Condução coercitiva não pode ser usada como armadilha na investigação criminal

Autor: Antonio Sérgio Altieri de Moraes Pitombo (*)

 

Na primeira fase da persecução penal, a polícia judiciária e o Ministério Público possuem o poder-dever de apurar o fato, para lhe reconhecer a existência, a causalidade, bem assim os elementos indicativos da tipicidade penal. Cumpre a eles, ainda, desvendar os indícios de quem se exibe responsável pela conduta apurada e qual a medida da responsabilidade (artigo 13, 18 e 29, do CP).

Nessa tarefa de se aproximar da verdade, o mais perto possível, surge o poder de exigir que as pessoas compareçam a atos da persecução penal, pré-agendados, para contribuir com o esclarecimento dos fatos (artigo 6º, IV a VI, do CPP).

A seu turno, o juiz criminal na fase investigatória possui o dever de controlar a legalidade dessa atividade de pesquisa oficial sobre o comportamento que se afirma típico e sobre o agente que pode vir a sofrer ação penal. A todo tempo, ao juiz penal se impõe proteger o inocente que não pode ser tratado pelo Estado de modo diferente daquele que a lei prevê (artigo 5º, II e LVII, da CR). Mesmo ao impor medidas restritivas à liberdade (prisão ou medida alternativa à prisão), o faz consoante estreitos limites que a lei lhe autoriza, para hipóteses claras e definidas (artigos 282 e 312, do CPP).

Adotadas tais premissas para a reflexão, pode-se a examinar a condução coercitiva, na primeira fase do processo penal pátrio. Trata-se de instrumento legal para se impor a alguém o comparecimento perante autoridade policial, ou judiciária. Ato de coerção que afasta a faculdade de ir e vir, ao determinar que, em dia e hora certos, funcionários públicos qualificados conduzam o indivíduo a prédio público, diante de autoridade, para fim específico, no âmbito de procedimento investigatório (artigo 260 combinado com artigo 352, do CPP). Importante reconhecer que se está a cuidar de sanção, no plano normativo, originada da omissão de pessoa física que não respondeu a convocação oficial de funcionário público.

Deve-se ter em mente que não se apresenta providência cautelar voltada a obter ou a resguardar prova. Não se desenha providência cautelar de limitação temporal do direito de ir e vir, com o objetivo de atender à investigação criminal. Limita-se a se caracterizar como consequência jurídica à omissão de quem deixou de acatar a ordem de autoridade para ato indicado, sem justificar a ausência, sem se comprometer a atende-la em outra oportunidade.

Mostra-se evidente que tal sanção — fundada em má conduta do indivíduo em procedimento de natureza criminal — não pode impedir o exercício ao direito ao silêncio em interrogatório, nem ao direito à não-auto-incriminação (por exemplo, em reconstituição de crime) (artigo 5º, LXIII, da CR). Não se impinge a ele nada mais do que o dever de acompanhar os funcionários que o apresentarão à autoridade para determinado ato objetivo.

O ordenamento jurídico não reconhece a condução coercitiva como meio para a autoridade policial surpreender o envolvido em persecução penal, nem como método para alijar a ampla defesa e a atividade do advogado — advogado este que se tem o direito de, previamente, escolher para acompanhamento em oitiva e em qualquer ato que possa trazer efeitos jurídicos (artigo 5º, LV, da CR combinado com artigo 8º, 2, “c” e “d”, do Decreto 678/92 e artigo 6º, 261 e seguintes, do CPP).

Em suma, não há previsão legal que autorize a condução coercitiva, sem anterior conhecimento do, constitucionalmente, inocente quanto ao dever de comparecer perante autoridade. Portanto, não há a possibilidade da sanção à liberdade sem inércia proposital, seja de ofendido, testemunha, perito, ou do suspeito (investigado, ou indiciado), diante de intimação para ato de interesse da persecução penal (artigos 201, parágrafo 1º, 218, 278 e 260, do CPP).

Inexiste norma jurídica no direito pátrio que possibilite a polícia judiciária levar à força pessoa para ser ouvida. Não se podem criar armadilhas ao indivíduo para impedi-lo de se preparar, com tempo, para o interrogatório com seu defensor (artigo 8º, 2, do Decreto 678/92). Mostra-se vedado, pois, proibir ambos de ler os autos, no afã de lhes dificultar a reflexão sobre falar, ou se calar perante a autoridade (artigo 5º, LX, da CR combinado com artigo 20, do CPP).

Em realidade, a práxis observada nas recentes ações do Departamento de Polícia Federal — mesmo que embasada em decisões judiciais — não encontra nenhum fundamento legal e deve ser reconhecida como ilícita, bem como proibida de vez por decisão do Supremo Tribunal Federal.

E, caso se queira criar nova providência cautelar no processo penal brasileiro, cumpre se passar pelo devido processo legislativo (artigo 5º, LIV, combinado com artigo 22, da CR), com olhos atentos às disposições constitucionais e aos tratados internacionais tocantes aos direitos individuais. A desculpa de se substituir a prisão temporária (artigo 1º, da Lei 7.960/89) por esse “garde à vue” tupiniquim envergonha a todos nós.

 

 

 

 

Autor: Antonio Sérgio Altieri de Moraes Pitombo é advogado, mestre e doutor em Direito Penal (USP). Pós-Doutor no Ius Gentium Coninbrigae (Univ. de Coimbra).


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