Combater a corrupção foratelece valores republicanos

Por Elpídio Donizetti

O respeitável jornal The Economist, em matéria publicada em 18 de agosto de 2011, intitulada, “Dilma tenta secar o pântano”, relata que apenas oito meses após tomar posse como presidente do Brasil, Dilma Rousseff se vê sugada pelo pântano político que é Brasília. No mesmo artigo, alerta-se que a posição linha dura da presidente pode colocar em risco a sua governabilidade, por perda de sustentação no Congresso.

Essa constatação, conquanto fidedigna ao modus operandi dos políticos nacionais, a primeira vista sugere uma idéia de contradição: como o combate à corrupção poderia conduzir a perda da capacidade política do governante? A luta contra a corrupção não geraria, pelo contrário, uma maior coalizão em torno dos interesses nacionais?

Ao que tudo indica, a conduta dos partidos cujos representantes foram afastados dos cargos do alto escalão constitui, meramente, reação à tentativa de moralização da política brasileira, porque a eles, numa visão distorcida da democracia e dos ideais republicanos, interessa a manutenção do status vigente. No entanto, o combate à corrupção, mesmo que momentaneamente gere dissabores políticos, tende a fortalecer o próprio sistema e, em última instância, constitui medida de proteção da pessoa humana.

É que a democracia, instrumento de realização de valores fundamentais à convivência social, encontra na corrupção óbices à sua consagração efetiva. A corrupção tende a criar um distanciamento entre os representantes e representados, gerando uma situação de desconfiança, ausência de legitimidade e enfraquecimento do próprio ideário impulsionador do sistema democrático. Alfredo Héctor Wilensky, ao discorrer sobre os efeitos negativos da impunidade, alerta que “a impunidade imiscui-se como um quisto inextirpável, porquanto na consciência coletiva das comunidades existe a percepção social de que, se os mais poderosos não são reprimidos por grandes causas e razões, então menos o serão por razões e causas menores, que serão, eventualmente, a base da rotina do acto corrupto”. Essa situação conduz, inelutavelmente, a que se forme uma sociedade que vai se enfermando, perdendo consciência ética no que respeita aos valores inerentes ao Estado Democrático.

A corrupção, no seu aspecto social e político, conduz, como conseqüência das mais perversas, ao afrouxamento dos laços de solidariedade e respeito mútuo entre os cidadãos e entre este e seus representantes, porque qualquer um pode se converter, aos olhos dos eleitores, em um corrupto em potencial, o que instaura um clima de passividade frente a coisa pública e face as decisões políticas fundamentais. Se acredita-se que a alternância das pessoas a frente dos cargos públicos é incapaz de alterar a situação de corrupção em que mergulhados os governos, isso cria uma espécie de abstenção crônica dos cidadãos no que tange à participação política, diminuindo, em um círculo vicioso, o próprio poder transformador da democracia.

Se, “nas democracias de partido e sufrágio universal, as eleições tendem a ultrapassar a pura função designatória, para se transformarem num instrumento pelo qual o povo adere a uma política governamental e confere seu consentimento, e por conseqüência, legitimidade, às autoridades governamentais” (José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional), o desinteresse político — conseqüência da corrupção — mitiga e reduz o grau de participação popular na formação da votante do governo e no processo político, criando uma situação de alijamento, de declinação e de ausência de participação, o que, por conseqüência, reduz a legitimidade do próprio regime.

A participação popular, pois, constitui um dos fatores de legitimação do sistema, cuja ausência conduz à perda dessa necessária legitimação e, como previamente se infere, em virtude da circularidade do modelo, à redução da própria participação popular. Visualizando-se a corrupção como um anteparo à alimentação do sistema, como um obstáculo ao seu desenvolvimento, chega-se a conclusão de que o seu não combate, de modo efetivo e contínuo, conduz, por inanição, à diminuição do aspecto de abrangência da democracia, que se transforma em um simulacro, uma mera sombra do que deveria ser.

Em uma democracia fragilizada e enfraquecida, não é possível alcançar a finalidade do Estado Democrático de Direito, que objetiva, mobilizando todas as forças necessárias, garantir e concretizar os valores liberdade, justiça e solidariedade. Considerando-se que o Estado Democrático de Direito é “um estado ativo e envolve um modelo político dinâmico, teleologicamente orientado para a persecução de tais valores [liberdade, justiça e solidariedade]” (Paulo Otero em Direito Constitucional Português), a corrupção transforma-se em um fator de interferência nessa dinamicidade, reduzindo a sua mobilidade e debilitando o próprio sistema.

Cumpre observar, ainda, que a corrupção — acaso não adequadamente combatida — acaba por subverter a base do sistema republicano. É que a república constitui o regime político em que os exercentes de funções políticas, sejam executivas ou legislativas, representam o povo e decidem em seu nome, o que se realiza de forma responsável, eletivamente e mediante mandatos renovados com periodicidade. No núcleo do regime republicano encontra-se a idéia de responsabilidade. Pode-se mesmo dizer que é da essência do regime republicano a noção segundo a qual aquele que exerce uma parcela do poder público deve ter a responsabilidade desse exercício, porque ninguém desempenha funções políticas por direito próprio. Não pode haver inviolabilidade e irresponsabilidade entre os que exercem funções e poderes delegados pela soberania popular.

Partindo-se dessa premissa — que à noção de republica está ínsita a idéia de responsabilidade — é de fácil conclusão que valores republicanos e corrupção são termos antitéticos, polarizados, que não ocupam o mesmo espaço. Além disso, a idéia de representação popular, também presente na definição de república, destoa de situações de apoderamento de posições públicas em benefício privado, porque representar significa participar do processo político em nome de outrem, e não a favor de interesses exclusiva ou parcialmente privados.

A ausência de meios efetivos de prevenção e combate à corrupção, em suma, por abrir espaço à impunidade — que é o reverso da noção de responsabilidade — e por transformar o representante popular em simulacro ou espectro de mandatário, cujos objetivos voltam-se apenas à realização de seus interesses privados, afasta o sistema político do ideal republicano, desviando-o da compreensão de que a coisa (res) ­pertence ao povo (publica), não podendo ser utilizada senão para concretizar o interesse da coletividade.

Por outro lado, é igualmente importante realçar a correlação existente, como situações de contraposição, entre corrupção e dignidade da pessoa humana, no contexto de um Estado de direitos humanos. É que a persistência do fenômeno da corrupção conduz ao deslocamento dos recursos financeiros destinados à implementação das prestações de bens e serviços integrantes da cláusula constitucional do bem-estar, eis que os direitos sociais demandam o aporte de vultuosas quantias para a concretização das prestações presentes em seu conteúdo, além de necessitarem de toda uma estrutura organizatório-funcional subjacente. Assim, se o Estado de Direitos humanos tem de suportar custos financeiros elevados decorrentes de sua responsabilidade pelos direitos fundamentais, a corrupção, tendo em conta a sua danosidade ao erário, influi nesse cálculo, impedindo a perfeita alocação dos recursos disponíveis para o adimplemento das prestações sob a responsabilidade do Estado.

Ainda na esteira desse raciocínio — que contrapõe corrupção e dignidade da pessoa humana —, é importante recordar a própria noção de Estado de direitos humanos que consiste no “modelo de sociedade política fundado no respeito pela dignidade da pessoa humana, na garantia e defesa da cultura da vida e na vinculação internacional à tutela dos direitos fundamentais, possuindo normas constitucionais dotadas de eficácia reforçada, um poder político democrático e uma ordem jurídica axiologicamente justa” (Paulo Otero. Op. Cit).

Esse modelo de Estado tem, na sua intimidade, como postulado básico, a afirmação de que o exercício do poder não é prerrogativa ou direito dos governantes sobre os governados, o que afasta, de modo claro, qualquer tentativa de privatização da coisa pública ou de sua utilização para finalidades que não estejam atreladas à realização do bem comum, porque o exercício do poder tem de traduzir um serviço dos governantes em favor dos governados. Ou seja, os governantes têm de reconhecer que fazem parte de uma relação de administração, em que os atos públicos se opõem aos atos de propriedade e o poder somente pode ser exercido se orientado para concretizar a finalidade de interesse público.

Se se vislumbra, além disso, que o poder tem de proteger os mais fracos, débeis e necessitados, não sendo legítima a sua utilização como garantia da prepotência e do arbítrio dos mais fortes, compreende-se que a justa operabilidade desse poder está, inafastavelmente, na blindagem de sua utilização, impedindo seja ele manejado de modo antiisonômico por determinados grupos ou pessoa.

As manipulações decorrentes do fenômeno da corrupção desprezam, em quase todos os casos, aqueles que sofrerão os seus negativos efeitos — os cidadãos mais pobres e enfraquecidos —, o que inverte a ótica segundo a qual o poder deveria garantir a prevalência do ser sobre o ter. O negligenciamento para com a pessoa humana, mera “massa de manobra”, consiste atitude não admissível no Estado de direitos humanos, o que impõe, de modo sério, o combate à corrupção.

O Estado de direitos humanos reclama, assim, um governo probo, reto, em que todos os atos sejam tomados na mais perfeita lisura, porque, se todas as coisas somente existem em função e por causa das pessoas, esse balizamento é essencial para a movimentação do aparato estatal e de seus agentes, devendo considerar-se arbitrário qualquer desvio dessa rota.

Assim, por tudo o quanto se disse, visualiza-se, inexoravelmente, que o combate aos atos de corrupção — sob todas as formas — constitui premissa fundamental para a materialização dos ideais de democracia, dos valores republicanos e do próprio Estado de direitos humanos. Não se quer, afinal, que as promessas do legislador constituinte, que entronizou no texto constitucional valores como moralidade e probidade, se transformem, em razão da prejudicialidade dos atos de corrupção, em quimeras, meros embustes ou promessas inúteis.

Elpídio Donizetti é desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, professor de Direito Processual Civil do IUNIB, doutorando em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Clássica de Lisboa e membro da Comissão designada pelo Senado Federal para elaboração do Novo CPC.

Revista Consultor Jurídico, 24 de agosto de 2011

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.


Você está prestes a ser direcionado à página
Deseja realmente prosseguir?
Atendimento