Concessão de tutela antecipada exige interpretação valorativa

Por Jonny Maikel dos Santos
1. Introdução

Os estudos processuais das tutelas de urgência necessitam ser repensados.

A tutela de urgência é o gênero de medida judicial na qual estão inseridos os provimentos da tutela cautelar, das diversas liminares, das tutelas antecipatórias e das inibitórias.

Neste ensaio falo especificamente sobre a flexibilização dos requisitos da tutela antecipada genérica especialmente do § 2º, do art. 273, do CPC e do perigo da concessão açodada desta, propondo a conjugação de princípios constitucionais para aperfeiçoamento da urgência.

A tutela antecipada atualmente é basicamente estudada em si mesma e segundo os planos meramente formais e processuais.

Proponho uma mudança de paradigma no estudo da tutela antecipada, principalmente, explorando o seu aspecto valorativo e sua adequação a Carta Magna.

Compreendo que, não pode o julgador ao apreciar os requisitos legais encetados no art. 273 do CPC se limitar a fazer uma “lista de checagem” ou uma “chamada oral” dos requisitos legais e simplesmente deferir ou indeferir o pleito requerido.

São necessárias interpretações valorativas, corretivas, proporcionais e razoáveis da norma processual civil, bem como das verificações das hipóteses e situações em que as tutelas de urgência podem ser concedidas sem a ouvida da parte adversa.

O processo deve ser estudado com base no plano valorativo e até mesmo sociológico.

O art. 273 do CPC necessita ser estudado com aplicação da interpretação corretiva como forma de aperfeiçoar a afetividade da antecipação.

2. Interpretações: valorativa e corretiva.

No art. 273 do CPC está inscrita uma das mais importantes inovações processuais do direito processual brasileiro lastreada na reforma italiana (Lei n o. 353/90, vigente desde janeiro do ano de 1.992 – Itália).

A tutela antecipada passou por mais uma atualização processual com as alterações introduzidas pela Lei 10.444/02 e creio que outras são necessárias.

Agora é necessária uma analise valorativa da norma em relação aos seus requisitos diante dos ditames constitucionais.

Prescreve o art. 273 do CPC:

“Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e: (Redação dada pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994).”

“I – haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ou (Redação dada pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994).”

“II – fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu. (Redação dada pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994).”

“§ 1o Na decisão que antecipar a tutela, o juiz indicará, de modo claro e preciso, as razões do seu convencimento. (Parágrafo acrescentado pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994).”

“§ 2o Não se concederá a antecipação da tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado. (Parágrafo acrescentado pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)”.

“§ 3o A efetivação da tutela antecipada observará, no que couber e conforme sua natureza, as normas previstas nos arts. 588, 461, §§ 4o e 5o, e 461-A. (Redação dada pela Lei nº 10.444, de 7.5.2002).”

“§ 4o A tutela antecipada poderá ser revogada ou modificada a qualquer tempo, em decisão fundamentada. (Parágrafo acrescentado pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994).”

“§ 5o Concedida ou não a antecipação da tutela, prosseguirá o processo até final julgamento. (Parágrafo acrescentado pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)”.

“§ 6o A tutela antecipada também poderá ser concedida quando um ou mais dos pedidos cumulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso. (Parágrafo acrescentado pela Lei nº 10.444, de 7.5.2002)”.

“§ 7o Se o autor, a título de antecipação de tutela, requerer providência de natureza cautelar, poderá o juiz, quando presentes os respectivos pressupostos, deferir a medida cautelar em caráter incidental do processo ajuizado. (Parágrafo acrescentado pela Lei nº 10.444, de 7.5.2002).”

Diante da norma acima transcrita observam-se resumidamente os requisitos legais da tutela antecipada genérica (art. 273 do CPC), veja-se:

a) requerimento da parte;

b) prova inequívoca capaz de convencer o julgador da verossimilhança da alegação;

c) fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ou caracterização do abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu; e,

d) inexistência de perigo de irreversibilidade do provimento antecipado.

Processualmente todos os requisitos legais acima referidos têm o mesmo “peso”, posto que o CPC não faz distinção entre eles, entretanto, no plano valorativo, creio que podem ser flexibilizados os rigores formais e processuais.

A valoração do julgador sobre os requisitos da tutela antecipatória deve partir dos limites da inexistência de perigo de irreversibilidade do provimento antecipado diante da interpretação corretiva.

Sendo certo que inexiste no nosso ordenamento jurídico direito absoluto, também, pode-se afirmar que não há restrição ou limitação absoluta.

O CPC ensina que não se concederá a antecipação da tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado.

Então, o que deve fazer o julgador quando a concessão da antecipação da tutela implicar em real irreversibilidade do provimento antecipado e não apenas o perigo exigido pela norma?

a) indeferir, de plano, o pedido de antecipação de tutela e cumprir a letra fria da lei;

b) ou, corrigir a limitação da regra e decidir pelo deferimento ou não do pleito com base em princípios constitucionais.

Compreendo que, na analise corretiva e valorativa dos requisitos da tutela antecipada deve o julgador priorizar a dignidade humana (CF, art. 1º, III), o direito à vida (art. 5º. Caput, da CF), os diretos da personalidade (art. 5º, incisos V e X, da CFB/88 e arts. 11/21 do NCC) e atender às três máximas parciais do princípio da proporcionalidade, quais sejam: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.

É certo que inexiste direito às tutelas de urgência, assim pode o legislador ordinário impor limites à concessão de liminares, cautelares, tutelas genéricas e inibitórias, aspecto, de certa forma, já reconhecido pelo STF na linha do pensamento da ADC n o. 04 ao apreciar a constitucionalidade da Lei Federal n o. 9.494/97, entretanto, a partir do momento que o legislador coloca a disposição do Poder Judiciário a concessão de determinada tutela de urgência este pode deferir o pleito urgente fundado em normas constitucionais indisponíveis com, por exemplo, o direito a vida.

As normas desde o seu nascimento devem ser banhadas pelos princípios constitucionais para que sejam consideradas legítimas.

A interpretação extremamente formal §2º do art. 273 do CPC deve ser flexibilizada diante da constituição Federal.

O Ministro Ruy Rosado de Aguiar (Recurso Especial nº 417.005 – SP (2002 0023494-2), STU – Sorocaba Transportes Urbanos Ltda x Doraci Roberto) ensina sobre a possibilidade de flexibilizar a irreversibilidade do provimento amtcipatório, em decisão tratando sobre atropelamento do autor por ônibus de propriedade de empresa ré, veja-se:

“(…) “Na hipótese dos autos, o dano irreparável é a falta de tratamento médico em favor da vítima, que teve suas pernas amputadas, e não o acidente em si. Incabíveis, portanto, as argumentações da recorrente quanto ao tema.

“2. Tocante à irreversibilidade do provimento, o egrégio Tribunal de origem decidiu acertadamente ao frisar que a interpretação da norma deve ser feita com razoabilidade. No mesmo sentido é o trecho do voto do eminente Ministro Eduardo Ribeiro, relator do REsp 242816 PR, que transcrevo a seguir e adoto como fundamento desta decisão:

‘(…) o § 2º do artigo 273 do Código de Processo Civil, em determinadas circunstâncias, sob pena de tornar inaplicável o instituto da tutela antecipada, deve ser interpretado com temperamento. Citam-se hipóteses como a da demolição de um prédio, tombado pelo patrimônio público, que ameaça desabar; ou a da autorização para realizar uma transfusão de sangue que pode salvar a vida de uma criança, contra a vontade dos pais, cuja religião não permite tal tratamento; ou a da amputação da perna de um paciente, contra a sua vontade, como única forma de salvar sua vida.’

“Nos casos de responsabilidade civil, a demora no deferimento da indenização, especialmente quando consiste no tratamento à saúde, pode significar o sacrifício do direito do lesado. Daí a necessidade de ser interpretada com flexibilidade a exigência dos requisitos de seu deferimento, para o que deverão ser ponderados os valores em causa. Quando a demora causar dano certo e irreparável, portanto, irrestituível, não cabe lançar essa mesma exigência sobre o lesado.”

“Para isso, os bens jurídicos devem ser postos na balança: de um lado, a necessidade urgente de tratamento e assistência à pessoa pobre que perdeu as duas pernas; de outro, a diminuição do patrimônio econômico da empresa de transportes. Na ponderação, em casos tais, há de prevalecer a decisão que deferiu a tutela antecipada, mesmo que não se possa garantir o atendimento do disposto no § 2o do art. 273 do CPC”.

Os tribunais vêm flexibilizando a concessão de tutela mesmo quando o réu é a Fazenda Pública, veja-se:

“EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. ANTECIPAÇÃO DA TUTELA (ART. 273, DO CPC) CONTRA A UNIÃO FEDERAL. POSSIBILIDADE.

1. Ante a presença, na hipótese dos autos, dos pressupostos para a concessão da antecipação da tutela, insculpidos no art. 273, do CPC, quais sejam, a prova inequívoca da verossimilhança dos fatos alegados, o fundado receio de difícil reparação, a inexistência de perigo de irreversibilidade do provimento antecipado, além do fato de tratar-se de prestação para fins alimentares da autora, não se configura como ilegal a referida concessão frente a União.

2. Recurso parcialmente conhecido e, nesta parte, desprovido (RESP 311659/CE; RECURSO ESPECIAL
2001/0032396-0, DJ DATA:27/08/2001 PG:00233
JBCC VOL.:00193 PG:00337, Min. JOSÉ DELGADO).”

O interprete deve entender que o julgador não vai contra a lei quando decide fundado na Constituição Federal.

Ressalto que a possibilidade de mitigação do § 2º, do art. 273, do CPC exige fundamentação especial e específica e deve ser apreciada em cada caso concreto.

Vale notar que a tutela antecipatória prevista no art. 273 do CPC pode ser concedida em causas envolvendo direitos patrimoniais ou não-patrimoniais, mesmo diante da redação do § 2º, do referido dispositivo, veja-se:

“EMENTA: PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTARIO. TUTELA ANTECIPATORIA. DIREITOS PATRIMONIAIS. CONCESSÃO: POSSIBILIDADE. INTELIGENCIA DO ART. 273 DO CPC. RECURSO NÃO CONHECIDO.

I – A TUTELA ANTECIPATORIA PREVISTA NO ART. 273 DO CPC PODE SER CONCEDIDA EM CAUSAS ENVOLVENDO DIREITOS PATRIMONIAIS OU NÃO-PATRIMONIAIS, POIS O ALUDIDO DISPOSITIVO NÃO RESTRINGIU O ALCANCE DO NOVEL INSTITUTO, PELO QUE E VEDADO AO INTERPRETE FAZE-LO.
NADA OBSTA, POR OUTRO LADO, QUE A TUTELA ANTECIPATORIA SEJA CONCEDIDA NAS AÇÕES MOVIDAS CONTRA AS PESSOAS JURIDICAS DE DIREITO PUBLICO INTERNO.

II – A EXIGENCIA DA IRREVERSIBILIDADE INSERTA NO § 2. DO ART. 273 DO CPC NÃO PODE SER LEVADA AO EXTREMO, SOB PENA DE O NOVEL INSTITUTO DA TUTELA ANTECIPATORIA NÃO CUMPRIR A EXCELSA MISSÃO A QUE SE DESTINA.

III – RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO (RESP 144656 / ES; RECURSO ESPECIAL
1997/0052333-0, DJ DATA:27/10/1997 PG:54778
REVJMG VOL.:00142 PG:00464, Min. ADHEMAR MACIEL).

“A TAM Transportes Aéreos Regionais S/A perdeu no Superior Tribunal de Justiça a última oportunidade de evitar pagar antecipadamente a indenização de R$ 105 mil a familiares de vítimas da queda do avião Fokker 100, em outubro de 1996. O acidente aconteceu em Congonhas (SP), matando dezenas de passageiros.”

“A TAM ingressou no STJ contra uma decisão do Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, que estabeleceu que os familiares deveriam receber antecipadamente 70% de um total de R$ 150 mil, aprovado pela seguradora da empresa. Segundo argumentos do Tribunal paulista, é justo conceder a chamada antecipação de tutela para garantir aos familiares a indenização.

Para a Tam, ainda não ficou comprovada a sua total culpa na queda do avião, já que está sendo apurada a responsabilidade de duas empresas norte-americanas. Além disso, o valor de R$ 150 mil foi oferecido por sua seguradora, não podendo a TAM pagar antecipadamente os 70%.”

“A Quarta Turma do STJ negou o pedido da TAM, com o argumento de que o pagamento antecipado da indenização não trará prejuízos à empresa, já que a seguradora a ressarcirá logo que o processo transitar em julgado. O relator do processo, ministro Sálvio de Figueiredo, acentuou que a TAM deve indenizar independentemente da existência de seguro. ‘Não se pode condenar uma empresa a pagar indenização somente por existir seguro’, disse.” (Autos do processo de registro MC 1703, decidiu o STJ: in: Notícias do STJ em 10/06/1999 – TAM deve pagar indenização antecipada por morte de passageiro do Fokker 100).

Apesar das limitações das Leis 8.437/92 e 9.494/97 também podem ser concedidas tutelas de urgências desde que o julgador fundamente especificamente sobre o inconsistência destas limitações em cada caso concreto.

Vale dizer que é pacifico no STF a inaplicabilidade das limitações da Lei n o. 9.494/97 à concessão de tutela antecipada em matéria de natureza previdenciária, nesse sentido:

“Informativo 248 (RCL-1136) — “Título: Tutela Antecipada e Benefícios Previdenciários.

“Não se aplica, em matéria de natureza previdenciária, a decisão do STF na ADC-4 — que suspendeu liminarmente, com eficácia ex nunc e com efeito vinculante, até final julgamento da ação, a prolação de qualquer decisão sobre pedido de tutela antecipada, contra a Fazenda Pública, que tenha por pressuposto a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do art. 1º da Lei nº 9.494, de 10.9.97. Com esse entendimento, o Tribunal julgou improcedentes duas reclamações ajuizadas, respectivamente, pelo Instituto Nacional do Seguro Social — INSS e pelo Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul — IPERGS, contra decisões que deferiram antecipação de tutela relativamente a benefícios previdenciários. Precedentes citados: RCL 1.015-RJ (DJU de 24.8.2001) e RCL 1.122-RS (DJU de 6.9.2001). RCL 1.014-RJ e RCL 1.136-RS, rel. Min. Moreira Alves, 24.10.2001.(RCL-1014)(RCL-1136)”.

No meu entender, para interpretação corretiva, valorativa e proporcional do art. 273 do CPC (bem como de todas as tutela de urgência) devem ser:

a) evitadas interpretações restritivas de direitos constitucionais;

b) valorizadas exegeses que reconheçam a inexistência de restrições ou direitos absolutos;

c) priorizados e valorizados os princípios da dignidade da pessoa humana e proporcionalidade, bem como o direito à vida e a personalidade;

d) aplicadas às normas processuais segundo os ditames constitucionais; e,

e) fundamentadas as flexibilizações das normas processuais em cada caso concreto.

Vale dizer que, cabe Reclamação perante o STF para atacar decisão que concede tutela antecipada desrespeitando à decisão do Plenário do Supremo na ADC nº 4, pois há proibição, dirigida a qualquer juiz ou Tribunal, de prolatar decisão sobre pedido de antecipação de tutela que tenha como pressuposto a questão específica da constitucionalidade, ou não, da norma inscrita no art. 1º da Lei nº 9.494/97, conforme explicitado na Pet. nº 1.401-5/MS (Min. Celso de Mello). (Nesse sentido: RCL nº 846-7, red. p/ o ac. Min. Ellen Gracie e RCL nº 848-0, rel. Min. Moreira Alves, julgadas, em 19.04.2001 e 10.04.2002), devendo, portanto, o julgador fundamentar a decisão valorativa em outros planos, como no direito a vida.

Entendo que, é possível, por exemplo, a concessão de tutela de urgência para obrigar o Estado a fornecer medicamento a portador de AIDS – síndrome de imunodeficiência adquirida, mesmo sem ouvida da parte contrária, sem que este posicionamento implique ofensa às normas processuais protetivas de entes da federação, pois o direito a vida e a dignidade da pessoa humana estão acima de qualquer limitação da norma infraconstitucional.

Advirto que, apesar da possibilidade de flexibilização do artigo 273 e seu § 2º, todos do Código de Processo Civil o perigo de irreversibilidade do provimento antecipado é óbice real à sua concessão, salvo hipóteses especialíssimas devidamente fundamentadas. Nesse sentido:

“EMENTA: Antecipação de tutela — Artigo 273, § 2º do Código de Processo Civil. O perigo de irreversibilidade do provimento antecipado, salvo hipóteses especialíssimas, é óbice à sua concessão (RESP 242816 / PR ; RECURSO ESPECIAL, 1999/0116421-4, DJ DATA:05/02/2001 PG:00103, Min. EDUARDO RIBEIRO).”

Não somente a irreversibilidade do provimento antecipado pode ser flexibilizada, mas também os demais requisitos do art. 273 do CPC, desde que o julgador fundamente especificamente e componha a norma processual com as regras das interpretações corretiva e valorativa.

Vale falar que, é necessária nova redação ao § 2º, do art. 273, do CPC, proponho:

“§ 2o Não se concederá a antecipação da tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado, salvo hipóteses especialíssimas fundadas nos princípios da dignidade da pessoa humana ou da proporcionalidade”.

Em outro ensaio tratarei da flexibilização dos demais requisitos da tutela antecipada.

3. Perigo na pressa

O processo visa pacificar, em cada caso concreto, os conflitos de interesses entre as partes litigantes, sendo óbvio que de um a lado está o autor e do outro o réu, porém, muitas vezes, este fato é esquecido pelo julgador.

As últimas inovações processuais trazidas pelas mini-reformas do CPC valorizaram mecanismos de proteção aos direitos dos autores e de certa forma esqueceram o direito de defesa dos réus.

O direito de defesa no nosso ordenamento jurídico não nasceu com a Constituição de 1.998, mas a partir desta foi sobremaneira valorizado.

Prescreve o art. 5º da CF/88, nos seus incisos LIV e LV:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

“LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;”

“LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

Geralmente o autor alega que o tempo e a demora processuais podem causar prejuízos ao seu direito, porém, por outro ponto, não pode ser relegado a plano inferior o direito de defesa do réu. Deve o julgador procurar equilibrar as armas processuais das partes, impondo a aplicação material do princípio constitucional da igualdade.

Tão ou mais perigoso quanto o perigo na demora é o perigo na pressa em decidir.

Não são raras as concessões de tutelas de urgência sem ouvir a parte contrária que logo são derrubadas pelos tribunais, deixando grandes rastros de prejuízos irreparáveis para os réus.

Creio que, não deve o julgador conceder toda e qualquer tutela de urgência sem ouvir a parte contrária.

Em cada caso concreto deve o julgador estudar a possibilidade de mitigação do art. 5º, incisos, LIV e LV da CF.

Entendo que, o julgador deve obrigatoriamente garantir, como regra, o contraditório e a ampla defesa ao réu e fixar prazos que possibilitem a manifestação especifica deste sobre a tutela de urgência.

Numa ação sob o rito ordinário, por exemplo, pode o julgador verificando a possibilidade de garantia do contraditório e da ampla defesa deixar para apreciar o pedido de tutela de urgência após o prazo da contestação, ou, por exemplo, após 72 (setenta e duas) horas da intimação do réu para falar sobre a antecipação, restando, neste último caso, assegurada a posterior apresentação de contestação, no prazo legal.

Considero que as garantias do contraditório e da ampla defesa são deveres anexos à concessão de qualquer tutela de urgência, portanto, a regra deve ser a ouvida do réu antes da concessão da antecipação, salvo casos excepcionais devidamente justificados.

Assim, ressalvadas situações devidamente justificadas e comprovadas, ao juiz só é permitido deferir medida cautelar, “sem ouvir o réu, quando verificar que este, sendo citado, poderá torná-la ineficaz” (CPC, art. 804), portanto, por analogia e com base nos princípios do contraditório, ampla defesa, devido processo legal, proporcionalidade e razoabilidade esta regra se aplica também ao mandado de segurança (Lei 1.533/51, art. 7º, II), às antecipações das tutelas (CPC, art. 273 e 461; CDC art. 84, etc..), à ação civil pública (Lei 7.347/85, art. 12) e as demais tutelas de urgência inscritas no CPC e na legislação extravagante. Ante o exposto, em regra, deve o julgador, por segurança jurídica, apreciar a tutela de urgência requerida, somente depois de ouvir a parte adversa.

Somente quando houver perigo real de lesão a direitos fundamentais ou em casos devidamente justificados pelo julgador poderá ser deferida tutela de urgência sem ouvir a parte contrária.

Vale notar que diversas vantagens processuais podem advir da ouvida da parte contrária, como por exemplo:

a) segurança jurídica;

b) possibilidade de maior conhecimento da demanda;

c) instauração de sumária produção de provas; e,

d) garantia do contraditório e da ampla defesa.

Por todo o exposto, proponho mais uma alteração, qual seja o acréscimo de um parágrafo ao art. 273, do CPC, veja-se:

“§ 8o A antecipação somente poderá ser concedida depois de possibilitada à manifestação da parte adversa sobre a tutela de urgência, salvo casos excepcionais devidamente justificados pelo julgador”.

O perigo na pressa deve ser evitado principalmente quando a lide envolver a dignidade da pessoa humana ou direito da personalidade, veja-se:

“EMENTA: Caso O GLOBO X GAROTINHO. 1. Liminar deferida em primeiro grau e confirmada pelo Tribunal de Justiça, que proíbe empresa jornalística de publicar conversas telefônicas entre o requerente – então Governador de Estado e, ainda hoje, pretendente à presidência da República – e outras pessoas, objeto de interceptação ilícita e gravação por terceiros, a cujo conteúdo teve acesso o jornal. 2. Interposição pela empresa de recurso extraordinário pendente de admissão no Tribunal a quo. 3. Propositura pela recorrente de ação cautelar – que o STF recebe como petição – a pleitear, liminarmente, (1) autorização de publicação imediata da matéria e (2) subida imediata do RE à apreciação do STF, porque inaplicável ao caso o art. 542, § 3º, C.Pr.Civil. 4. Objeções da PGR à admissibilidade (1) de pedido cautelar ao STF, antes de admitido o RE na instância a qua; (b) do próprio RE contra decisão de caráter liminar: razões que aconselham, no caso, fazer abstração delas. 5. Primeiro pedido liminar: natureza de tutela recursal antecipada: exigência de qualificada probabilidade de provimento do recurso extraordinário. 6. Impossibilidade de afirmação no caso de tal pressuposto da tutela recursal antecipada: (a) polêmica — ainda aberta no STF — acerca da viabilidade ou não da tutela jurisdicional preventiva de publicação de matéria jornalística ofensiva a direitos da personalidade; (b) peculiaridade, de extremo relevo, de discutir-se no caso da divulgação jornalística de produto de interceptação ilícita — hoje, criminosa — de comunicação telefônica, que a Constituição protege independentemente do seu conteúdo e, conseqüentemente, do interesse público em seu conhecimento e da notoriedade ou do protagonismo político ou social dos interlocutores. 7. Vedação, de qualquer modo, da antecipação de tutela, quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado (C.Pr.Civ., art. 273, § 2º), que é óbvio, no caso, na perspectiva do requerido, sob a qual deve ser examinado. 8. Deferimento parcial do primeiro pedido para que se processe imediatamente o recurso extraordinário, de retenção incabível nas circunstâncias, quando ambas as partes estão acordes, ainda que sob prismas contrários, em que a execução, ou não, da decisão recorrida lhes afetaria, irreversivelmente as pretensões substanciais conflitantes (Pet 2702 / RJ – RIO DE JANEIRO, PETIÇÃO, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE).”

4. Conclusão

Os requisitos da tutela antecipada não devem ser estudados em si mesmos, porém casados com as normas e princípios constitucionais.

As exigências legais da antecipação da tutela de urgência descritas no art. 273, do CPC, podem ser flexibilizadas com base em interpretações valorativas, corretivas e razoáveis.

Nenhuma tutela de urgência deve ser concedida sem a ouvida da parte contrária, salvo casos excepcionais devidamente justificados, sob pena de lesão aos princípios do contraditório, ampla defesa, devido processo legal, proporcionalidade, razoabilidade e igualdade processual de armas.

É necessária mudança de paradigma na interpretação dos requisitos da tutela antecipada por meio de comunhão deste instituto com o direito material e principalmente com a Constituição Federal.

Mudanças de paradigmas na tutela antecipada: interpretações corretiva e valorativa e o perigo na pressa.

Jonny Maikel dos Santos é juiz de Direito na Bahia e ex-procurador municipal.

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