Código Eleitoral foi precursor do debate sobre segurança jurídica

Autores: Allan Titonelli Nunes e Djefferson Amadeus (*)

 

O debate sobre a efetividade da prestação jurisdicional já faz parte do cotidiano dos profissionais do direito há muito tempo no Brasil, posto que a morosidade, a multiplicidade de demandas e a burocracia ainda são grandes entraves para a concretização do referido desiderato.

O Poder Constituinte Derivado, atendendo aos anseios da sociedade por uma maior efetividade da prestação jurisdicional introduziu, por meio da Emenda Constitucional 45/2004, conhecida como Reforma do Judiciário, diversas alterações que tinham como objetivo dinamizar a prestação jurisdicional. Destaca-se, para efeitos de análise do presente artigo, a duração razoável do processo, inserida no inciso LXXVIII, do artigo 5º da Constituição Federal, que assim dispõe: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”

Acresce-se ainda a súmula vinculante, incluída no artigo 103-A da Constituição, que conferiu ao Supremo Tribunal Federal, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, a possibilidade de editar verbetes com efeito vinculante sobre determinada matéria, com o intuito de uniformizar a jurisprudência consolidada da corte.

Para contextualizar, é importante a referência à exposição de motivos 204, de 15 de dezembro de 2004[1], assinada pelos chefes dos três Poderes da República logo após a promulgação da Emenda Constitucional 45/2004, por meio da qual foi proposta a formalização do Pacto de Estado em favor de um Judiciário mais efetivo e Republicano, eis trecho inicial do documento:

Poucos problemas nacionais possuem tanto consenso no tocante aos diagnósticos quanto à questão judiciária. A morosidade dos processos judiciais e a baixa eficácia de suas decisões retardam o desenvolvimento nacional, desestimulam investimentos, propiciam a inadimplência, geram impunidade e solapam a crença dos cidadãos no regime democrático.

Em face do gigantesco esforço expendido, sobretudo nos últimos dez anos, produziram-se dezenas de documentos sobre a crise do Judiciário brasileiro, acompanhados de notáveis propostas visando ao seu aprimoramento.

A aprovação da mencionada Emenda Constitucional, é bem verdade, foi resultado de uma constatação, qual seja: a de um verdadeiro colapso no sistema judiciário brasileiro e da necessidade de que fossem empreendidas medidas conjuntas com o fim de conferir agilidade e maior efetividade ao sistema.

Sob o manto desse ideal, o Processo Civil brasileiro sofreu diversas alterações que objetivaram dotar os jurisdicionados de mecanismos mais efetivos e céleres para a concretização do direito. Desde o início da década de 90, essas alterações legislativas tomaram conta do Código de Processo Civil, transformando-o, inevitavelmente, em uma verdadeira “colcha de retalhos”.

E o resultado não poderia ser outro senão reformas “gatopardistas”, para utilizar uma metáfora de Jacinto Coutinho, na medida em que se mudava tudo para manter tudo como está. Portanto, a simples reestruturação administrativa do Poder Judiciário jamais seria capaz de atender os anseios de dinamização da prestação jurisdicional, pois, sendo o problema da ordem do sistema, era necessária uma reforma no todo, e não meramente parcial, como vinha acontecendo.

Em razão disso, foi proposta uma nova codificação processual que, além de buscar a reordenação do sistema processual, teve como norte conferir agilidade e maior efetividade à prestação jurisdicional, sem descurar da segurança jurídica, conforme se pode extrair das palavras do ministro Luiz Fux[2], presidente da comissão de juristas encarregada da elaboração do anteprojeto do novo Código de Processo Civil: O Brasil clama por um processo mais ágil, capaz de dotar o país de um instrumento que possa enfrentar de forma célere, sensível e efetiva, as misérias e as aberrações que passam pela Ponte da Justiça.

Nesse sentido, o novo CPC, ao estabelecer expressamente, no artigo 926, que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente” elevou a segurança jurídica, proibição de surpresa e proteção da confiança ao patamar de princípios reitores da sistemática processual.

Isto, a toda evidência, implica dizer que, se os tribunais devem manter a jurisprudência estável, íntegra e coerente, logicamente os juízes de primeiro grau devem julgar segundo os critérios estabelecidos pelos tribunais.

Desta sistemática decorre, dentre outras coisas, que uma decisão emanada por um tribunal só pode ser desconsiderada por um juiz de primeiro grau se este, por intermédio de fundamentação adequada e específica, considerando a segurança jurídica, da proteção da confiança e proibição de surpresa, promover a distinguishing, isto é:

“técnica de distinção aplicada quando houver distinção entre o caso concreto (em julgamento) e o paradigma”[3], seja porque “não há coincidência entre os fatos fundamentais discutidos e aqueles que serviram de base à ratio decidendi (tese jurídica) constante do precedente, seja porque, a despeito de exigir aproximação entre eles, alguma peculiaridade no caso em julgamento afasta a aplicação do precedente.[4]”

Por isso, o novo CPC, seguindo essa lógica, dispôs no § 4°, do artigo 927, que:

“§ 4° A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.”

Trata-se, assim, segundo Lenio Streck, de um dever dos juízes — e não uma opção de escolha, de sorte que, por disposição expressa dos artigos 926 combinado com 927, § 4°, como vimos, os tribunais não aconselham meramente os juízes e outras autoridades sobre as decisões que devem (ought to) tomar; mas determinam/impõem que eles têm um dever (have a duty to) de reconhecer e fazer vigorar a uniformização da jurisprudência mantendo-a estável, íntegra e coerente.[5]

Dito isso, cumpre-nos destacar que essas preocupações já foram enfrentadas pelo Código Eleitoral Brasileiro muito antes do novo Código de Processo Civil. Veja o que o artigo 263 do Código Eleitoral, Lei 4.737/1965, dispõe:

Art. 263. No julgamento de um mesmo pleito eleitoral, as decisões anteriores sobre questões de direito constituem prejulgados para os demais casos, salvo se contra a tese votarem dois terços dos membros do tribunal.

A busca pela celeridade, sem deixar de lado a segurança jurídica, apesar de antiga, já foi objeto de enfrentamento pela Justiça Eleitoral. Ocorre que, não obstante uma proposição de vanguarda do Código Eleitoral, muito à frente de seu tempo, conforme se comprova com o advento das recentes alterações constitucionais e legais, a jurisprudência de sua mais alta corte (TSE) já estaria ultrapassada, data máxima vênia. Isso porque, diversos foram os precedentes entendendo que o referido dispositivo não teria sido recepcionado pelas constituições posteriores, reproduzido em resumo:

“(..) prejulgado – artigo 263 do Código Eleitoral. O instituto do prejulgado mostra-se incompatível com a Constituição Federal, no que acaba por estabelecer o efeito vinculante. Insubsistência do artigo 263 do Código Eleitoral.”

(Recurso Especial Eleitoral 9.936, Acórdão 12.501 de 14/9/1992; Embargos de Declaração em Recurso Especial Eleitoral 12.682, Acórdão 12.682 de 21/3/1996).

Contudo, partindo da premissa de que a Constituição, face ao que preceitua o princípio da supremacia da Constituição, é a pedra angular em que assenta o edifício do moderno direito político[6], as normas infraconstitucionais devem tê-la como fundamento de validade. Tendo sido o Código Eleitoral, Lei 4.737/1965, editado anteriormente à promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/88), aquele se submeteu a este novo fundamento de validade constitucional. E sob esse novo fundamento de validade ainda não foi analisado.

Ante o exposto, considerando o fenômeno da recepção e a necessidade de continuidade das relações jurídicas, as normas insertas no Código Eleitoral foram recepcionadas ou não, a depender da compatibilidade que apresentaram em relação à nova ordem constitucional. Portanto, face à nova sistemática Constitucional o artigo 263 do Código Eleitoral foi recepcionado, posto que compatível com o conteúdo da Constituição de 1988, razão pela qual o Tribunal Superior Eleitoral deveria alterar seu entendimento.

Muito se tem afirmado, com razão, sobre benefícios que o novo CPC proporcionará aos jurisdicionados. Mas pouco se discutiu — ou propositadamente se esqueceu? — que algumas soluções trazidas no novo CPC, de há muito, já vinham dispostas no Código Eleitoral.

 

 

 

 

Autores: Allan Titonelli Nunes é procurador da Fazenda Nacional, especialista em Administração Pública pela FGV e em Direito Tributário pela Unisul, ex-presidente do Forvm Nacional da Advocacia Pública Federal e do Sinprofaz. Membro fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP).

Djefferson Amadeus é mestre em Direito e Hermenêutica Filosófica (UNESA-RJ), bolsista Capes, pós-graduado em filosofia (PUC-RJ), Ciências Criminais (Uerj) e Processo Penal (ABDCONST). Advogado eleitoralista e criminalista.


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