Comunicação docente e o uso dos topoi

Lúcio Ronaldo Pereira Ribeiro
advogado, professor de Direito, pós-graduando pela UGF

Os topoi são lugares comuns que as pessoas utilizam como ponto de partida de uma argumentação .

A tópica surgiu na Grécia antiga através de Aristóteles. Segundo ele pertenceria ao campo da lógica dialética, visto que “o raciocínio é dialético quando parte de opiniões geralmente aceitas” e estas são “aquelas que todo mundo admite, ou a maioria das pessoas, ou os filósofos – em outras palavras: todos, ou a maioria das pessoas, ou os mais notáveis.” (p. 201, Aristóteles, apud ANDRADE) .

Para Cícero, no entanto, a tópica estaria a serviço da ars disputationis, pois que as premissas seriam mais importantes do que se chegar a verdade. Ele a chamou de ars inveniendi. Consistia numa disputa para verificar quem seria o vencedor .Opunha-se à metodologia socrática que buscava a verdade.

Para Aristóteles não é ciência (episteme) mas técnica (techne) “um hábito de produzir por reflexão razoável” (p. 203, ANDRADE)

A tópica seria um estilo, não um método (ANDRADE) e conforme observa WIEWEG aspira a converter-se em método.

O conceito de tópica é difícil.

Para KARL ENGISH é “teoria da arte da descoberta e da utilização de pontos de vista e argumentos no tratamento de problemas que se recusam a uma solução rigorosamente dedutiva.” (apud ANDRADE, p. 204)

Segundo WIEWEG diferencia-se do pensamento sistêmico, pois que este pressupõe a existência de uma solução, enquanto que a tópica desenvolveria um pensamento problêmico que não pressupõe um solução.

REALE, no entanto, sustenta que não tem utilidade prática a distinção entre pensa mento tópico e sistêmico. (apud ANDRADE, ps.201-202)

Tópica vem da palavra topoi que vem de topos que significa lugar comum.

É a forma de argumentação a partir de lugares comuns.

Segundo WARAT seriam equivalentes dos princípios gerais do direito na terminologia tradicional. Ao redor destes é que os institutos de direito vão sendo amoldados. São exemplos de topoi: interesse social, interesse público, boa-fé, bem comum, autonomia da vontade, direitos individuais, Estado de Direito, sistema jurídico, legalidade, legitimidade, fins sociais da lei (ANDRADE, p. 202)

Se considerados isoladamente, constituem a chamada tópica de primeiro grau. Se organizados, formam os chamados catálogos de topoi ou tópica de segundo grau.

O raciocínio tópico parte de premissas verossímeis que cria um efeito de verdade.

Por isto facilita também o consenso.

A função dos topoi no Direito é permitir a superação das antinomias. Diante delas utiliza-se dos topoi para conferir aceitabilidade da escolha. Por isso é que podemos dizer, como o faz WARAT, que “através do tópico-retórico aflora o inequívoco caráter político-ideológico da atividade decisória.” (apud ANDRADE, 1991, p. 203) .

A autoridade pode conferir mais ou menos força persuasiva aos topoi . Na Roma Antiga, havia as coleções de regulae com relação ao ius civile romano. Estes formavam catálogos de topoi . As proposições não tinham um propósito sistemático, mas tinham força tópica por terem sido aceitas por homens notáveis, conforme Aristóteles.

No direito, o juiz utiliza a tópica. Através dela, ele toma uma posição ideológico-política.

No Direito Penal, podemos pensar no seguinte exemplo concreto:

Havia um conflito de normas entre um dispositivo do ECA- Estatuto da Criança e do Adolescente – e a Lei dos Crimes Hediondos.

O ECA foi elaborado e publicado antes da lei dos crimes hediondos, no entanto sua vigência somente começaria após a Lei dos Crimes hediondos estar em vigor.

O foco de polêmica e de problema, no caso, é que um dos dispositivos do ECA dispunha sobre o mesmo tipo que o da lei dos crimes hediondos, sendo que cominava pena mais branda para o agressor do que este diploma. Qual a lei a ser aplicada no caso? Qual o critério a seguir? Os tribunais tentaram formular critérios. Um primeiro aplicando a tópica de que no caso de dúvida deve-se interpretar a norma no sentido mais favorável ao réu, posicionava-se no sentido da aplicação da norma do ECA. Um segundo critério aplicando a tópica de que o ECA foi criado para proteger as crianças e não para proteger e favorecer o agressor, optava pela aplicação da norma da Lei dos Crimes hediondos . Havia ainda um terceiro critério conciliatório que se diferenciava, conforme o nível de conciliação aceito, propondo basicamente a aplicação de um espécie de terceira norma que seria uma síntese das duas normas em conflito .

Há uma tópica jurídica e há uma tópica social. Há também um espaço para o in terrelacionamento entre estas duas tópicas podendo dar origem, então, a uma terceira tópica; híbrida.

O conceito do princípio in dubio pro reo, mesmo que seja estritamente jurídico, possui também uma representação social, mais ampla. O mesmo com relação ao princípio da proteção menor no ECA. O julgador pode também ser influenciado mais ou menos intensamente pela representação social destes topoi, que têm na opinião pública uma das suas maiores fontes. E temos a imprensa e, nesta a televisão, como um meio formador de opinião pública. Daí é que a escolha da premissa pelo magistrado pode também estar relacionada aos topoi difundidos na media, na televisão.

Parece haver alguma relação entre conceito indeterminado, conceito vago, conceito valorativo e tópica.

Muitos conceitos indeterminados são, com certeza, topoi, tais como, o interesse social, o interesse público .Outros talvez não, tais como, mulher honesta, indevidamente .

Parece ser relevante também a distinção entre tópica jurídica, tópica semi-jurídica e tópica não jurídica/ou social.

Há tópicas que podem ser consideradas lugares comum somente no Direito, pois que na sociedade não possuem expressividade para obter um efeito de consenso.

Há tópicas que podem ser consideradas semi-jurídicas/ecléticas, pois que são lugares comum no Direito e fora dele, podendo possuir diferentes conceitos, no entanto. E, finalmente, uma tópica não jurídica (por exemplo, “deus ajuda, quem cedo madruga” ; “quem é competente tem seu lugar” )

Os topoi podem ser diferenciados também segundo o nível de consenso, podendo para um mesmo topos, termos diferentes conceitos, inclusive com diferentes níveis de consenso. Pode haver topoi, locais, regionais, nacionais, estaduais, municipais etc.

Há vários topoi . Podemos verificar a existência de topoi em todos os segmentos da vida humana .

No ensino não é diferente, também há topoi, inclusive na própria sala de aula, no contato professor aluno.

TOPOI EM SALA DE AULA

Para estabelecer uma comunicação com o aluno, o professor comumente lança mão de vários topoi, que têm um grande poder sintético e simbólico .

O próprio direito é estruturado a partir de topoi , o que forma a argumentação jurídica . (FERRAZ, apud ANDRADE, ps. 202-205 )

Entretanto, há um risco grande do abuso, na medida em que os topoi se distanciam da realidade, dos seus respectivos conteúdos, o que é produzido pela ideologia do professor e pelos seus humores .

Devido à nossa tradição de ensino positivista, o aluno é conduzido a uma postura física e mental passiva . Assim é que é socializado para assimilar os topoi do professor, o que será cobrado e avaliado nos exames . Mesmo que, por acaso, algum professor faça diferente e seja extremamente diligente no uso dos topoi , devido a uma forte cultura de ensino jurídico positivista, a expectativa do aluno será a de que o professor espera que ele na prova, na avaliação, reproduza os padrões básicos utilizados pelo professor nos topoi que comunicou durante o período letivo.

MANIPULAÇÃO DOS TOPOIS

Uma causa comum que gera a manipulação dos topoi pelos professores, além do elemento estrutural e mais geral da cultura jurídica, é a falta de tempo do professor para preparar as aulas e inclusive para realizar pesquisa .No trabalho de pesquisa, o professor poderia ter um espaço para a reflexão sobre o conteúdo programático e sobre a sua prática docente, além de ter instrumental para proceder a pesquisas educacionais, tais como verificar, através de questionários, quais as principais dificuldades dos alunos, quais são suas características, etc. – e estimular trabalhados de pesquisa discente do seu alunado .

Na ausência deste espaço e destas possibilidades, ao professor acaba restando a alternativa de manipular os topoi e usá-los de forma abusiva . Assim é que, por exemplo, é mais fácil explicar que é a Constituição simplesmente usando o topos, com caráter definitivo, que é a norma básica do sistema jurídico .Todavia, que quer dizer norma básica, que é básico, é básico de quê ? Estas são questões que poderiam enriquecer a compreensão do tema pelo aluno, mas que normalmente não têm muito espaço de surgirem e de serem estimuladas .

Há um outro topos muito utilizado que para explicar a origem ou causa de determinado fato jurídico ou norma, ou de determinada solução, simplesmente responde : mas isto é assim porque a lei diz que é e ponto final.

A utilização de topoi com alto grau de manipulação é estendida aos demais espaços da vida acadêmica, tais como Administração do Curso .

Os topoi do tempo e da técnica são também utilizados para reforçar a legitimação deste processo tal como ele ocorre .A propósito se utiliza a máxima americana: “time is money”. A estas críticas aqui feitas, dir-ser-á : mas nós não temos tempo ! O fundamental é que o aluno saiba a técnica de aplicar e de interpretar o Direito e que o resto é filosofice ou sociologice . Mas, a técnica, como se sabe, passará pelos topoi manipulados, ideologizados, distorcidos .

Há basicamente dois níveis de seleção na construção dos topoi transmitidos pelo professor : o primeiro é o da própria Ciência do Direito e o segundo é o da interpretação e/ou percepção do professor destas informações .Pode haver e certamente há outros sub-níveis de seleção, tais como os processos seletivos procedidos pelos tribunais e pela doutrina dos juristas . No momento nos interessam apenas estes dois níveis básicos de seleção mencionados .

Cada um destes níveis traz também uma ideologia particular . Pode-se esperar talvez formatações de topoi do professor a partir da ideologia da instituição de ensino onde trabalhe .Podem ser tanto restrições mais explícitas quanto menos explícitas, podendo, por exemplo, o professor considerar que talvez não ficaria bem discutir um tema com determinado enfoque ou tendência com o qual a instituição esteja envolvida de alguma forma . São aspectos sutis muitas das vezes, mas que também se somam aos demais instrumentos de restrição e de limitação dos topoi e, conseqüente, amplia o afastamento da realidade . Devemos considerar que cada instância seletiva funciona como um grupo de interesse que atuando sobre o objeto distorce-o para colher-lhe os frutos, ocorrendo, no entanto, que, ao final do processo, quando, por exemplo, o aluno vai receber este produto, ele está tão afastado da realidade, de suas características originais, que cria um efeito de distorção da realidade jurídica ensinada . Assim é que há um processo seletivo sucessivo de afastamento da realidade.

ENSINO CRÍTICO SOBRE OS TOPOIS

Uma forma de ensino que utilize topoi e que já conte com a sua utilização costumeira, deve desenvolver também instrumentos para controlar a construção dos topoi, já que deles, muitas vezes, depende a estrutura de formação do Direito – no caso -, do conteúdo transmitido .

A questão dos topoi está também relacionada ao tema da verdade no discurso do professor de Direito, o que foi discutido por ÁVARO MELLO (5) . .

De fato, os topoi tendem a ser considerados como verdades, o que é reforçado pela cultura jurídica que valoriza os argumentos de autoridades e pela autoridade do professor que tem sua estrutura psicocognitiva-afetiva construída nesta cultura, na qual assimilou já o papel de professor-verdade ; professor-última palavra ; professor-sabe tudo. Não estamos propondo uma mudança brusca e radical, pois que há toda uma cultura vinculada emocionalmente aos tradicionais paradigmas de ensino . A uma profunda vinculação com esta prática que está inserida na cotidianidade do professor e assim na sua própria vida, personalidade e maneira de ser . Devemos lembrar que o professor de hoje foi o aluno deste sistema de ensino, com semelhantes distorções, haja vista que as críticas ao modelo atual de ensino jurídico já se repetem e existem já antes deste século através de Ruy Barbosa, por exemplo . As críticas sempre repetidas são basicamente as seguintes : ensino verbalista ; estatutário ; aula conferência ; unilateral ; monológico ; autoritário ; positivista . (MELLO) Estas críticas são praticamente unânimes, de acordo com levantamento procedido nas principais revistas de doutrina jurídica, pois que de vários artigos consultados, somente um autor, ousou defender os nossos métodos de ensino jurídico; no entanto, ressalte-se que mesmo este autor como práticas docentes os estudos de casos.

A alternativa de controle tem de ser necessariamente a reflexão crítica dos topoi com os quais o professor vai trabalhar, permitindo-se o lente, a reconstrução dos topoi apresentados a partir das intervenções dos alunos, que mais do esperadas devem ser estimuladas.

A interdisciplinaridade, dentro das próprias disciplinas jurídicas e fora delas, utilizando elementos das artes, por exemplo, (músicas, poesias, romances, filmes, peças teatrais) , dentre outros, pode ser um importante instrumental de estímulo da criticidade, pois que a abordagem interdisciplinar provoca inicialmente um desarrumação, o que obriga o sujeito a esforçar-se para restabelecer uma nova ordem, uma nova unidade um novo sentido. Além do aspecto lúdico, desta prática, que nos remete aos nossos jogos da infância.

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