Confronto entre Poderes ameaça democracia e Estado Democrático de Direito

Autor: Francisco Soares Campelo Filho (*)

 

O Judiciário, provocado pelo Ministério Público, vem, já há alguns anos, desde o processo do mensalão[i], condenando políticos, tanto vinculados ao Legislativo quanto ao Executivo por crimes relacionados à corrupção no Brasil. A operação “lava jato”, que em 2014 deflagra a sua primeira fase ostensiva,onde são cumpridos 81 mandados de busca e apreensão, 18 mandados de prisão preventiva, 10 mandados de prisão temporária e 19 mandados de condução coercitiva, em 17 cidades de seis estados e no Distrito Federal[ii], dá continuidade à cruzada contra essa corrupção que está entranhada na política brasileira desde o Brasil Colônia[iii]. O ápice dessa cruzada deveria se dar com a aprovação de uma Lei de inciativa popular,com mais de dois milhões de assinaturas,que tomaria por base o projeto 10 Medidas Contra a Corrupção, do Ministério Público Federal (MPF), o qual passou a tramitar na Câmara dos Deputados com o número PL 4.850/16. A questão, contudo, é que o referido projeto foi aprovado com muitas diferenças em relação ao texto original enviado pelo MPF. Ao todo, 16 destaques foram aprovados, entre eles a responsabilização de juízes e de membros do Ministério Público por crimes de abuso de autoridade. E é aqui que a luta entre os Poderes é deflagrada de forma ainda mais aberta!

A presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, ministra Cármen Lúcia, divulgou nota oficial[iv] na qual lamenta que a aprovação de proposta legislativa que prevê medidas de combate à corrupção venha a ameaçar a autonomia dos juízes e a independência do Poder Judiciário.

O presidente do Senado, Renan Calheiros, que já havia dito não acreditar que alguém “de boa fé defenda o abuso de autoridade”[v], tenta a toque de caixa aprovar também no Senado o PL 4.850/16, ainda no mesmo dia em que fora aprovado na Câmara Federal, sem sequer discuti-lo na Comissão de Constituição e Justiça[vi].

A presidente do STF, um dia antes da aprovação do projeto, após a abertura da sessão extraordinária do CNJ, já dizia que “Os juízes brasileiros tornaram-se permanente alvo de ataques, de tentativa de cerceamento de sua atuação constitucional e, pior, busca-se mesmo criminalizar seu agir”, mais uma vez defendendo a defendendo a autonomia e independência dos poderes, e pedindo que todos os poderes da República atuem respeitando uns aos outros e, principalmente, “buscando um Brasil melhor para todo mundo”[vii].

Esse embate entre os Poderes Legislativo e Judiciário não é de agora. Lembre-se do episódio do presidente do Senado, Renan Calheiros[viii], em face à decisão do juiz da 10ª Vara Federal do Distrito Federal, que determinou a prisão de membros da Polícia do Senado[ix], assim como da resposta dada pela ministra Cármen Lúcia: “Não é admissível aqui, fora dos autos, que qualquer juiz seja diminuído ou desmoralizado. Como eu disse, quando um juiz é destratado, eu também sou”. A ministra, neste caso, mais uma vez defendeu o equilíbrio entre os Poderes da República e disse que os juízes são essenciais para a democracia e o equilíbrio entre esses Poderes. Afirmou que quando alguém destrata um juiz, qualquer que seja o juiz, está destratando a ela própria[x]. Nos últimos anos outros embates já existiram entre os presidentes dos Poderes da República. As críticas vêm ocorrendo mutuamente, cada vez com maior frequência, e não há sinais de que findarão em curto prazo[xi].

Até que ponto o PL 4.850/16, na forma como foi aprovado, é uma resposta do Legislativo ao Judiciário? Seria uma retaliação contra a operação “lava jato” ou contra as decisões do STF contrárias aos interesses dos políticos? Ou de que forma há uma ofensa à democracia, na medida em que afeta(ria) a independência entre os poderes? O objeto deste texto não é analisar o mérito do projeto aprovado, mas antes, debater sobre as consequências dessa flagrante disputa entre os Poderes da República.

Desse modo, percebe-se que a questão é profunda e substancial, considerando que pode afetar o princípio da harmonia e independência entre os poderes, estabelecido no art. 2º da Carta Constitucional de 1988[xii], e o próprio Estado Democrático de Direito.  Pode-se falar mesmo, na verdade, em crise[xiii] de Democracia.

Considerando, todavia, que a Democracia está ligada intimamente ao governo (do, pelo e para) o povo, observa-se a importância capital do governo, que com o fito de cumprir a sua missão dentro de um Estado Democrático de Direito, como o Brasil, se constituiu sob a forma tripartite de poder, fundado ainda no princípio da divisão de poderes, conforme assinala José Afonso da Silva[xiv]. O governo, em sua forma tripartite, deve, pois, cumprir a missão estabelecida logo no preâmbulo da Constituição Federal de 1988, para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

Ora, se os poderes incumbidos da realização dos objetivos do Estado Democrático de Direito, que são independentes (ou deveriam ser), que necessitam atuar em harmonia, passam através de seus chefes a fazer acusações uns contra os outros, não é difícil inferir que há efetivamente uma crise instalada que coloca em risco a própria Democracia.

Falar em crise funcional do Estado, nesse viés, é falar de problemas que afetam à forma de funcionamento do Estado, em sua concepção de estrutura tripartite, onde as funções de cada um dos poderes restam devidamente delineadas e delimitadas. Essa situação termina por fragilizar a estrutura democrática de poder e, via de consequência, a própria Constituição, que tem um papel fundamental para o Estado Democrático de Direito, sendo um documento político-jurídico que, em que pese sempre ter estado submersa em um jogo de tensões e poderes, não pode ser fragilizada como paradigma ético-jurídico da sociedade e do poder, ao invés de este se constitucionalizar, pondo em prática o conteúdo constitucional[xv].

O que se percebe, pois, é que a tripartição dos poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), constitucionalmente garantida, necessária à configuração de um Estado Democrático de Direito, precisa respeitar a harmonia com que devem obrigatoriamente conviver, se se quer que seja mantida essa tripartição, a qual se afigura essencial para a manutenção da própria Democracia.

O certo é que os poderes são independentes, porém harmônicos, é o que diz a Constituição, sendo preciso que se busque essa independência e harmonia a todo custo, sempre, para que não se ponha em risco esse Estado Democrático de Direito, necessário para evitar golpes e desmandos, fundamental para a mantença das liberdades, tão duramente conquistadas.

Não se pode esquecer que em 2016 o Brasil passou pela maior disputa já havida entre os poderes Executivo e Legislativo, culminando com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, então chefe do Executivo[xvi], o que confirma o que se tem aquidefendido.Na realidade o problema é muito mais grave do que uma simples reflexão perfunctória possa alcançar, pois parte de uma questão relativa a um aspecto que dá sustentação ao próprio modelo de Estado.

É preciso mudança de pensamento sobre o papel do Estado, sem esquecer, e isso é crucial, que o Estado existe, ainda, como a forma mais adequada encontrada pelo homem, pelo menos até o presente momento – frise-se, para a organização da vida em sociedade. Muito ainda há por vir, ao que tudo indica, do governo e das ruas também (não se pode fingir que não há uma insatisfação geral com a situação por que passa o país[xvii]).

Os poderes não podem, nem devem, e tampouco foram configurados em sua concepção originária para medirem forças. Contudo, cada um deve cumprir com sua função, e quando assim não o fazem, ocorre o desequilíbrio, a distorção, abrindo espaço para as críticas e interferências muitas vezes inevitáveis, comprometendo a manutenção do próprio Estado.

 

 

 

 

 

Autor: Francisco Soares Campelo Filho  é advogado, mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (RS). Membro da Comissão Nacional de Educação Jurídica do Conselho Federal da OAB. Professor da Escola Superior da Magistratura do Estado do Piauí (ESMEPI).


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