Compra e venda de imóveis de ascendente para descendente – Breves anotações sobre a atuação notarial

O vigente Código Civil dispõe no art. 496 [01] que é anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem anuído.

Ao definir pela anulabilidade do negócio jurídico em tela o legislador pôs fim a tormentosa discussão, que girava em torno da nulidade ou anulabilidade da venda de ascendente a descendente sem a anuência dos demais.

Álvaro Villaça Azevedo [02] discorre sobre a controvérsia até então existente com precisão, apresentando elementos históricos e doutrinários.

Nestas breves anotações abordarei somente a atuação dos tabeliães e registradores quando se deparam com a venda de ascendente para descendente, destacando a hipótese de falta da anuência exigida pela lei substantiva civil.

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a) Inicialmente, cabe mencionar a forma da anuência e o momento de sua manifestação.

Deve ser expressa, por escrito, e apresenta-se como ideal a anuência simultânea à realização do negócio jurídico, manifestada na própria escritura pública.

Não há divergência quanto à possibilidade da anuência ser anterior, simultânea ou posterior ao negócio [03].

Entretanto, o mesmo não se pode afirmar quanto à forma. Não obstante seja indiscutível a utilização da forma escrita, em se tratando de imóvel há posição pela exigibilidade da escritura pública para a manifestação da anuência que não ocorra simultaneamente à escritura de compra e venda.

Álvaro Villaça Azevedo, na obra citada, e Sílvio de Salvo Venosa [04], entendem que se prescinde de forma solene. Havendo inequívoca manifestação, por escrito, estará dado o consentimento. Caio Mário da Silva Pereira [05], por seu turno, assevera que “deve a anuência ser provada pela mesma forma que o ato (Código Civil, art. 220 [06]), o que significa que, se a venda for de imóvel de valor superior à taxa legal, deve ser dada por escritura pública, e, sempre que possível, constar do mesmo instrumento”. Humberto Theodoro Júnior é de mesmo sentir [07].

Parece que a razão está com os juristas mineiros. O consentimento respeita ao plano de validade do ato, ou seja, para que o ascendente venda validamente para o descendente, deve obter o consentimento nos termos do art. 496 do Código Civil. Aplicável portanto a norma inserta no art. 220 do Código Civil, que dispõe que a “anuência ou autorização de outrem, necessária à VALIDADE de um ato, provar-se-á do mesmo modo que este…”(nossas as versais). O legislador adotou para a anuência o princípio da atração de forma: se necessária para negócio em que é de sua essência a escritura pública, a anuência se dará por escritura pública, preferencialmente no mesmo instrumento.

Assim, ao tabelião cabe, quando estiverem todos os interessados acordes, exigir o comparecimento dos anuentes à escritura de compra e venda para manifestação, ou que a anuência anterior ao ato conste de escritura pública, na qual tenham sido identificadas as partes e o objeto do negócio, tudo consignando na compra e venda.

Os descendentes cuja anuência se exige são os mais próximos em grau, em obediência à regra de que os mais próximos excluem os mais remotos, salvo direito de representação, quando os representantes do pré-morto darão sua anuência (art. 1.833 do C.C.). Havendo descendente incapaz, impõe-se autorização judicial.

Embora discrepe a doutrina sobre a possibilidade do suprimento judicial da anuência, ao tabelião não cabe ingressar em tal seara [08]. Sendo-lhe apresentado suprimento, deve lavrar a escritura com menção ao mesmo.

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b) Contudo, poderá o tabelião ser instado a lavrar escritura de compra e venda de ascendente para descendente sem que haja anuência.

Sendo anuláveis os negócios jurídicos em foco, como devem agir?

O Código do Notariado Português, no art. 174º, 1, impede ao notário recusar sua intervenção sob o fundamento do ato ser anulável ou ineficaz, devendo advertir as partes da existência do vício e consignar no instrumento a advertência. Os negócios anuláveis acessam o registro imobiliário em Portugal, em alguns casos definitivamente, ou em outros como provisórios por natureza, enquanto não for sanada a anulabilidade ou caducar o direito de a argüir (art. 92º, 1, do Código do Registo Predial Português). No direito brasileiro não há disposições legais correspondentes.

A solução quanto à lavratura de atos notariais é interessante e penso que possa ser por nós adotada.

O ato anulável pode ser convalidado, produz efeitos até que decretada sua invalidade, a ação anulatória está sujeita a prazo decadencial, e o ato não será invalidado se o preço pago for real e justo [09].

Assim deve o tabelião praticar o ato, lançando na escritura a existência do vício e a advertência do risco que correm as partes.

Álvaro Villaça Azevedo [10] afirma:

“Se essa venda fosse nula ou inexistente, e de um imóvel, por exemplo, ao constatar essa situação, estaria o Tabelião impedido de lavrar a escritura, objetivando tal alienação, e o Oficial do Registro Imobiliário de proceder ao registro da mesma”.

Em se cuidando de anulabilidade, a solução é diversa, como apontado.

O tabelião José Hildor Leal [11] defende a lavratura da escritura na hipótese analisada e menciona Antônio Albergaria Pereira e Luiz Guilherme Loureiro como partidários da mesma posição.

Não se diga que ao tabelião cabe velar pela validade do negócio jurídico e portanto não deve lavrar a escritura ante à ausência da anuência exigida pelo art. 496 do Código Civil. Com efeito, como profissional do direito, o que deve é orientar as partes, aconselhando-as e alertando-as dos riscos que correm, de tudo fazendo menção no ato. Esclarecidas sobre os planos da existência, validade e eficácia do negócio, e do possível ataque à validade pela falta da anuência, às partes cabe decidir sobre a contratação, em razão do princípio da liberdade contratual. Optando pela contratação, ao tabelião resta formalizar juridicamente a vontade das partes, lavrando a escritura pública (arts. 6° e 7° da Lei 8.935/94).

Lavrada a escritura, o título deve merecer qualificação positiva no registro imobiliário. Terá a escritura à qual não compareceram os anuentes eficácia, ou seja, aptidão para produzir efeitos, consistentes na transmissão da propriedade pelo registro (art. 1.245 do C.C.).

Entretanto, penso que a advertência de se cuidar de negócio anulável deva ser objeto de averbamento, posto que a publicidade decorrente do registro visa a segurança jurídica, carecendo a segurança jurídica dinâmica da notícia referente à anulabilidade do negócio.

A averbação em questão pode ser embasada no art. 167, II, 5, in fine, bem como no caput do art. 246 da Lei 6.015, valendo salientar que não se discrepa quanto a ser o rol de averbações meramente exemplificativo, havendo mesmo uma tendência a concentrar no registro imobiliário todas as informações, circunstâncias e vicissitudes que possam afetar o imóvel.

Feita a averbação, esta se perpetuaria? Certamente que não, mesmo porque interessa ao tráfico imobiliário que não sofram os imóveis restrições de tal natureza.

Considerando que anuência pode ser posterior, como já mencionado (art. 176 do C.C.), o ato será validado se assim ocorrer. Poderá então o registrador imobiliário, à vista da escritura pública (art. 220 do C.C.) de anuência, promover o cancelamento jurídico da averbação anterior, restando validado o negócio. Registre-se que, tratando-se das exceções à exigência da escritura pública para a compra e venda de imóveis, também a anuência poderá se formalizar por instrumento particular, quando então o oficial exigirá o reconhecimento da firma dos anuentes (art. 221, II, da Lei 6.015).

Eventual suprimento judicial posterior também deve ser averbado, com o mesmo efeito de validação do negócio.

Todavia, não se manifestando a anuência, cabe analisar a caducidade do direito de argüir a anulabilidade.

Indiscutível que o prazo para pleitear a anulação com amparo no art. 496 do Código Civil é de dois anos, nos termos do art. 179 do mesmo diploma [12].

Discute-se, todavia, qual seu termo inicial.

Álvaro Villaça Azevedo afirma, na obra citada, que “daí o prazo decadencial da referida ação anulatória dever contar-se da morte do ascendente-vendedor, ante a impossibilidade de que seja, antes desse fato jurídico, proposta”.

José Hildor Leal, diz que o prazo tem início “com o registro na tábula imobiliária”, invocando o escólio de Arnaldo Rizzardo:

“O Código de 2.002 não é propriamente omisso, pois, no seu art. 179, previu a decadência, que se dá em dois anos, para todos os atos ou negócios anuláveis, sem estabelecer prazo para pleitear a anulação (…) Considera-se realizado o ato com o Registro Imobiliário da escritura ou do contrato. Se não efetuada esta providência, inicia o lapso temporal na data do conhecimento da venda pelos demais herdeiros ou pelo cônjuge sobrevivente”.

Considerando que o art. 179 do Código Civil estabelece que o prazo se conta “da data da conclusão do ato”, e que a compra e venda se dá em duas fases, uma obrigacional e outra real, ocorrendo a transmissão da propriedade apenas com o registro constitutivo, penso que se deva entender como data da conclusão do ato a data do registro, contando-se daí o prazo decadencial de dois anos. A venda só se aperfeiçoa com o registro, antes do registro é inoponível a terceiros, presumindo-se pertencer o imóvel ao titular que consta do registro (§1° do art. 1.245 do C.C.).

Diante da regra insculpida no art. 179 do Código Civil, vejo como insustentável defender a possibilidade da ação anulatória apenas após a morte do ascendente-vendedor. Ademais, não interessa à segurança jurídica que um negócio que pode ser convalidado permaneça inválido por um prazo indeterminável.

Dessa forma, decorridos dois anos do registro, terceiro adquirente de boa-fé deverá ter resguardados seus direitos, apurando-se a boa-fé objetiva pelo acesso às informações prestadas pelos distribuidores, enunciando a inexistência de ação anulatória.

Vejo, inclusive, como viável averbar no registro imobiliário a inexistência de ajuizamento de ação anulatória após o prazo de dois anos, mediante apresentação de certidões dos distribuidores do local de residência dos contratantes e da situação do imóvel, com o que se fortalecerá a segurança jurídica.

Questão a observar refere-se à impossibilidade de correr o prazo contra os incapazes de que trata o art. 3° do Código Civil (art. 198, I, e 208 do C.C.). A anuência dos incapazes pode ser obtida mediante autorização judicial, mas quando não se fizer assim, não há como contar o prazo da data da conclusão do ato. Havendo alienação a terceiro de boa-fé, depois de dois anos do registro, sua aquisição deve ser preservada, restando determinar ao descendente-adquirente que restitua ao ascendente importância equivalente ao valor do imóvel. Preservar-se-á, assim, a segurança das relações jurídicas.

Anote-se, por fim, que a venda de ascendente a descendente por interposta pessoa é hipótese de simulação (art. 167, §1°, I, do C.C.), portanto de nulidade, decorrendo da nulidade conseqüências diversas das analisadas neste estudo.

Afirma-se, em conclusão e em síntese, que ao tabelião e ao registrador não é dado recusar a prática de atos relativos à venda direta de ascendente a descendente sem a anuência exigida pelo art. 496 do Código Civil.

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Notas

01 Art. 496 do Código Civil: “É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido”.

02 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Comentários ao Novo Código Civil, vol. VII. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

03 Art. 176 do Código Civil: “Quando a anulabilidade do ato resultar da falta de autorização de terceiro, será validado se este a der posteriormente”.

04 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil, Contratos em Espécie, 5a edição. São Paulo: Atlas, 2005.

05 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, Contratos, 11a edição. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

06 Art. 220 do Código Civil: “A anuência ou a autorização de outrem, necessária à validade de um ato, provar-se-á do mesmo modo que este, e constará, sempre que se possa, do próprio instrumento”.

07 JÚNIOR, Humberto Theodoro. Comentários ao Novo Código Civil, vol. III, tomo II, 2a edição. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

08 O Código Civil português contempla o suprimento no art. 877°, 1: “os pais e avós não podem vender a filhos ou netos, se os outros filhos ou netos não consentirem na venda; o consentimento dos descendentes, quando não possa ser prestado ou seja recusado, é susceptível de suprimento judicial”.

09 Sílvio de Salvo Venosa, na obra citada, discorda, afirmando que “não se admite, na defesa dos réus, a alegação de que a venda tenha sido real com preço efetivamente pago”.

10 AZEVEDO, Álvaro Villaça, obra citada.

11 LEAL, José Hildor. Anulabilidade e validade da alienação sem anuência conjugal e venda de ascendente a descendente- escritura pública e registro – RDI n° 60. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

12 Art. 179 do Código Civil: “Quando a lei dispuser que determinado ato é anulável, sem estabelecer prazo para pleitear-se a anulação, será este de dois anos, a contar da data da conclusão do ato”.

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Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza
registrador e tabelião, titular do 2º Ofício de Teresópolis (RJ)

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