, de naturezas científica, literária ou artística, cujo exercício não constitui elemento de empresa) passam a compor, juntamente com o comerciante individual, o conjunto o qual se denomina empresário individual.
Indubitavelmente, a sociedade empresária é a pessoa de maior vulto na organização da produção ou circulação de bens ou serviços. Não se pode menosprezar ou diminuir, entretanto, a importância das cooperativas, sociedades simples, fundações e associações, posto que essas pessoas jurídicas possuem movimento econômico considerável e exercem atividades que geram milhões de empregos. A estrutura organizacional dessas pessoas jurídicas não se difere da estrutura empresarial e, embora não constituam empresa, muitas delas atuam no mesmo ramo de atividade do empresário, razão pela qual são exigidas maiores reflexões dos operadores do Direito Empresarial sobre o regime jurídico dessas pessoas consideradas não-empresários.
Não se pode também menosprezar o estudo do regime jurídico da pessoa física (empresário individual e profissional intelectual), posto que as estatísticas do Departamento Nacional de Registro do Comércio (DNRC) apontam que, entre o período de 1985 a 2002, foram inscritas nas Juntas Comerciais 8.443.667 empresas, desse total, 4.383.950, ou seja, 51,4% são empresas exercidas por pessoas físicas (comerciantes individuais).
4. A pessoa física e a produção ou circulação de bens ou serviços
O Código Civil, como foi visto, define três pessoas físicas envolvidas no exercício da atividade de produção ou circulação de bens ou serviços: o empresário individual, o profissional intelectual e o empresário rural. Embora essas pessoas sejam, no geral, disciplinadas pela mesma lei (Código Civil), existem diferenças acentuadas entre os regimes jurídicos de cada uma delas.
4.1. Empresário individual é a pessoa física, capaz e não impedida, que exerce em nome próprio e profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços (art. 966 do CC). É obrigatória a inscrição (declaração de firma individual) do empresário individual na Junta Comercial antes do início de sua atividade (art. 967 do CC), sob pena de ser sancionado pelo Direito como empresário irregular.
É importante repetir que empresário individual não é apenas aquele que explora a indústria e o comércio, mas também o que explora, profissionalmente, atividades de prestações de serviço (exceto as atividades científicas, literárias ou artísticas as quais não constituem elemento de empresa). As pessoas físicas, portanto, que eram denominadas “trabalhadores autônomos” e que exercem profissionalmente atividades de prestação de serviços, tais como: estacionamento ou guarda de veículos, barbearia ou salão de beleza, mecânica, consertos ou pintura de veículos, lavanderia, alfaiataria ou reforma de roupas, costureira ou modista, pintura de paredes ou de faixas, eletricista, encanador, construção civil de pequeno porte (muros, paredes), instalação de divisórias, consertos de aparelhos elétricos ou eletrônicos etc., devem se adaptar ao Código Civil de 2002 na qualidade de empresários individuais, providenciando a inscrição na Junta Comercial. O empresário individual, enfim, pode ser visto como uma versão ampliada composta pelo antigo comerciante individual e pelo antigo trabalhador autônomo.
A lei tributária municipal exige a inscrição do empresário individual no Cadastro dos Contribuintes Mobiliários da Prefeitura do Município onde estiver estabelecido. Além disso, para efeitos de recolhimento de tributos federais, determinados empresários individuais (em regra, aqueles que exploram atividades de indústria ou comércio) são equiparados pela lei tributária federal às pessoas jurídicas (sociedades empresárias), portanto, se for o caso, é obrigatória a inscrição do empresário individual no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) da Receita Federal. Caso o empresário individual seja contribuinte do ICMS, também é necessária a Inscrição Estadual.
A falta de inscrição na Junta Comercial e demais órgãos da administração pública implica sanções que podem ser aplicadas ao empresário em virtude do exercício irregular da atividade. Nesse sentido, o empresário individual irregular: a) não tem legitimidade ativa para o pedido de falência do seu devedor; b) não tem legitimidade ativa para impetrar pedido de concordata; c) seus livros não têm força probatória perante o Poder Judiciário e, caso seja decretada sua falência, responderá por crime falimentar e ficará proibido de exercer a atividade empresária durante certo espaço de tempo e d) está sujeito à autuação e imposição de multas pelos órgãos de fiscalização.
4.2. Profissional intelectual é a pessoa física que exerce profissão intelectual, de naturezas científica, literária ou artística, cujo exercício não constitui elemento de empresa (art. 966, par. ún., do CC). Os profissionais intelectuais, em sua maioria, situam-se nas profissões regulamentadas por lei (advogados, médicos, contadores, dentistas, engenheiros, administradores etc.). Nesses casos, o exercício regular da profissão depende da inscrição no órgão de classe (OAB, CRM, CRC, CRO, CREA, CRA etc.). O exercício da profissão sem o devido registro no órgão de classe é conduta tipificada como crime.
É necessária também a inscrição do profissional intelectual no Cadastro dos Contribuintes Mobiliários da Prefeitura do Município, cuja falta pode implicar Auto de Infração e Imposição de Multa (AIIM) a cargo dos órgãos de fiscalização.
É importante anotar que as atividades científicas, literárias ou artísticas também podem ser exploradas por empresário individual, desde que constitua elemento de empresa. Um médico que atende diretamente a sua clientela é considerado profissional intelectual, mesmo quando contrata auxiliares ou colaboradores como empregados (secretária, mensageiro etc.). O negócio, entretanto, pode expandir e impor ao médico a contratação de outros médicos para atender uma clientela cada vez maior. A tendência é o afastamento do médico (dono do consultório) do exercício da sua atividade específica. Paulatinamente, ele vai deixando de ser médico para ser empresário, na medida em que passa a organizar a exploração da atividade na forma de empresa, tendo como finalidade o lucro advindo da organização empresária. Quando isso ocorre, o profissional intelectual, de fato, transformou-se em empresário e fica sujeito às disposições da lei referente à matéria mercantil. Nesse sentido, deve providenciar a declaração de firma individual na Junta Comercial porque a atividade passou a constituir elemento de empresa. É claro que o médico pode se associar a outro colega de profissão e criar uma sociedade para explorar o negócio. Nada impede, aliás, os profissionais intelectuais de se associarem para o exercício da atividade e, quando o exercício não caracteriza elemento de empresa, tem-se uma sociedade simples.
4.3. Empresário rural é a pessoa física cuja atividade rural constitui sua principal profissão e não possui inscrição na Junta Comercial (art. 971 do CC). O empresário rural explora atividade rural de pequeno porte, geralmente em regime familiar e no perímetro rural do município. São consideradas rurais as atividades voltadas para a plantação (agricultura, reflorestamento etc.), a criação de animais para abate, reprodução, competição ou lazer (pecuária, granja, suinocultura, entre outras) e o extrativismo vegetal (corte de árvores), animal (caça e pesca) e mineral (garimpo e mineração).
Vale frisar que empresário rural é aquele que explora a atividade de pequeno porte, não como simples meio de subsistência, mas sim de produção de excedente para negociar. O empreendimento de grande porte (agroindústria) deve ser explorado por empresário individual ou sociedade empresária.
Mesmo quando se trata de atividade rural de pequeno porte, nada impede o empresário rural de se transformar em empresário individual; para isso, basta providenciar o seu registro na Junta Comercial (arts. 970 e 971 do CC). Não há impedimento também para o empresário rural de se associar a outra pessoa e compor uma sociedade (pessoa jurídica) para explorar a atividade rural de pequeno porte.
4.4. Riscos do exercício da atividade como pessoa física: nesse ponto, é preciso anotar que o exercício da atividade como pessoa física implica alguns riscos e despesas os quais podem ser evitados, caso a atividade seja exercida por pessoa jurídica (sociedade simples limitada ou sociedade limitada empresária). Vale apontar três hipóteses que envolvem riscos e despesas para a pessoa física:
Primeira – responsabilidade patrimonial no caso de insucesso do empreendimento: a pessoa física (empresário individual, profissional intelectual ou empresário rural) responde com todo o seu patrimônio pessoal pelas obrigações decorrentes do exercício da atividade. No caso de falência, por exemplo, de um empresário individual proprietário de um restaurante, todo o seu patrimônio, com exceção dos bens absolutamente impenhoráveis, será arrecadado pelo síndico e levado à venda pública, mediante leilão ou proposta, não há separação entre os bens que compõem o estabelecimento empresarial (o restaurante) e os bens pessoais do empresário individual (o carro da família, o sítio, o apartamento no litoral, o terreno no condomínio etc.). No caso de execução, os bens do profissional intelectual e do empresário rural estão sujeitos à penhora, mesmo quando a dívida for contraída para investimentos na atividade. No caso de sociedade limitada (empresária ou simples), prevalece o princípio da autonomia patrimonial, de modo que, em regra, o patrimônio dos sócios não responde pelas obrigações contraídas pela sociedade.
Segunda – carga tributária maior: a pessoa física (profissional intelectual e o empresário não equiparado à pessoa jurídica) é tributada pelo imposto de renda à alíquota que atinge 27,5% sobre o preço dos serviços, inclusive com retenção na fonte quando o pagamento é efetuado por pessoa jurídica. Desse modo, um profissional intelectual (advogado, médico, contabilista etc.) que presta serviços à pessoa jurídica (sociedade, associação e fundação) e fatura durante o ano, por exemplo, a importância de R$ 200.000,00 deve suportar um desconto compulsório realizado pela fonte pagadora de aproximadamente R$ 54.000,00, correspondente ao imposto de renda retido na fonte. Já a sociedade está submetida a alíquotas bem inferiores; em alguns casos, a somatório de todos os tributos não ultrapassa 8% sobre o faturamento.
Terceira – contribuição para o INSS: a pessoa jurídica que recebe serviços de pessoa física (profissional intelectual e empresário não equiparado à pessoa jurídica) deve recolher ao INSS um valor correspondente a 15% sobre o preço do serviço. Aproveitando, assim, o mesmo exemplo acima, a pessoa jurídica que pagou a importância de R$ 200.000,00 para a pessoa física (administrador, advogado, contabilista etc.) deve recolher ao INSS R$ 30.000,00. No caso de o mesmo serviço ser prestado por pessoa jurídica (uma sociedade limitada, por exemplo), o recolhimento ao INSS não é devido. Nesse sentido, é óbvio que, quando se trata de prestação de serviços, a preferência na contratação recai sobre pessoas jurídicas e não sobre pessoas físicas.
Como foi dito, as estatísticas do DNRC indicam que, entre o período de 1985 a 2002, foram constituídas 8.443.667 empresas; desse total, 51,4%, ou seja, 4.383.950, são firmas individuais. Essas estatísticas excluem as empresas de prestação de serviços (atividades civis) porque, até 2002, as pessoas (físicas ou jurídicas) que exerciam tais atividades estavam dispensadas do registro na Junta Comercial. Com as modificações introduzidas pelo Código Civil, portanto, é certo que haverá um aumento considerável do número de empresários com inscrição nas Juntas Comerciais.
Em razão das situações desfavoráveis acima apontadas, além de outras, a tendência é a diminuição do percentual de pessoas físicas (empresários individuais e profissionais intelectuais), ocupando seus lugares as pequenas sociedades limitadas (empresária ou simples), podendo muitas delas se enquadrar no regime jurídico da ME ou da EPP.
5. A sociedade limitada e a produção ou circulação de bens ou serviços
As sociedades por ações (sociedade anônima e comandita por ações) são tipos apropriados aos grandes empreendimentos, razão pela qual, independentemente da atividade que exploram, são consideradas sociedades empresárias, enquanto a cooperativa, não importando a atividade, é considerada sociedade simples (art. 982, par. ún., do CC). A sociedade limitada, a sociedade em nome coletivo e a sociedade em comandita simples são empresárias, mas esses tipos podem ser adotados pela sociedade simples. A sociedade em nome coletivo, a comandita simples e a comandita por ações, em virtude da responsabilidade ilimitada de um, de alguns ou de todos os sócios, são praticamente inexistentes; motivo pelo qual o estudo dessas sociedades não desperta maior interesse da doutrina. Já as sociedades limitadas representam mais de 98% das sociedades existentes; esse número, por si só, justifica o enfoque nesse tipo societário.
A sociedade limitada pode adquirir três perfis distintos: a) sociedade limitada empresária regida supletivamente pelas normas da sociedade simples; b) sociedade limitada empresária regida supletivamente pelas normas da sociedade anônima e c) sociedade simples que adota o tipo de sociedade limitada (art. 983 do CC). Analiso apenas esta última porque as duas primeiras serão tratadas, em outra palestra, pelo ilustre Professor Doutor e Desembargador Aclibes Burgarelli.
5.1. Sociedade simples limitada: pode-se perceber o perfil genérico da sociedade simples limitada a partir da indicação de algumas diferenças entre a sociedade simples limitada e as sociedades limitadas empresárias, quais sejam: a) a sociedade simples limitada tem por objeto o exercício de profissão intelectual, de naturezas científica, literária ou artística, quando esse exercício não constitui elemento de empresa; as sociedades limitadas empresárias têm por objeto social o exercício profissional de atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços, inclusive o exercício de profissão intelectual, de naturezas científica, literária ou artística, quando esse constitui elemento de empresa (art. 982 do CC); b) a sociedade simples limitada deve registrar o seu contrato social no Registro Civil das Pessoas Jurídicas; as sociedades limitadas empresárias devem arquivar o contrato social na Junta Comercial (art. 1.150 do CC); c) a sociedade simples limitada não está obrigada a manter escrituração contábil em livros autenticados na Junta Comercial; as sociedades limitadas empresárias se submetem às regras do Código Civil sobre a escrituração, portanto, devem autenticar os livros obrigatórios na Junta Comercial e manter escrituração regular dos mesmos (art. 1.179 e seguintes do CC); d) o complexo de bens da sociedade simples, mesmo quando organizado para o exercício da atividade, não constitui um estabelecimento empresarial; o complexo de bens das sociedades empresárias, organizado para o exercício da empresa, é considerado estabelecimento, por conseguinte, submetido às regras do Código Civil, em especial as que tratam dos requisitos para a alienação (art. 1.142 e seguintes do CC); e) na sociedade simples limitada a contribuição do sócio pode consistir em prestação de serviços (art. 1.006 do CC); nas sociedades limitadas empresárias é vedada a contribuição em prestação de serviços (art. 1.055, § 2.º, do CC); f) na sociedade simples limitada a cessão das cotas depende da aprovação de todos os sócios (art. 1.003 do CC); nas sociedades limitadas empresárias, caso o contrato social seja omisso, o sócio pode ceder suas cotas a quem seja sócio, independentemente de audiência dos outros, ou a estranhos, se não houver oposição de titulares de mais de um quarto do capital social (art. 1.057 do CC); g) a sociedade simples limitada, conforme as regras da atual Lei, não está sujeita à falência e, no caso de insolvência, submete-se ao concurso de credores; as sociedades limitadas empresárias podem ter a falência requerida e decretada; h) a sociedade simples limitada não pode impetrar pedido de concordata; as sociedades limitadas empresárias podem impetrar pedido de concordata.
* Olney Queiroz Assis
Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP e Professor da Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus (FDDJ)