Conduções coercitivas: precisamos de um habeas corpus preventivo?

Autor:  Lenio Luiz Streck (*)

 

Atenção, faço um artigo, hoje, diferente. Dirigido à presidente do Supremo Tribunal Federal. As circunstâncias da banalização das conduções coercitivas exigem um tipo de mais duro de manifestação. Aqui vai. Como se fosse um Habeas Corpus. Preventivo. Para todo o povo brasileiro!

LENIO LUIZ STRECK, brasileiro, casado, ex-procurador de Justiça por 28 anos, advogado parecerista e professor, vem, à presença de Vossa Excelência, Senhora Presidente, com base no artigo 5º, inciso LXVIII da Constituição Federal, e os artigos 654, § 1º, alínea “b” e 660, § 4º, do Código de Processo Penal, impetrar Ordem de HABEAS CORPUS PREVENTIVO em favor de toda a população brasileira, incluídos os reitores das Universidades Públicas — presentes e futuros — e os juízes e delegados e membros do Ministério Público Federal que porventura possam constar como futuras vítimas (afinal, pau que bate em Chico pode bater em Francisco) para impedir qualquer tipo de condução coercitiva que seja feita à revelia da Constituição Federal e do velho Código de Processo Penal,em vigência desde a ditadura Vargas, pelo que expõe os seguintes argumentos de fato e de Direito (embora não acredite que haja qualquer cisão entre questões de fato e questões de Direito):

1. Nunca é demais lembrar que a Constituição Federal garante o direito de ir e vir, que somente pode ser atacado por ordem judicial legal e legítima, e o CPP — ínsito, em plena vigência — deixa claro, letra por letra, vírgula por vírgula, em seu artigo 218, que a testemunha regularmente intimada que não comparecer ao ato para o qual foi intimada, sem motivo justificado, poderá ser conduzida coercitivamente. Veja, senhora presidente do Sodalício Maior, que parece não haver maiores dificuldades para entendermos que só-pode-conduzir-testemunha-se-regularmente-citada.

2. Já o artigo 260 diz que o acusado somente pode ser conduzido se não atender à intimação para interrogatório. Vou escrever de novo e peço desculpas por isso: se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença. Bingo. Tertium non datur. Excelência: Não consigo ler algo diferente do que está escrito: a) só poderá ser conduzida a testemunha regularmente intimada e que não tenha motivo justificado; b) o acusado somente pode ser conduzido se não atender à intimação para interrogatório.

3. Para não sofrer as críticas por “complicar” o direito, deixo de aplicar os modalizadores deônticos de Von Wright para deixar mais lógica a conclusão de vedação de condução sem intimação prévia (se é proibido conduzir, então é obrigatório não conduzir e é permitido não conduzir — Vp = ONp = PNp, sendo V = proibido (verboten, em alemão); O = obrigatório; P = permitido). Não há quarta hipótese, aqui. Só para referir. Não preciso de ponderação ou de proporcionalidade.

4. Textos jurídicos que restringem liberdades devem ser lidos sem analogia e sem ampliações. Leiamos o que está escrito, sem colocar adjetivos e elementos de analogia. Aliás, se o CPP é anterior à Constituição Fedearal, mesmo que ele autorizasse explicitamente, teria que ser filtrado hermeneuticamente. Um banho de imersão constitucional resolveria qualquer componente autoritário. Mas nem é necessário. O CPP já diz o suficiente. A lei exige, nas duas hipóteses, intimação prévia. Então, como diz Gadamer, wer einen Text verstehen will, ist vielmeher bereit, sich von im etwas zu sagen lassen (quem quer compreender um texto, deve deixar que o texto lhe diga algo). Não emudeçamos o texto.

5. Pois as conduções coercitivas, senhora ministra, viraram rotina. Moda. Banalizaram. Agora fizeram isso com o reitor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Já tinham feito com o ex-presidente Lula. Fizeram com um jornalista, e depois… pediram desculpa. Todos os dias fazem isso com a patuleia deste imenso país.

6. Para não dizer que é implicância minha, trago à colação o texto da desembargadora federal Simone Schreiber, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Ela diz que a condução é de tamanha violência que sequer pode ser corrigida por habeas corpus, dada a sua instantaneidade (ver aqui). Além disso, a desembargadora denuncia a espetacularização das conduções. Entre tantas frases incisivas ditas pela magistrada, destaco esta: “O mais impressionante é que pessoas que se tornaram juízes já sob a égide da Constituição de 1988 não aplicam normas de garantia previstas no Código de Processo Penal da ditadura Vargas”! Permito-me colocar a palavra “bingo”, Excelência. Sei que, em uma petição, não se deve fazer esse tipo de licença poética, mas é que ela mexeu na ferida narcísica do PJ. E qual é? Sequer gostamos de cumprir a velha legalidade do velho CPP. E sabe por quê, Excelência? Porque parece que parcela de juízes, delegados e membros do MP acham que a Constituição errou ao dar tantas garantias. E até mesmo o velho CPP era muito liberal. Solução? Simples: eles mesmos corrigem os textos jurídicos moralmente. Bingo de novo (e novo pedido de desculpas).

7. Portanto, face a esse estado de coisas, em que qualquer cidadão, rico ou pobre, pode ser conduzido coercitivamente a qualquer momento, de forma ilegal e à revelia de tudo o que se tem de mais sagrado na Constituição Federal, no Código de Processo Penal e nas convenções internacionais, requeiro de Vossa Excelência que defira a ORDEM DE HABEAS CORPUS PREVENTIVO extensivo a toda a população. Pela ordem de HC preventivo, deve ser lido que uma condução coercitiva só é condução coercitiva se houve prévia notificação da testemunha ou do indiciado. Caso contrário, é abuso de poder, que Vossa Excelência já pode deixar explicitada a essa violação, facilitando o trabalho do Ministério Público que, republicanamente, processará os abusadores.

8. Homenageando os pais do remédio heroico, que, lá no início do século XIII, já se preocupavam com o ir e vir e com prisões e conduções arbitrárias, e saudando os advogados brasileiros que lutam pelas garantias constitucionais e pelo cumprimento das regras do Estado Democrático de Direito,

Pede e espera deferimento.

Como pedido alterativo, se Vossa Excelência achar por bem indeferir a ordem, então inste o STF a fazer uma súmula vinculante (SV), cujo teor copie exatamente os dois dispositivos do CPP já citados (apenas isso). Assim, pelo menos teremos à nossa disposição o recurso da Reclamação. Já que a lei não é cumprida, se transformarmos a lei em súmula, teremos um recurso rápido, sem ter o perigo de sermos barrados pela Sumula 691 e outras jurisprudências defensivas.

Lenio Luiz Streck, jurista e professor – OAB-RS 14.439

 

 

 

Autor:  Lenio Luiz Streck  é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.


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