Colaboração premiada deve ter participação da Polícia Judiciária

Autores:  Francisco Sannini Neto e Henrique Hoffmann (*)

 

Com o advento da Lei 12.850/13, instaurou-se no meio jurídico um embate acerca da legitimidade do delegado de polícia para celebrar, diretamente, o acordo de colaboração premiada com investigados. Tal prerrogativa está estampada de maneira inequívoca no artigo 4º, §§2º e 6º, da Lei de Organização Criminosa.

Não obstante, parte minoritária da doutrina, composta principalmente por membros do Ministério Público, alega que os dispositivos em questão seriam inconstitucionais por ferirem o sistema acusatório. Argumentam, em síntese, que nenhuma providência probatória poderia ser efetivada sem a provocação das partes, em especial quando o titular da ação penal ainda não tiver manifestado a sua opinio delicti.

Ocorre que o delegado de polícia, como presidente do inquérito policial, é a autoridade mais indicada para saber quais as necessidades da investigação em desenvolvimento, sendo que a colaboração premiada é mais um dentre vários meios de obtenção de prova a ser utilizado pelo delegado de polícia, ou seja, um dos possíveis caminhos a serem trilhados na busca pela verdade possível. Desse modo, se a adoção de tal medida ficasse condicionada ao parecer do Ministério Público, isso significaria que a própria investigação ficaria vinculada a este órgão e sob o seu controle, sepultando a um só tempo o artigo 144 da CF e a Lei 12.830/13.

Nesse ponto são precisas as palavras de Eduardo Cabette e Marcius Nahur:

(…) sob o ponto de vista pragmático, agiu muito bem o legislador, pois que normalmente é o Delegado de Polícia aquele que se acha mais próximo e ciente das necessidades de informações para a investigação criminal que conduz. O empoderamento do Delegado de Polícia na colaboração premiada desburocratiza o instituto e o torna mais ágil e eficaz, sem qualquer perda para o Estado de Direito Democrático, pois que, seja para a colaboração acertada com o Promotor, seja com o Delegado, a lei estabelece uma série de garantias ao investigado ou réu.

Fica evidente que a intenção do legislador foi conferir à autoridade de Polícia Judiciária mais uma ferramenta de combate ao crime organizado, exatamente por ser esta a autoridade com contato direto e imediato com a investigação e, portanto, com mais condições de compreender a relevância e necessidade da colaboração.

Em que pese a doutrina majoritária se inclinar pela legitimidade do delegado de polícia fazer a colaboração premiada, parte dos estudiosos faz a ressalva de que seria necessária a concordância do Ministério Público:

(…) a Lei 12.850/13 possibilitou ao delegado de Polícia propor ao investigado o benefício da colaboração premiada. Aplaudimos essa prerrogativa ao chefe de Polícia. O Ministério Público não está em tempo integral nas dependências policiais e, assim, a dinâmica e agilidade da investigação policial exige a concessão dessa prerrogativa ao delegado de Polícia. Contudo, entendemos que a elaboração do termo de acordo de colaboração premiada deve ser redigida em conjunto com o representante do Ministério Público, porquanto a autoridade policial fica alheia à condução da ação penal e, assim, não pode elaborar os ajustes no lugar do acusador.

Sem embargo, não se pode olvidar que praticamente todos os prêmios previstos em lei não guardam qualquer relação com a titularidade da ação penal pública, esta, sim, exclusiva do Ministério Público. A título de exemplo, imaginemos um acordo de colaboração premiada celebrado entre o delegado de Polícia e o investigado, mas sem a concordância do parquet, cujo prêmio seja a redução da pena em até 2/3. De que forma esse acordo ofenderia a titularidade da ação penal? Não conseguimos compreender!

O exercício da ação penal não tem aptidão para assegurar uma condenação, pois que a lei confere ao juiz a prerrogativa de recusar a homologação da proposta de acordo ou adequá-la ao caso concreto sempre que não forem observados os requisitos legais (artigo 4º, §8º, da Lei 12.850/13). Em outras palavras, não cabe ao Ministério Público a definição do prêmio a ser conferido ao colaborador. Se, por exemplo, o juiz entender que determinado prêmio é exagerado em relação à colaboração oferecida, ele pode simplesmente não homologar o acordo, cabendo aos interessados readequar os termos propostos.

Nas lições de Cleber Masson e Vinícius Marçal:

A homologação judicial funciona como verdadeira “condição de validade do acordo de colaboração”. Mas é preciso ficar claro desde logo que nesse momento não há espaço normativo para que o Judiciário realize, por assim dizer, uma sindicalidade quanto ao mérito da avença.

Por obvio, não cabe ao juiz emitir juízo de valor a respeito das informações trazidas pelo colaborador, limitando-se a aferir a regularidade, voluntariedade e legalidade do acordo. Ocorre que o controle da legalidade passa, necessariamente, por um juízo de proporcionalidade entre os meios (prêmios avençados) e os fins (objetivos a serem alcançados), sendo certo que constatada eventual desproporcionalidade no acordo o juiz não poderá homologá-lo, conforme bem pontuado pela Suprema Corte:

Na realidade, o juiz competente não efetua, em instância homologatória, avaliação que o autorize a incursionar no exame aprofundado das cláusulas pactuadas no acordo de colaboração, mesmo porque, nessa fase, cabe-lhe, unicamente, promover o controle das cláusulas abusivas, desproporcionais e ilegais…

Conclui-se, assim, que as partes interessadas, vale dizer, MP, Polícia Judiciária e o investigado, apenas indicam um benefício legal em contrapartida pela colaboração prestada, mas quem decide é o magistrado, que, para tanto, deve se valer de um juízo de proporcionalidade entre os meios e os fins, observando em sua decisão de homologação a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso (artigo 4º, §1º da Lei 12;850/13). Ao homologar o acordo, portanto, o juiz jurisdicionaliza o compromisso firmado pelas partes, conferindo-lhe a eficácia dos que ele próprio teria realizado.

E nem se fale que esse poder ofenderia o princípio da imparcialidade, pois em tais situações o magistrado não age de ofício, sendo, pelo contrário, provocado pelas partes. A Lei 12.850/13, no seu artigo 4º, §6º, estabelece que o juiz não poderá participar das negociações realizadas, ou seja, não poderá tomar parte nas tratativas para a concretização do acordo, ofertando prêmios ou indicando os objetivos a serem alcançados, afinal, estamos diante de uma técnica de investigação. Contudo, em momento algum esse diploma normativo lhe retira a palavra final, como, aliás, não poderia deixar de ser.

O nosso sistema não se compara ao ordenamento jurídico norte americano, por exemplo, onde o MP dispõe de amplo poder negocial. Justamente por isso, não vislumbramos qualquer ilegalidade no acordo de colaboração premiada formalizado diretamente pelo delegado de polícia, ainda que haja a discordância do parquet, uma vez que a razão de existência da sua manifestação é apenas no sentido de contribuir com a melhor decisão do juiz.

Os argumentos utilizados pelos defensores da inconstitucionalidade dos dispositivos que conferem tal prerrogativa ao delegado de polícia poderiam fazer sentido nas situações em que o MP não identificasse a existência de indícios suficientes de autoria para o oferecimento da denúncia. Entretanto, como meio de obtenção de prova que é, a colaboração premiada regularmente celebrada invariavelmente proporcionará a justa causa necessária ao exercício da ação penal. Isto, pois, nesta técnica especial de investigação o colaborador deve admitir a prática de infrações penais, abrindo mão do seu direito ao silêncio em troca dos benefícios legais. Com efeito, parece-nos impossível que o membro do MP desconsidere a confissão formalizada na colaboração e pugne pelo arquivamento do inquérito policial.

Voltando ao nosso exemplo, mesmo não concordando com a colaboração firmada entre o investigado e o delegado de polícia, onde o prêmio foi fixado na redução de até 2/3 da pena, caso haja a homologação judicial, ainda que com parecer contrário do MP — o que, convenhamos, será raríssimo em se considerando as informações obtidas — ao final do processo o colaborador poderá ser contemplado com o benefício avençado, sem que, reiteramos, haja qualquer ofensa ao artigo 129, inciso I, da Constituição da República.

Aliás, como bem observado por Luiz Flávio Gomes e Marcelo Rodrigues:

(…) nada obsta que o acusado ou condenado que venha a colaborar com a justiça, trazendo resultados úteis e previstos em um dos incisos do artigo 4º, da Lei 12.850/13 seja premiado com os benefícios da Lei 12.850/2013, ou, no mínimo, com os benefícios da Lei 9.807/99 (lei de proteção às vítimas e testemunhas), independentemente da existência de acordo com o Ministério Público. O intuito do acordo celebrado por escrito é de apenas proteger o colaborador de arbitrariedades, sendo que se alguém colaborou independentemente de acordo escrito e em virtude de tais informações alcançaram-se as metas do artigo 4º, deverá incidir obrigatoriamente um dos prêmios legais, que deverão ser estabelecidos pelo juiz levando em consideração “a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração (§1º do artigo 4º da Lei 12.850/2013).

Ora, se o juiz pode conceder os benefícios legais mesmo nos casos em que não há qualquer acordo previamente homologado, por que não poderia fazê-lo diante de uma convenção feita diretamente pelo delegado de polícia, com a participação do advogado do colaborador e com a segurança jurídica assegurada pela lei?!

É mister reiterar que a Constituição da República conferiu ao MP a titularidade da ação penal, mas não do direito de punir. Não são outras as lições da doutrina:

A colaboração premiada levada a efeito pelo delegado de Polícia não versa em um só momento sobre a ação penal, mas somente sobre questões referentes à pena e sua execução. O direito de ação segue intacto nas mãos do Ministério Público, conforme determina a ordem constitucional. O mesmo ocorre quando o delegado instaura o inquérito ou indicia alguém ou mesmo quando não indicia. Em qualquer caso, o Ministério Público não está atrelado à convicção jurídica da autoridade policial, pode pedir o arquivamento de um inquérito com indiciamento; pode denunciar alguém que não foi indiciado; pode requisitar a instauração de um inquérito que não foi instaurado pelo delegado. Não há nada a impedir seu livre e legítimo exercício de titular da ação penal.

Advertimos, todavia, que a concordância do Ministério Público no acordo de colaboração premiada é indispensável apenas no caso do artigo 4º, §4º, da Lei 12.850/13, que trata exatamente das hipóteses em que a denúncia pode deixar de ser oferecida diante da relevância da primeira colaboração prestada e desde que o colaborador não seja o líder da organização criminosa investigada.

Conclui-se, destarte, que é perfeitamente possível a homologação de acordo de colaboração premiada efetivado entre o delegado de polícia e o investigado, independentemente da concordância do MP. Não obstante, é nosso dever salientar que este não é o cenário ideal, especialmente para o colaborador, que ficará mais vulnerável diante da discordância do membro do parquet. Em tais situações é possível que o promotor do caso recorra da decisão judicial, colocando em risco os benefícios inicialmente avençados.

Sob outro enfoque, é preciso sublinhar um viés da colaboração premiada muitas vezes esquecido, qual seja, o de recurso inerente à ampla defesa (artigo 5º, LV da CF). Não é exagero afirmar que constitui direito subjetivo do investigado ou do réu a iniciativa de propor não só ao promotor de justiça, mas também ao delegado de polícia, o acordo de colaboração premiada, a fim de reduzir ou afastar a pena diante da real possibilidade de ser aplicada uma severa sanção penal ao final do processo, o que reforça a natureza dúplice desse instituto.

Nesse ponto é interessante destacar a veiculação de notícias por meio da imprensa dando conta de que investigados na famigerada operação “lava jato” preferiram negociar o acordo de colaboração premiada com a Polícia Federal, ao invés do MP, o que ilustra bem a importância de se conferir ao delegado de polícia a legitimidade para formalizar o acordo de colaboração premiada.

O que fez a Lei 12.850/13 não foi nada mais do que dotar o ordenamento jurídico de instrumento efetivo no combate à criminalidade, garantindo o direito à segurança, incumbência do Estado, bem como permitindo a efetividade das investigações criminais. E essa busca do incremento da eficiência na repressão e combate ao crime se deu em obediência às balizas do Estado Democrático de Direito, não ignorando o papel central que exerce o delegado de polícia na etapa inicial da persecução penal.

 

 

 

 

 

Autores:  Francisco Sannini Neto é delegado de polícia do Estado de São Paulo, mestre em Direito pela Unisal, professor da graduação e da pós-graduação na Unisal e professor concursado da Academia de Polícia Civil de São Paulo.

 Henrique Hoffma é delegado de polícia do Estado de São Paulo, mestre em Direito pela Unisal, professor da graduação e da pós-graduação na Unisal e professor concursado da Academia de Polícia Civil de São Paulo.

 


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