Autores: Henrique Hoffmann Monteiro de Castro e Adriano Sousa Costa (*)
É consabido que a persecução penal qualifica-se como imprescindível caminho a ser percorrido pelo Estado para legitimamente exercer seu direito de punir face à prática de infração penal por alguém. Nessa vereda de busca da verdade (ainda que processual, e não substancial)[1] é que se insere o instituto da condução coercitiva.
Não se nega que o viés mais conhecido da condução coercitiva é de sanção processual decorrente do descumprimento de ordem, verdadeiro contempt of Court dada a ofensa à dignidade da Justiça e autoridade de seus agentes.[2] Remonta às Ordenações Filipinas, de onde se origina a expressão “conduzir debaixo de vara”. É aplicada quando um sujeito, seja vítima, testemunha, suspeito, perito ou adolescente (artigos 201, parágrafo 1º, 218, 260 e 278 do CPP, artigo 80 da Lei 9.099/1995 e artigo 187 do ECA) desobedece injustificadamente à prévia intimação para comparecer perante à autoridade. Consiste, portanto, em mecanismo de condução à força do recalcitrante, a fim de que participe de ato no qual sua presença seja essencial.
Todavia, sua utilização é muito mais ampla, consubstanciando-se como antecedente lógico de uma diligência probatória coarctante (como o reconhecimento pessoal), de uma medida cautelar diversa da prisão (tal qual a monitoração eletrônica) ou até mesmo de ato encarcerador propriamente dito (a exemplo da prisão em flagrante).
Deve ocorrer num curto lapso temporal, não podendo exceder algumas horas, tempo suficiente para a colheita dos elementos pela Polícia Judiciária, e não se limita ao rol taxativo da Lei de Prisão Temporária (artigo 1º, inciso III da Lei 7.960/89).
Com efeito, a condução coercitiva é medida necessária não apenas para a realização de interrogatório do recalcitrante. Comumente utilizada no “dia D” de operações policiais (deflagração da fase externa do inquérito policial), também serve para evitar a ocultação ou destruição de objetos durante busca e apreensão domiciliar, realizar interrogatórios simultâneos (sem afastar o direito de permanecer em silêncio) a fim de impedir que diferentes investigados combinem versões com o intuito de burlar a Justiça, possibilitar o reconhecimento pessoal, concretizar a identificação criminal (Lei 12.037/2009) e o eventual indiciamento formal.
Trata-se de medida cautelar híbrida, de natureza pessoal e probatória, que importa em certo grau de tolhimento da liberdade do indivíduo e volta-se teleologicamente à obtenção de algum elemento informativo ou probatório. Cuida-se de medida autônoma, uma vez que independe de prévia intimação do conduzido, e procura preservar a higidez das fontes de prova. Não afeta a inexigibilidade de autoincriminação, mas apenas materializa a teoria da perda de uma chance probatória, porquanto o Estado não pode se esquivar da incumbência de produzir material probatório sólido para demonstrar de forma robusta a materialidade e autoria delitivas.[3]
Incide quando se vislumbra a necessidade de evitar um mal maior, pela possibilidade imediata de uma medida cautelar mais gravosa, a exemplo da prisão cautelar, aplicando-se em seu lugar outra medida com menor grau de coerção da liberdade de locomoção.[4] Exemplo do que está a se defender é a decretação da condução coercitiva de um suspeito com a finalidade de realizar a identificação criminal, como substitutivo direto à decretação da prisão preventiva identificadora (artigo 313, parágrafo único do CPP) ou mesmo da prisão temporária (artigo 1º, II e III da Lei 7.960/89).
Decorre do poder geral de cautela do juiz (artigo 798 do CPC e artigo 297 do NCPC), aplicável por analogia (artigo 3º do CPP), como sedimentado pelos Tribunais Superiores[5] e pela doutrina[6]. Ora, estando autorizada pela lei a limitação do direito em um volume maior que o finalmente ocasionado pelo meio substitutivo menos gravoso, nada mais lógico que permitir a restrição da liberdade do indivíduo num grau menor do que o previsto legalmente.[7]
É cediço que a Lei 12.403/2011, ao elencar um vasto leque de medidas cautelares diversas da prisão nos artigos 317, 319 e 320 do CPP, rompeu com a bipolaridade cautelar que vigorava no sistema cautelar brasileiro, [8] que só possuía previsão esparsa dessa natureza de medida (a exemplo do artigo 294 do CTB e artigo 22 da Lei 11.340/2006).
O legislador sinalizou pela admissão desse mecanismo antes mesmo da inclusão do rol exemplificativo do CPP, quando a Lei 11.719/2008 acrescentou o parágrafo único do artigo 387 do CPP, determinando que o juiz decida fundamentadamente pela imposição de prisão preventiva ououtra medida cautelar.
Como destacado, a medida não se presta a obrigar o suspeito a colaborar com a investigação. Permanece íntegro o nemo tenetur de detegere, não podendo o conduzido ser compelido a esclarecer os fatos criminosos, a participar de reconstituição simulada do crime, a fornecer padrões gráficos e vocais para perícia, a realizar exame de etilômetro ou de sangue, ou a qualquer outro comportamento ativo autoincriminador.
O objetivo é evitar que prejudique a persecução penal. Não importa se elementos serão efetivamente produzidos com base na condução coercitiva, pois o que se busca é que não se perca a chance de produzi-los.
Importante rememorar que o privilégio contra a autoincriminação não tem o condão de desobrigar o indivíduo a fornecer dados corretos sobre sua identidade e qualificação, e a mentira sobre tais informações inclusive pode configurar crime.[9]
De mais a mais, a assistência jurídica pela defesa técnica continua plenamente garantida, ainda que na fase pré-processual, consolidando recente alteração no Estatuto da OAB, como já explicamos anteriormente.[10] E continuam hígidos os pressupostos para utilização de algemas estampados na súmula vinculante 11 do STF.
Obviamente, as medidas restritivas de direitos fundamentais devem ser executadas com a máxima discrição, evitando que a persecução penal se torne um espetáculo midiático no qual a imprensa substitua o Estado no papel de investigar, acusar e julgar, transmitindo à população uma condenação inexistente.
Respeitável parcela da doutrina sustenta a tipicidade processual das medidas cautelares, alegando que o CPP traz rol numerus clausus e rechaçando a aplicação do poder geral de cautela no processo penal.[11]Diante da necessidade de se evitar o mal maior ocasionado pela prisão, defende a não imposição de cautelar extranumerária, mas a prevalência da liberdade plena.
Todavia, caso não fosse possível a aplicação da cautelar inominada, a prisão teria que prevalecer sobre a liberdade, na medida em que, por mais que seja medida excepcional, deve preponderar face à demonstração de periculum libertatis. Isso porque a proporcionalidade não se manifesta exclusivamente no dever de proteção, mas também na vedação da insuficiência.[12] Ao se bifurcar em proibição de excesso (garantismo negativo) e proibição de proteção insuficiente (garantismo positivo),[13] não só impede desarrazoada restrição de direitos fundamentais pelo Estado, mas exige que o ente público não frustre seu dever de proteção atuando de modo insuficiente (ficando aquém dos níveis mínimos de proteção exigidos) ou mesmo deixando de atuar.
O direito do cidadão à menor desvantagem possível[14] não corresponde necessariamente à liberdade plena. Deve-se buscar a medida menos gravosa dentre as adequadas à eficácia da persecução penal. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direito ou garantias que se revistam de caráter absoluto, em razão do princípio de convivência das liberdades.[15]
Ademais, o artigo 7.2. da Convenção Americana de Direitos Humanos não constitui óbice para a medida. Ninguém discorda que a privação da liberdade deve ser feita de acordo com a legislação. Todavia, considerando a autorização legal para imposição de medidas intermediárias a fim de evitar a prisão, nada impede o uso da interpretação extensiva para superar a mera literalidade do preceito legal, respeitando-se a mens legis de afastar a custódia cautelar pela imposição de outra medida menos severa.
Aliás, o próprio Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em seu artigo 25, permite expressamente a implementação de medidas cautelares atípicas em processos sob sua responsabilidade.
Não menos importante é ressaltar que, como toda medida cautelar, a condução coercitiva pressupõe a fundamentada demonstração do fumus comissi delicti e do periculum libertatis, não sendo suficientes meras alegações genéricas dissociadas dos elementos objetivos do caso concreto.
Expostos os fundamentos da condução coercitiva judicial, oportuno tecer considerações acerca de condução coercitiva policial. [16]
É indubitável que a Polícia Judiciária, como instituição constitucionalmente vocacionada à investigação criminal (artigo 144, §§1º e 4º da CF), pode e deve utilizar todos os mecanismos disponibilizados pela Constituição e pela legislação infraconstitucional a fim de colher os elementos informativos e probatórios que evidenciem a materialidade e autoria delitivas.
Basta lembrar do indivíduo em suposta situação flagrancial (artigo 304 do CPP), situação na qual são perfeitamente válidas a captura e a condução coercitiva do suspeito à delegacia de Polícia. Mesmo que, ao final da audiência primária de apresentação, a Autoridade de Polícia Judiciária entenda pela não lavratura do auto de prisão em desfavor do conduzido, ante a ausência de situação flagrancial, de tipicidade material ou a presença de excludente de ilicitude, por exemplo. De qualquer forma, com tal encaminhamento do suspeito à delegacia permite-se a documentação do fato, o que se afigura de grande interesse à persecução penal. Perder essa chance probatória seria desastroso para o sucesso da investigação.
Em idêntico sentido, é perfeitamente possível a captura e a condução de detentores de imunidade prisional ao órgão policial respectivo. É uma questão de cessação de riscos sociais, bem como, novamente, de necessidade de registro dos fatos.
Mencione-se também a possibilidade de retenção de um indivíduo contra o qual pendam suficientes suspeitas de ser objeto de um mandado de prisão (artigo 290, §2º, c/c artigo 289-A, §5º, do CPP). Nesse caso, nem se sabe quem é o suspeito (ou nem se pode precisar se ele é mesmo sujeito de um mandado de prisão), mas, mesmo assim, a legislação permite sua detenção precária.
Nessa esteira, a possibilidade de o Delegado de Polícia determinar sponte sua a condução coercitiva em outras situações tem sido reconhecida pelas Cortes Superiores, como decorrência da missão constitucional da Polícia Judiciária estampada no artigo 144, bem como do poder geral de polícia hospedado no artigo 6º do CPP, atribuições expressas que tornam desnecessária a invocação da teoria dos poderes implícitos.[17] Nesse caso, por óbvio, diferentemente da condução coercitiva determinada pelo Juiz, não se permite a devassa do domicílio, acobertado pela cláusula de reserva de jurisdição.[18]
Não causa qualquer perplexidade a realização manu propria pelo delegado de Polícia de diligência limitadora de direitos fundamentais. Afinal, como registrado pela Corte Suprema,[19] afirmar que toda restrição a direito fundamental depende de prévia autorização judicial implicaria a paralisação da atuação policial e administrativa, e o banimento do poder de polícia do Estado. Possui a autoridade de Polícia Judiciária discricionariedade dos meios de ação para garantir o direito à segurança pública.[20] Além disso, eventuais excessos podem ser submetidos posteriormente ao controle judicial.
Fundamental sublinhar que o poder de reter excepcionalmente uma pessoa por poucas horas na delegacia de Polícia, por autoridade própria da autoridade de Polícia Judiciária, é amplamente consagrado nos países europeus, tais como Alemanha, França, Bélgica, Portugal, Espanha, Holanda e Inglaterra, e nos países da América, a exemplo de Estados Unidos, Argentina e Chile, havendo diferença apenas na quantidade de horas, que em geral varia de 6 a 72 horas.[21]
Portanto, a condução coercitiva, medida constitucional e convencional, volta-se para garantir a eficácia do sistema probatório e de cautelares da persecução penal, a fim de assegurar um mínimo de eficácia da persecução penal e evitar a restrição mais extremada à esfera de liberdade do indivíduo.
Autores: Henrique Hoffmann Monteiro de Castro é delegado de Polícia Civil do Paraná, mestrando em Direito pela Uenp, especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UGF e em Segurança Pública pela Uniesp. Também é professor convidado da Escola Nacional de Polícia Judiciária, da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná, da Escola da Magistratura do Paraná e da Escola do Ministério Público do Paraná e professor-coordenador do Curso CEI e da pós-graduação em Ciências Criminais da Facnopar.
Adriano Sousa Costa é delegado de polícia de Goiás, mestrando em Ciências Políticas pela UFG, professor titular da Escola Superior da Polícia Civil do Estado de Goiás, professor convidado do Ministério da Justiça (SENASP) e da rede LFG, professor da Especialização na PUC/GO, da FASAM e da FACNOPAR, professor universitário na UNIP/GO e UniAnhanguera/GO, e membro da Academia Goiana de Direito.