Autores: Luciano Felício Fuck, José Roberto Afonso e Daniel Corrêa Szelbracikowski (*)
O pior para uma empresa beneficiada por incentivos questionáveis do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) não é perder seu incentivo angariado de forma irregular, em parte e nem mesmo no todo, mas saber se o mesmo acontecerá com seu concorrente. Guerra do ICMS não é só um problema tributário, acima de tudo é uma questão de concorrência exacerbada.
Foi muito fácil embarcar nessa guerra de incentivos: em essência, bastava descobrir e comparar incentivos oferecidos por outros estados. Será muito complicado desembarcar da guerra fiscal porque não se deveria dela sair ou reduzir isoladamente, sob risco de abrir o diferencial para os incentivos concedidos pelos estados ou recebidos elas empresas concorrentes.
Se, para entrar na guerra, bastava procurar os diferentes estados e, no limite, sempre se esperava conseguir algum benefício equivalente ou próximo daquele que um contribuinte recém-instalado já conseguira. Já para sair da guerra, há uma incerteza monumental, menos pelos aspectos legais em si (afinal, todos envolvidos há muito sabem de sua fragilidade legal e do posicionamento recorrente do Supremo Tribunal Federal nesta matéria), mas pelas condições econômicas e de competitividade (afinal, não se sabe se o concorrente terá o benefício reduzido na mesma proporção ou até mesmo se ele também perderá um incentivo que lhe ameaçam tirar abruptamente).
O objetivo deste artigo é defender que, diante dos desafios e complexidades que a guerra fiscal de ICMS originou, é premente buscar uma saída nacional, coordenada e simultânea para todos os contribuintes e fiscos estaduais, evitando-se as consequências indesejáveis de atos unilaterais dos atores institucionais.
De tempos em tempos, a agenda de julgamentos do Plenário do STF contempla a inclusão de ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) relacionadas aos incentivos fiscais de ICMS concedidos unilateralmente pelos Estados, isto é, sem sua submissão ao Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), conforme determinam os artigos 155, § 2°, XII, “g”, da Constituição e 2º, § 2º, da Lei Complementar 24 de 1975. Nesse sentido, as ADIs 2.663 e 3.796 foram apreciadas pelo STF em 8/3/2017 e a ADI 5.244 está prevista para ser julgada pelo STF na sessão desta quinta-feira (23/3).
A inclusão desses processos em pauta chama a atenção, principalmente, porque a pacificação da questão relacionada aos incentivos fiscais de ICMS está em debate no Congresso Nacional (PLP 54/2015 e PLS 407/2015) e, sob certo aspecto, no próprio STF, em razão da pendência de apreciação da Proposta de Súmula Vinculante (PSV), segundo a qual “qualquer isenção, incentivo, redução de alíquota ou de base de cálculo, crédito presumido, dispensa de pagamento ou outro benefício fiscal relativo ao ICMS, concedido sem prévia aprovação em convênio celebrado no âmbito do Confaz, é inconstitucional” (PSV 69).
A questão é complexa e necessita de uma solução discutida que permita acabar com a guerra fiscal, preservar a segurança jurídica daqueles contribuintes que acreditaram na palavra do Estado e não causar novos desvios concorrenciais entre as empresas.
Diante da necessidade de se garantir a segurança jurídica e em função dos efeitos econômicos que o fim abrupto das desonerações causa, há, com o escólio de respeitável doutrina, vários pedidos de modulação dos efeitos da aludida proposta de súmula, realizados por diversas entidades representativas da sociedade civil.
É preciso observar que o Brasil possui um sistema tributário caracterizado por regressividade, má-distribuição da carga, baixo retorno social, baixo estímulo a investimentos, entre outros vícios que tornam a tributação injusta, segundo os “Indicadores de Equidade do Sistema Tributário Nacional”. Agravante deste contexto é exatamente a Guerra Fiscal existente entre os estados relativamente ao ICMS.
Apesar das disposições legais e constitucionais, os estados têm ignorado a necessidade de submissão de seus incentivos de ICMS ao Confaz, concedendo-os unilateralmente com vistas à atração de empreendimentos para seus territórios, geralmente sob a justificativa de reduzir as desigualdades regionais.
Não se desconhece que o Supremo Tribunal Federal possui mais de quarenta julgados em sede de controle abstrato de constitucionalidade declarando a inconstitucionalidade de benefícios ou incentivos fiscais de ICMS, seja qual for a sua espécie, na hipótese de ausência de celebração de Convênio-Confaz.
Sob os auspícios da Constituição Federal de 1988, essa postura do STF teve início em 27 de setembro de 1989, quando o Plenário deferiu medida liminar na ADI- MC 84/MG (Rel. Min. Sydney Sanches, Pleno, DJ 6.10.1995)para suspender a eficácia de normas da Constituição de Minas Gerais que estabeleciam a não incidência de ICMS sobre encargos financeiros incorporados ao valor da operação em vendas a prazo, saídas de leite “in natura” para consumo em operações internas, assim como isenção para microempresa.
Na ocasião, o Supremo vislumbrou a presença de verossimilhança das alegações do Estado de Minas Gerais para a concessão da liminar, “uma vez que a própria Constituição Federal diz que, com relação às isenções de tributos e aos incentivos de benefício fiscal, tal matéria deva ser regulada mediante deliberação dos Estados-membros e do Distrito Federal, para que não haja, como posto na inicial, um desequilíbrio tributário entre um Estado e outro, fazendo com que até o equilíbrio econômico dos estados federados se desfaça em benefício de um Estado apenas”.Referida liminar, concedida em 1989, veio a ser confirmada no julgamento de mérito da ação direta, em 1996.
Mais de duas décadas depois, em 2015, o Supremo manteve a mesma linha decisória quando do julgamento da ADI 4.481. Nessa assentada, foram declaradas inconstitucionais algumas normas da Lei 14.985/2006, do Estado do Paraná, que, em essência, previam o parcelamento do ICMS em até quatro anos, sem o pagamento de juros ou correção monetária, e a concessão de créditos fictícios de ICMS, de modo a reduzir artificialmente o valor do tributo.
Seguindo a jurisprudência do tribunal, o voto do relator, ministro Roberto Barroso, reafirmou que “a concessão unilateral de benefícios fiscais relativos ao ICMS, sem a prévia celebração de convênio intergovernamental, nos termos da LC 24/1975, afronta o artigo 155, § 2º, XII, “g”, da CF”,considerando que “a razão de ser da referida exigência consiste na preservação do equilíbrio da tributação entre os entes da Federação, dada a relevância do regime do ICMS para a manutenção da harmonia do pacto federativo”.
Apesar da manutenção do entendimento de que são inconstitucionais os incentivos fiscais concedidos sem amparo em Convênio do Confaz, em 2014 o Supremo inovou ao modular os efeitos de seu julgado para frente (ex nunc), isto é, para que a inconstitucionalidade não atingisse os fatos concretos realizados à luz da legislação então declarada inconstitucional.
Com efeito, até o final de 2014, a jurisprudência do tribunal era firme no sentido de não admitir “a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade em casos de leis estaduais que instituem benefícios sem o prévio convênio exigido pelo artigo 155, parágrafo 2º, inciso XII, da Constituição Federal”. Essa vedação à concessão de efeitos prospectivos de suas decisões fundamentava-se no argumento de que “a modulação dos efeitos temporais da declaração de inconstitucionalidade no presente caso consistiria, em essência, incentivo à Guerra Fiscal, mostrando-se, assim, indevida” — ressalvados dois casos em que, por questões de excepcional interesse público, foi concedida uma sobrevida limitada à legislação impugnada.
Na ADI 4.481, o Supremo validou a adoção de efeitos prospectivos, considerando que “a norma em exame vigorou por oito anos, com presunção de constitucionalidade, de modo que a atribuição de efeitos retroativos à declaração de inconstitucionalidade geraria um grande impacto e um impacto injusto para os contribuintes”. Segundo o Relator, referida modulação decorreria de uma ponderação “entre a disposição constitucional tida por violada e os princípios da boa-fé e da segurança jurídica”. A concessão de efeitos prospectivos às decisões relacionadas à guerra fiscal de ICMS foi reiterada pelo STF quando da apreciação das ADIs 2.663 e 3.796 em 8/3/2017.
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Autores: Luciano Felício Fuck é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo, mestre pela Ludwig-Maximilians-Universität de Munique e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.
José Roberto Afonso é economista, contabilista, doutor em economia pela Universidade de Campinas, mestre pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor do curso de mestrado do Instituto Brasiliense de Direito Público e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas. Coordenou a equipe técnica responsável do governo federal que elaborou o projeto de Lei de Responsabilidade Fiscal.
Daniel Corrêa Szelbracikowski é advogado, mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), especialista em Direito Tributário e sócio da Advocacia Dias de Souza.