'Conduta de autor de livros nazistas é criminosa e asquerosa.'

Félix Soibelman*

No artigo publicado sob o título “Julgamento Polêmico – Advogado tentou desqualificar ministro do Supremo” o Sr. Osório Barbosa, procurador da República, criticou as minhas opiniões acerca do julgamento do habeas corpus do neo-nazista Siegfried Ellwanger, escritas no artigo “Elementos ecléticos – A discriminação de judeus e o significado do racismo”. Dirigiu assim o Sr. Osório observações também quanto à minha pessoa para ao fim manifestar pontos de vista gerais quanto aos judeus e palestinos, chegando ao cúmulo de dizer que eu sou eu quem “tacha de discriminador” um homem que simplesmente publica o Mein Kampf de Hitler ou os protocolos dos Sábios do Sião e através de teorias revisionistas nega o holocausto bem como prega a segregação dos judeus. Pelo andar da carruagem, não me espantaria se o mesmo reconhecesse Siegfried Ellwanger como o novo Cristo…

Disse o Sr. Osório no referido artigo: “os humanóides têm tendência a não aceitar julgamentos (de qualquer natureza), que lhes seja contrário”; não sei o que ele quer significar com “humanóide”, que se define no dicionário como algo com características humanas mas que não é humano; não sei se há nisto algum preconceito, pelo que, sendo ele um promotor, obrigado a zelar pela observância da lei, se torna imperativo vir a público dar a explicação adequada, o que exijo desde já, em meu nome e de toda a comunidade judaica.

Se a palavra humanóide concentra a idéia de mecanicismo, sou obrigado a concordar com ele que é terrível ler em alguns textos a invocação de princípios constitucionais sem demonstração de que eles amparam realmente um ponto de vista, não se dessumindo dos fatos narrados aquela conclusão pretendida; perante isto, afirmo que muito piores que os humanóides são os autômatos de suas próprias concepções, beirando um primarismo tão rudimentar na abordagem de certas questões quando ficam somente repetindo conceitos, que é de dar pena encontrar somente memória quando era de se esperar algum pensamento inquisitivo. Uno-me a ele nesta concepção pedindo que o leitor tenha isto em conta para julgar, dentre todos os homens do universo, inclusive nós dois, em quem poderá servir a carapuça.

Ele afirma em seu artigo: “Quem é Félix Soibelman para dizer quem é ou deixar de ser criminoso? Tem ele jurisdição (poder de dizer o direito)? Mesmo que o tivesse, poderia dizê-lo, uma vez que o feito está em andamento?” Na história dos debates jurídicos, não me recordo de nenhum caso onde a ignorância fática fosse tão primorosamente correspondida pela ignorância jurídica, como se constata no texto acima. Nem mesmo o arguto advogado, se não me engano chamado Becker, foi capaz de negar o caráter discriminatório, por isto criminoso, dos livros editados pelo réu, pois, apesar de despido da eloqüência e brilho que a dimensão da causa demandaria, declarou o advogado em alto e bom tom que buscava o habeas corpus com fulcro no fato de estar prescrito o crime por não se configurar o racismo, de modo que o decurso de tempo ensejaria a prescrição da condenação pelas demais modalidades do crime, posto que só o racismo, que quer negar, é imprescritível; salientou porém que as demais condutas incriminatórias elencadas no tipo penal se mantinham, apenas não seriam mais puníveis devido à prescrição;

Que condutas incriminatórias são estas? A lei nº 7716 de 05.01.1989, com redação alterada pela lei 8.081 de 21.09.1990 e posteriormente pela lei 9.459, de 13.05.1997 define como crime os atos resultantes de preconceito, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, ou seja, não seria só o racismo. A conduta do réu, ao publicar livros de conteúdo discriminatório de judeus, encerra os crimes de preconceito contra religião, etnia, e eis que o próprio advogado acredita que judeu é aquele que adota a fé judaica, ou seja, religião.

O Sr. Osório confunde a extinção de punibilidade representada pela prescrição com ausência de crime, o que é coisa bem diferente! Ninguém deixa de ter cometido crime porque escapou da punição face o decurso de tempo. Ignorará ainda que a pendência de habeas corpus não gera a presunção de inocência quando há coisa julgada? Então bastaria ingressar em juízo com um Habeas Corpus em favor de Fernandinho Beira Mar e estaria gerada a presunção de inocência, devendo se colocar o mesmo fora da cadeia? Ora, afirmar que sim seria um desacerto tão grande que faria qualquer jurista se esconder debaixo do sofá de tanto embaraço.

Informar-se sobre o caso que se quer comentar antes de falar é, portanto, coisa de bom alvitre. Seria obrigação do Sr. Osório conhecer a lei e o caso concreto antes de lançar-se perigosamente em aventuras literárias com tanto desatino para fatos e direito. Seria mais prudente, antes de proferir completos absurdos jurídicos sobre o caso, que tivesse um mínimo de contato com a literatura promovida pelo réu, para não negar o teor criminoso de alguns fatos, o quel é incontroverso até para a própria defesa do réu. Tudo demonstra que neste específico caso o Sr. Osório, quando se refere aos fatos, fala do que não conhece; quando se refere ao direito, fala do que não sabe.

Como dito acima, o Sr. Siegfried Ellwanger edita livros reconhecidamente discriminatórios, de conteúdo que incita o ódio e a intolerância, promovendo ainda a difusão de idéias sabidamente falsas como as constantes no protocolo dos Sábios do Sião, “O judeu internacional” de Henry Ford, os livros do Sr. Gustavo Barroso, reconhecido anti-semita, festejado pelos integralistas, ou então outros de conteúdo difamatório que nem mesmo os anti-semitas travestidos pelo politicamente correto, como são muitos que defendem a causa palestina, ousariam, por uma questão de inteligência, adotar.

Fato é que até para o anti-semitismo é necessário algum refinamento que o resgate do mero folclore. Assim mesmo o Sr. Osório dosa seu artigo com um tom indignado; ora, quem tem mesmo de se indignar, sou eu e todos aqueles que pertencem às minorias, detratadas por criminosos através de tal vil e asquerosa conduta. É acintoso, diria eu, tentar inverter tal coisa e dizer que não posso conceituar tal literatura de elaborada vilania! Vejo que na específica questão que ora discutimos o sr Osório não é versado sequer em bom senso.

É isto mesmo: é elaborada vilania o que se colhe na literatura editada pelo réu e repetirei isto onde o Sr. Osório deseje que eu o faça! Medo algum tenho de dizê-lo e repeti-lo aos quatro ventos, mesmo que a tese de não ser racismo prospere. Ora, como poderia eu levantar a cabeça, como judeu e ser humano, se não pudesse dizer que tal hedionda moralidade contida nessa venenosa literatura é tudo o que há de pior? Quem é pois o Sr. Osório para dizer-me que não posso fazê-lo? Eu respondo desde já, com pletórica energia: ele, como qualquer outra pessoa neste mundo, não é absolutamente ninguém para dizer que não posso.

Se o Sr. Osório não pensa que é uma asquerosa e elaborada vilania a publicação de tais hinos ao ódio e à discriminação, se acha normal e permitido sob o ponto e vista da legalidade a incitação do ódio ao judeu que promove o réu com sua infecta literatura, que declare isto por escrito e com assinatura. Se felizmente pensa o contrário, que assine também. Quanto a mim, perante o exposto, assino abaixo da afirmação de que a conduta do réu é criminosa, asquerosa e vil, filiando-se aos mais sangrentos acontecimentos do século. Está lançado o desafio e não tenho medo de assinar o que penso. Eu espero pela resposta do Sr. Osório quanto a sua parte.

Agora vamos à perola com que, rematando a própria inconsistência, o Sr. Osório puxa, como um pára-quedas do casuísmo, as seguintes perguntas: “Se o ato tido por criminoso fosse praticado em benefício do autor não estaria ele tecendo loas ao editor? Nunca vi artigo da comunidade judaica condenando as execuções crianças e idosos palestinos. Os palestinos pertencem a alguma raça?”

Responda-se primeiramente que o imaginário do Sr. Osório não tem credencial alguma para avalizar qualquer coisa sobre a minha pessoa e insinuar em perguntas reticentes como esta o que eu faria ou não em tal ou qual situação; está muito longe ele de ser juiz de almas para que eu tenha de lhe justificar qualquer coisa neste sentido.

Em segundo lugar, tudo evidencia que há muitíssimas coisas que o Sr. Osório nunca viu, com relação ao caso discutido; sua frágil dialética no caso o ilustra, mas elevar a própria ignorância sobre algumas coisas à categoria de razão numa polêmica é algo que foge a qualquer debate sério. Tanto é assim que é vedado ao advogado opor como defesa a sua simples convicção pessoal em algo.

Em terceiro lugar, responda-se que não passa de propaganda barata de cunho apelativo a salada intelectualmente capciosa comumente usada em diversos textos para comover o leitor falando das crianças palestinas mortas, os idosos, etc., e depois empurrar abortivamente para dentro do foco a questão de raça, como se dois mil anos de antijudaísmo fossem eclipsáveis por uma escaramuça geopolítica com mortos de ambos os lados, e mais, como se houvesse alguma proposição racial para perseguir de palestinos tais como há nas idéias segregacionistas do criminoso Siegfried Ellwanger, que atribui aos judeus uma “abjeção de sangue”, irrenunciável e imodificável.

No caudal de impropriedades que destila no caso vertente acresce o Sr. Osório: “O autor teria argumentos para sustentar posição contrária aquela que externou? Sim, em “A indústria do Holocausto”, Norman G. Finkelstein (também integrante da comunidade judaica), demonstra o “rufianismo” de alguns a partir da causa dos judeus. Merece ser lido”.

Qualquer um poderia considerar, tal qual Lutero considerou, como “rufianismo” por parte de alguns a prática de auferir grandes somas e poder com o sangue derramado na cruz, mas eu jamais o faria nem diria coisas do gênero porque costumo respeitar os sentimentos e a religião alheia, e muito mais ainda o sofrimento de alguém. Não usaria, portanto, de técnicas de banalização do mal, como o slogan “indústria do Holocausto”, pois, ao assim rotular aqueles que preservam a memória do genocídio de 6.000.000 de pessoas se abre caminho para que a insensibilidade tenha campo, e se possa passar ao ato seguinte, que é atacar os judeus, ou, como o criminoso Siegfried Ellwanger, dizer que o Holocausto nunca ocorreu.

Chamar de rufiões os judeus que preservam a memória do holocausto ou aqueles que tenham recebido pífias indenizações por atrocidades sofridas é grave ofensa da qual o Sr. Osório, se é isso que tencionou dizer, deve se desculpa ou esclarecer, ou então, ao contrário, formalizar isto por escrito.

Finkelstein ataca o prêmio Nobel Wiesel somente pelo fato do mesmo cobrar por suas palestras como fazem todos os que atingem a posição que ele atingiu! É coisa tão despropositada que não é à toa que o livro fez sucesso não mais que mediano somente na Europa e principalmente na Alemanha, pois a consciência européia que purgar a sua culpa e zerar a conta.

Mais risível e deformada é a decantação de cifras que Finkelstein faz. Enfim, seu livro resulta num sensacionalismo barato que é a jóia do anti-semitismo vermelho atual, o qual, junto com o livreco de Ralh Schoenman, baseado num suposto diário de Bem Gurion, tece as conclusões mais idiotas para enlamear a causa israelense (não que eu concorde com tudo o que Israel faça). E sempre o argumento de que são judeus tais autores como se isto lhes conferisse legitimidade para falar mal de suas próprias origens; é algo tão descabido como seria dizer que promotores possuem a verdade jurídica de alguma coisa somente por serem do MP.

Como epílogo da patacoada, furioso por não ter arrecadado o impacto, dinheiro e reconhecimento que esperava e ser tido finalmente como “autor sério”, Finkelstein andou a declarar que foi perseguido pela mídia, pelos meios de comunicação judaicos, etc., ou seja, algo bem coerente com o rio de exageros e mentiras paranóides que declina em cada página para justificar a desimportância com que é tratado.

O público de Finkelstein é freqüentemente composto de meia dúzia de gatos pingados em palestras insignificantes, ele sim vivendo à custa do Holocausto ao falar contra a suposta exploração do mesmo por judeus; ao seu lado andam freqüentemente aqueles que adoram se passar por politicamente corretos para assim fazer dele “o seu judeu de estimação” mas guardando puro anti-semitismo em seu íntimo. Eu jamais faria esse papel que ele faz, porque não me uniria às víboras nem pela redenção do mundo. São pessoas que não levantam uma palavra contra as mortandades e carnificinas feitas em qualquer parte, jamais falaram do massacre dos curdos com armas químicas em número muito superior aos mortos de todas as Intifadas, mas basta que um palestino morra e de pronto aparecem esses arremedos de defensor dos direitos humanos a repetir a sandice barateira de Saramago: “nazi-sionista”.

O Sr. Osório diz que “a outra tática do autor Félix é desqualificar o ministro Moreira Alves, reconhecidamente, exceto por aqueles contrariados por suas decisões, sempre fundamentadas, um professor. Ombrear-se com o ministro é possível, no entanto, tal deve ser buscado pelo nivelamento por cima. Rebaixar Moreira Alves para chegar a sua estatura é que não pode ser aceito”.

Diga-se primeiramente que não sou eu, mas é o Sr. Osório quem desqualificou o Ministro Moreira Alves, pois uma defesa como esta que ele realiza no seu texto desmereceria o pior dos réus…sem querer insinuar que o Ministro seja réu em alguma coisa…. Em segundo lugar, seria de bom tom que não tergiversasse com o meu verbo: em meu artigo não há uma só palavra sobre a pessoa do Sr. Moreira Alves, mas todas as palavras sobre a erronia falida dos seus argumentos.

O Sr. Moreira Alves erra mesmo quando invoca como teleologia da lei ou interpretação autêntica os motivos do deputado Caó, que lê e relê em cada debate parecendo que seria portanto “grande argumento”, quando interpretação autêntica é a lei interpretativa, e a teleologia da lei transcende em muito a intenção de seu redator.

Erra ainda o Ministro Moreira Alves ao pretender a interpretação histórico-evolutiva pelo depoimento do deputado Caó e parece não assimilar que quando se fala das “razões históricas que levam o legislador a aprovar tal ou qual lei” a palavra legislador se refere a uma entidade abstrata que simboliza o poder legislativo como um todo, e não uma pessoa específica, não se subsumindo a história numa intencionalidade individual.

Erra ainda quando não percebe a inexistência de palavras ociosas na lei, de modo que se estão enunciadas raça e cor, uma não pode ser o mesmo que a outra.

Por tudo isto, afirmo que são ERROS PRIMÁRIOS DE HERMENÊUTICA; repito isso em todas as letras e o direi, se preciso for, até na frente do Ministro.

O Sr. Osório não enfrentou estes argumentos em seu artigo, nada foi capaz de falar sobre isto, mas tudo quis dizer sobre o que sou, flagrando-se aí o desvio retórico que denuncia a escassez de idéias, cuja lacuna quer cobrir com elogios ao Ministro.

O Ministro Maurício Correia, demonstrou a superação da clássica divisão de raças, além de uma série de monumentais argumentos dentro dos quais se referiu às convenções internacionais das quais o Brasil é signatário, que qualificam o anti-semitismo como uma forma de racismo. Diante disto limitou-se Moreira Alves a repetir a leitura trechos de seu voto falando da referida divisão como se o outro Ministro nada tivesse dito .

Não tenho portanto a menor dúvida sobre a possibilidade de ser Moreira Alves um grande professor, principalmente quando se tem em vista as suas magníficas obras sobre a posse ou direito romano; sucede que ser um grande professor não significa entretanto ser capaz de grandes verdades, pois se pode lecionar muito bem sobre os mistérios menores.

O único valor que me interessa no Ministro Moreira Alves, assim como em todos os homens, é seu pensamento; por isto pouco me importa quem é ele ou suas façanhas biográficas, ou porque durante a assassina e torturadora ditadura militar foi ele aprovado para o cargo de Ministro sendo assim indicado para a vaga; mantenho portanto todo o respeito e reverência pelo Ministro e o cargo que ocupa bem como por seus direitos como cidadão e pessoa, dentro dos estritos limites que a lei me impõe e nada, absolutamente nada mais.

Indago se o sr. Osório terá a termometria do homo sapiens para julgar a grandeza dos intelectos, de modo que se sente habilitado a qualificar-me, implicitamente, como de “estatura menor”; dentro do corolário do parágrafo anterior repito que as idéias são a única medida de estatura um homem, mas compreendo e perdôo, com toda a compaixão de que minha alma é capaz, o fato de que alguns espíritos prefiram medir a grandeza humana pela toga.

De resto aconselho aos leitores que leiam meu artigo quando critiquei a posição do MP Federal sobre o mesmo processo, vingando no STJ o que eu tinha por certo.

Finalizando, o Sr Osório declara que “determinadas posições contrárias aos interesses das pessoas tendem a ser aceitas, desde que elas se sintam convencidas. O dom do convencimento (“o dom de iludir”, diz não sei quem pela voz de Gal Costa), inexoravelmente, é o que conta. Se o destinatário do argumento por ele se quedar convencido, o resto (os demais), pouco importam”. O Sr. Osório foi agraciado com o dom da verdade para poder, antes da conclusão do feito, apontar com o dedo quem está e quem não está iludido, mesmo tendo dois Ministros votado no sentido em que entendo, vindo o processo de uma condenação no STJ. Humildemente peço que ilumine nosso caminho com o seu suposto dom, mas recomendo entretanto todo cautela na profissão da verdade, porque, na maioria dos casos, o dom de iludir de uns é muito menor que “o dom de estar iludido” em outros.

Félix Soibelman é advogado no Rio de Janeiro

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