Autor: Eduardo Fortunato Bim (*)
Nas obras sujeitas ao licenciamento ambiental é comum que haja a previsão de condicionantes, que tem como finalidade mitigar o impacto ambiental adverso do empreendimento.[1]
Ocorre que, sob a justificativa de se mitigar o impacto ambiental do empreendimento a ser licenciado, acaba-se deslocando para o empreendedor a implementação de políticas públicas que são atribuídas a determinados órgãos estatais ao impor deveres desproporcionais, desconectados ou sem relação direta com o impacto adverso. Mais grave, às vezes chega-se mesmo a impor obrigações que destoam do direito vigente.
A aceitação dessas distorções relativas às condicionantes pelo licenciado tem basicamente duas origens: (i) a intenção de internalizar no licenciamento o que é conhecido como licença social (social license), evitando-se conflitos que não devem ser gerenciados dentro do processo de licenciamento ambiental; e (ii) o receio do empreendedor de que seja mais um entrave à concessão da licença, postergando-se a sua discussão no licenciamento.
Entretanto, não há respaldo legal para tanto, pois como já mencionado acima a finalidade das condicionantes é a mitigação dos impactos ambientais adversos, razão pela qual elas devem ter relação direta e proporcional com estes.
A AGU entende que o órgão gestor das unidades de conservação não pode impor condicionantes que não guardem relação direta com os impactos (OJN PFE-ICMBio 7/11). Na mesma linha de raciocínio, a Portaria Interministerial MMA/MJ/MINC/MS 60/2015 preceitua que as condicionantes enviadas pelos intervenientes devem guardar “relação direta com os impactos” adversos decorrentes da atividade ou do empreendimento identificados nos estudos ambientais e deverão “ser acompanhadas de justificativa técnica” (artigo 7º, § 12 e artigo 16, § 2º). Na última versão do PL 3.729/2004, também há previsão de que as condicionantes tenham relação direta com os impactos ambientais do empreendimento (artigo 12, § 1º).
Nesse sentido, são procedentes as críticas doutrinárias sobre medidas mitigadoras e compensatórias: “constata-se que, muitas vezes, são propostas sem qualquer relação com o impacto ambiental ou não apresentam nenhuma solução prática para ele.”[2]
Por tal razão é que não poderia existir condicionante consistente em pagamento de porcentagem do valor do empreendimento para um ente político da região afetada; não haveria nexo entre o impacto adverso e o financiamento do poder público.
Qualquer condicionante que não tenha relação direta, ou seja, clara e imediata, com os impactos adversos do empreendimento ou atividade são ilegais porque cristalizam patente desvio de poder. As condicionantes não podem suprir deficiências decorrentes da ausência estatal e nem substituir soluções específicas do direito positivo.
Exigir comprovante de posse ou propriedade sobre o imóvel, autorização de outros órgãos que cuidam de políticas públicas relacionadas com o empreendimento, como, no âmbito federal, SPU, ANTAQ etc., são exemplos claros de ausência de nexo de causalidade. O licenciamento ambiental não é o lugar para resolver todos os problemas associados ao empreendimento ou atividade, sendo um guardião de outras políticas públicas que não as estritamente ambientais.
Ademais, as condicionantes devem ser proporcionais, fazendo com que a carga que recaia sobre o proponente do projeto não seja descolada dos impactos adversos causados pelo empreendimento ou atividade que se pretenda licenciar. Com razão, André Krull defende que “não resta dúvida também sobre a possibilidade lógica de aplicação da proporcionalidade em relação às condicionantes impostas ao empreendedor no bojo da licença ambiental.”[3]
Entre a relação direta dos impactos adversos e a proporcionalidade das mitigantes, deve-se rechaçar o que pode ser chamado de condicionantes emocionais. Aquelas que não se relacionam ao impacto adverso, mas com o risco exacerbado, que preveem um cenário improvável, não condizente com as estatísticas ao encampar o pior cenário possível ou algo próximo disso.
O direito estadunidense também se preocupa com a relação direta entre a condicionante e o impacto adverso, além de exigir a proporcionalidade, não sendo admissível condicionante que não tenha equivalência com o impacto adverso a ser causado.
Nos EUA, a Suprema Corte já entendeu que deve haver nexo de causalidade e proporcionalidade entre a exigência (condicionante) e o seu propósito. Tais exigências foram sacramentadas, respectivamente, em Nollan v. California Coastal Commission (1987) e Dolan v. City of Tigard (1994).
Em Nollan v. California Coastal Commission, a Suprema Corte concluiu que, enquanto tal acesso à praia pública pode ser uma meta desejável, a servidão de acesso público não serviria para promover a capacidade do público de ver a praia ou perceber o acesso à praia a partir da rua, portanto, não havia relação entre a meta e a condicionante.[4] Por sua vez, em Dolan v. City of Tigard expandiu-se Nollan porque, além do nexo, houve a exigência da proporcionalidade em sentido estrito (rough proportionality) entre o ônus da condicionante e o impacto adverso do projeto. Quanto maior o impacto adverso do projeto, maior a restrição que a condicionante poderá causar.
Esses precedentes foram reafirmados pela Suprema Corte em Koontz v. St. Johns River Water Management District (2013), explicitando que suas restrições também se aplicavam às condicionantes envolvendo dinheiro — não apenas a propriedade — e à negativa de autorizações, não apenas para aprovações.5
As condicionantes devem ser empregadas para gerenciar os impactos do empreendimento, não se podendo utilizar o licenciamento ambiental “como mero balcão de troca, com compensações que não possuem relação de nexo e proporção com o impacto causado pelo empreendimento que se está licenciando.”[6]
A proporcionalidade ou razoabilidade das condicionantes podem ocorrer em relação a sua recorrência. Frequentemente são impostas condicionantes de monitoramento com intervalo amostral muito curto, tornando-se desarrazoado, especialmente naqueles casos nos quais não existe risco ambiental que justifique essa amostragem quase contínua.
Embora o Judiciário permaneça altamente deferente (highly deferential) às condicionantes, não podendo substituir a decisão administrativa sobre elas baseado apenas em sua discordância,[7] verifica-se que é pacífica a possibilidade de seu controle com base nos parâmetros do nexo e da proporcionalidade, não constituindo a competência para estabelecer condicionantes um cheque em branco para a Administração Pública.
Em suma, os parâmetros estadunidenses são aplicáveis ao ordenamento brasileiro para definir se as condicionantes são lícitas, o que não impede declarar sua invalidade por outros motivos.
As condicionantes sociais
Como as condicionantes são aquelas orientações ou exigências que constam da licença ambiental, mas que não se referem à autorização para o empreendimento em si, elas são um campo fértil para a internalização de questões que não agregam nada em termos de controle ambiental, como questões dominiais, possessórias, urbanísticas locais, ou simplesmente que suprem a ausência de Estado. Essas condicionantes são chamadas decondicionantes sociais.
Infelizmente, os órgãos licenciadores tendem a incorporar essas necessidades básicas e repassá-las aos empreendedores (inclusive o próprio Estado), tentando suprir com condicionantes as deficiências estatais nas políticas públicas ou até mesmo problemas entre particulares. O problema extrapola a mera conspurcação e tumulto no licenciamento ambiental porque usá-lo para alcançar outros fins caracteriza-se desvio de poder ou finalidade.
Frise-se: as condicionantes do licenciamento ambiental não podem ser usadas para sanar a falta de Estado ou para desvirtuar soluções de direito positivo. Assim, questões de direitos reais, de propriedade, posse, individuais, que o direito positivo solucione, devem ser obedecidas pelo licenciamento ambiental.
Um desvio comum nas condicionantes previstas nas licenças ambientais consiste na previsão de indenizações ou reassentamentos para quem vive em terras públicas. Há desvio porque não é possível usucapir bens públicos, evidenciando a impossibilidade de posse, ou seja, existe mera detenção, que é incompatível com o dever de indenização ou direito de retenção, ainda que de boa-fé.
O STJ é pacífico em negar qualquer tipo de indenização à ocupação de bem público porque caracterizada mera detenção, negando nessa situação a existência de direitos possessórios, indenização pelas benfeitorias ou mesmo o reconhecimento do direito de retenção, ainda que haja boa-fé.[8] Em acórdão da lavra de Herman Benjamin, ao encampar a impossibilidade de se indenizar detentores de bens públicos por benfeitorias, o STJ consignou:
[…] 11. Entender de modo diverso é atribuir à detenção efeitos próprios da posse, o que enfraquece a dominialidade pública, destrói as premissas básicas do Princípio da Boa-Fé Objetiva, estimula invasões e construções ilegais e legitima, com a garantia de indenização, a apropriação privada do espaço público.[9]
Como se isso não fosse suficiente, o ocupante irregular do bem público tem a obrigação de indenizar o Estado pelo seu uso,[10] seja pela vedação do enriquecimento sem causa, seja pela previsão de lei específica do ente público nesse sentido.
No entanto, apenas por se estar diante de um licenciamento ambiental, ignora-se o direito aplicável à espécie, criando-se um ordenamento paralelo, e obriga o empreendedor a reassentar ou indenizar os ocupantes de terras públicas.
Por isso a doutrina vem rechaçando as condicionantes sociais, clamando pelo retorno de suas funções de mitigação, não meio de resolução dos problemas sociais por uma visão distorcida dos impactos socioambientais. Como salienta Daniel Tobias Athias, “as condicionantes não devem servir como substitutivo da inação estatal.”[11]
Na mesma diretriz, a Portaria Interministerial MMA/MJ/MinC/MS 60/2015 (artigos 7º, § 12, e 16), reproduzindo a revogada PI 419/2011 (artigo 6º, § 8º), é categórica em exigir “relação direta” e “justificativa técnica” das condicionantes com os impactos identificados nos estudos apresentados pelo empreendedor, com o objetivo de evitar exigências absurdas, que normalmente decorrem do oportunismo dos intervenientes no processo de licenciamento ambiental em tentar resolver problemas desvinculados do empreendimento ou atividade a ser licenciado.
Portanto, mesmo que existam exigências ambientais, elas devem se relacionar com o empreendimento de forma direta e clara, não se devendo empregar o licenciamento ambiental para equacionar problemas ambientais sem nexo de causalidade minimamente proporcional com o empreendimento.
Conclusão
Uma vez que as condicionantes devem ter relação direta, imediata e proporcional com o impacto causado, não podendo substituir políticas públicas imputadas a certos órgãos estatais, atentar contra o ordenamento jurídico ou internalizar questões que não dizem respeito ao controle ambiental, urge inserir previsão nesse sentido em algum normativo que balize o licenciamento ambiental. Lei, resolução do Conama, decreto ou mesmo ato administrativo do órgão licenciador poderia ter incluído em seu texto dispositivo com simples redação disciplinando que:
“As condicionantes devem ter nexo direto, imediato e proporcional com os impactos ambientais do empreendimento ou atividades licenciadas, sendo vedado seu uso para substituir políticas públicas, adotar critérios proibidos pelo direito vigente ou internalizar questões que não dizem respeito ao controle ambiental.”
Autor: Eduardo Fortunato Bim é procurador federal junto ao Ibama, mestre em Direito e Especialista em Direito Ambiental pela Unimep.