por Adriana Astuto
Esgotadas as hipóteses recursais, o conteúdo do ato judicial se tornaria inviolável, tal qual se depreende do artigo 6º, parágrafo 3º, da Lei de Introdução ao Código Civil. A decisão, nessas condições, se tornaria lei entre as partes, fazendo coisa julgada formal e material.
Por esse aspecto, a coisa julgada, também tratada no artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição, sempre foi considerada pelos operadores do Direito, ao menos no âmbito do direito processual, como um dogma, um imperativo de ordem. Somente em situações excepcionais e expressamente taxadas na lei, numerus clausus, a exemplo da ação rescisória (artigo 485 do CPC); do artigo 741, parágrafo único, do CPC, do artigo 622 do CPP, dentre algumas outras hipóteses, seria admissível rever uma decisão judicial transitada em julgado. Invoca-se, em linhas gerais, em prol da intangibilidade absoluta do instituto da coisa julgada, o princípio da segurança jurídica, cuja importância aqui não se questiona por óbvias razões.
O que, no entanto, propõe-se aqui refletir é até que ponto, ou em qual medida, a coisa julgada pode e deve ser considerada intangível para todos os fins e efeitos, enfrentando-se, em breves linhas, o tema da relativização da coisa julgada.
As ações investigatórias de paternidade são terrenos férteis para refletir-se sobre o tema. Os avanços da biomedicina, notadamente os exames de DNA, tornaram possível apurar com alto grau de precisão a paternidade. Imagine-se então a situação de um investigante que obteve uma sentença declaratória da paternidade atribuída a um suposto pai, com base em prova exclusivamente testemunhal, e, anos depois, se atesta, por intermédio do exame de DNA, ser outro o pai biológico. Tal sentença teria o condão de sublimar ou sobrepor-se às conclusões científicas e aos laços sanguíneos verdadeiros por elas descobertos, e até mesmo privar o cidadão do exercício dos direitos patrimoniais correlatos à sucessão hereditária?
Da mesma forma vale questionar sobre a situação da Fazenda Pública, aqui hipoteticamente condenada em valores incompatíveis com a realidade, com a ética e com a moral até que, em fase posterior ao trânsito em julgado do decisum, se descobre má-fé ou fraude, ou mesmo erro material na elaboração do laudo pericial. É justo que toda a sociedade seja sacrificada pelo desvio de conduta de seus agentes somente porque esgotado o prazo decadencial da ação rescisória?
Antes de tudo, a questão de relativização da coisa julgada implica em delimitar o verdadeiro e correto alcance do inciso XXXVI, do artigo 5º, da Constituição, perquirindo se tal dispositivo está rigorosamente concebendo a idéia de imutabilidade das decisões transitadas em julgadas.
Ao garantir que “a lei não prejudicará a coisa julgada”, parece-nos que a Constituição direciona-se tão apenas ao legislador ordinário, ou infraconstitucional, no sentido de que não poderão ser editadas leis que atinjam, preteritamente, as decisões do Poder Judiciário que foram exaradas sob a égide da lei vigorante à época em que proferidas. A coisa julgada parece-nos, desse modo, intangível à lei nova, e tão apenas ela não poderá violar ou prejudicar o caso julgado, nada mais além disso.
Após compreender com clareza o exato significado da norma constitucional atinente à coisa julgada, constata-se, inevitavelmente, que coisa julgada absolutamente não é sinônimo de imutabilidade de decisões judiciais. Em verdade, a coisa julgada somente se revela imutável nos limites da sua constitucionalidade. Se transgredir valores, princípios, garantias e normas estabelecidas na lex máxima há de ser inexoravelmente taxada de inconstitucional a coisa julgada, e por conseguinte inidônea e inapta à produção de efeitos jurídicos, exatamente como ocorre com qualquer outro ato que integra o ordenamento jurídico.
Tergiversar a respeito implicaria inclusive em odiosa e inaceitável violação ao princípio fundamental constante do artigo 2º da Carta Magna, na medida em que os atos emanados do Poder Judiciário, e somente eles, ficariam imunes ao exame da constitucionalidade, enquanto os atos executivos e legislativos podem, a qualquer tempo, ser objeto de controle de constitucionalidade. A todas as luzes, inexiste nesse aspecto, na Constituição, prerrogativa alguma outorgada à decisão judicial que se choque com o sistema constitucional.
Daí poder afirmar-se não ser a coisa julgada um princípio absoluto. Longe disso, e como tudo em Direito, pode e deve ser relativizado em certas situações por outros princípios constitucionais, sobretudo os princípios da moralidade, da legalidade, da proporcionalidade e da razoabilidade, devendo ser afastada a concepção de que a revisão do julgado implantaria a instabilidade do sistema. Além da ação rescisória e das hipóteses do artigo 741 do CPC já citadas, o sistema jurídico há muito contempla e convive pacificamente com a possibilidade da mitigação da coisa julgada, a exemplo do artigo 18 da Lei 4.717/65, que regula a ação popular; do artigo 16 da Lei 7.347/85, que disciplina a ação civil pública; e do artigo 103 do da Lei 8.078/90 (CDC).
Hipóteses excepcionais já vêm inspirando os Tribunais pátrios a admitir a mitigação da coisa julgada. Notadamente, o Superior Tribunal de Justiça, através de sua 1ª Turma, ao julgar o Recurso Especial 499.217, confirmou decisão que, de ofício, e a despeito da existência de título judicial transitado em julgado acolhendo prova pericial e fixando valores indenizatórios, determinou na fase executória de uma ação de desapropriação a realização de nova perícia. Temperou-se, nesse caso, a propósito de fundados indícios de superavaliação dolosa do bem, a coisa julgada, para se resguardar o princípio constitucional da moralidade e da justa indenização.
Na seara do direito tributário, há jurisprudência no sentido de que a coisa julgada, em mandado de segurança, não justifica a cobrança de obrigação tributária inconstitucional, concluindo que as mudanças em circunstâncias fáticas ou jurídicas autorizam novo pedido de segurança, sem oponibilidade da coisa julgada. (Resp 381.911/PR e Edcl no Resp 381.911/PR).
Há que se repensar, em conclusão, o conceito da coisa julgada de modo a compatibilizá-lo com os princípios constitucionais fundamentais. Pois é certo que se o preto que era branco foi obtido contra a ordem constitucional, de certo ele não deixará de ser branco só porque a decisão que assim o afirmou não comporta mais recurso.
Revista Consultor Jurídico