por Valtan Furtado
Apresentam-se aqui, sucinta e objetivamente, razões de ordem jurídica e prática que permitem concluir pela legitimidade da condução de investigações criminais pelo Ministério Público (MP), mediante procedimento próprio.
1. Tal atividade é prevista em lei e compatível com a finalidade do órgão — portanto, amparada pelo art. 129, IX, da CF.
2. A Lei Complementar 75/93 (Estatuto do MPU) prevê, sem restringi-las ao âmbito civil, várias atividades investigatórias do MP, no seu art. 8º, incisos I, II, IV, V, VI, VII, VIII e IX, inclusive “realizar inspeções e diligências investigatórias”; a Lei 8.069/90 (ECA) e a Lei 10.741/03 (Estatuto do Idoso) estabelecem textualmente competir ao MP instaurar sindicâncias para apurar ilícitos penais (art. 201, VII, e art. 74, VI); o art. 47 do CPP, o art. 356, § 2º, do Código Eleitoral e o art. 29 da Lei 7.492/96 são expressos ao atribuir ao MP atividades de investigação criminal direta.
3. A tendência dos ordenamentos modernos é atribuir ao Ministério Público atividade de investigação criminal (como ocorre na Europa continental — p. ex., Alemanha, Itália, Portugal e França –, verificando-se o mesmo na América Latina — Chile, Bolívia, Venezuela, etc.).
4. O item 82 do relatório da ONU sobre execuções sumárias no Brasil traz a seguinte recomendação: “As unidades do Ministério Público deveriam dispor de um grupo de investigadores e ser encorajadas a realizar investigações independentes contra acusações de execuções sumárias. Obstáculos legais que impedem tais investigações independentes deveriam ser removidos em legislação futura.”
5. O sistema do juizado de instrução revela inconvenientes, como o comprometimento da imparcialidade do juiz, que determinaram o seu desprestígio na Europa; já o sistema de investigação exclusivamente policial, arcaico e praticamente abandonado, causa inúmeros problemas de eficiência e celeridade em determinadas apurações.
6. O art. 4º do CPP indica que a tradição brasileira não é a exclusividade, senão a universalidade da investigação, que, dentro dos limites legais, pode ser pública (Polícia, CPI’s, Judiciário, Ministério Público, autoridades militares) ou privada (auditorias internas, atuação de investigador particular — Lei 3.099/57 –, etc.), direta ou incidental (Receita Federal, Banco Central, INSS, COAF, corregedorias, etc.).
7. O art. 144 da CF não institui exclusividade em favor da Polícia, conforme fica claro da leitura dos seus §§ 1º, I e IV, e 4º, em que separa nitidamente a função de investigar infrações penais da de polícia judiciária, esta sim exclusiva das polícias civis.
8. Todo titular de um direito de ação, seja particular, seja ente público, deve ter a faculdade de colher, por si, dentro de parâmetros legais e éticos, os elementos que sustentarão o seu pedido ao Judiciário, sob pena de ver coarctado o seu direito de ação.
9. A independência funcional e as garantias constitucionais dos membros do MP determinam maior probabilidade de desenvolvimento e resultado útil de determinadas investigações, como as que envolvem políticos influentes ou integrantes da Polícia, sobretudo os mais graduados.
10. O controle externo da atividade policial, função atribuída ao MP pelo art. 129, VII, da CF, é notoriamente inviável sem a possibilidade de investigação criminal independente, donde se invoca a teoria dos poderes implícitos.
11. A investigação criminal é apenas um instrumento para a formação da convicção do titular da ação e o exame da admissibilidade da ação penal, não um fim em si mesma.
12. Se é correto que a ação penal pode ser deflagrada sem inquérito policial (art. 46, § 1º, do CPP), que o MP pode promover inquéritos civis (art. 129, III, da CF) e que freqüentemente nestes inquéritos civis (p. ex., nos que apuram improbidade administrativa) surgem indícios da autoria de ilícitos penais, suficientes para o ajuizamento de uma ação penal, soa incoerente e de um formalismo extremo e contraproducente a idéia de negar ao MP a possibilidade de desenvolver procedimentos de investigação criminal, só porque carregam este nome.
13. A alegação de que o Ministério Público conduziria a investigação de modo a favorecer uma futura condenação é falaciosa, porque: a) a prova da fase inquisitorial só serve para o recebimento da ação, devendo toda a prova (exceto a técnica) ser (re)produzida em juízo, quando então as partes postularão em igualdade de condições; b) não se espera do órgão investigador, Polícia ou Ministério Público, imparcialidade, atributo judicial, mas apenas impessoalidade; c) a Polícia está sempre em contato com o MP e é obrigada a atender suas requisições, sendo a mera idéia dessa pretensa eqüidistância um disparate; d) a probabilidade de um membro do MP distorcer os fatos na fase pré-processual não é maior que a de um delegado de polícia fazer o mesmo;
14. Possibilitar ao MP a condução direta de investigações criminais atende ao art. 37, caput, da CF, pois agrega eficiência a determinadas investigações, de acordo com a influência que o investigado possa exercer, o tipo de investigação (p. ex., coleta e análise de documentos), a necessidade de um contato mais direto com a fonte da prova, evitando dúvidas, ou ainda por simples questão de ganho de tempo.
15. A prática tem demonstrado a relevância da atividade investigatória levada a efeito no âmbito interno do MP, em parceria ou não com a Polícia, seja no combate a abusos na função policial, seja na apuração de crimes como sonegação fiscal, lavagem de dinheiro, fraude contra o sistema financeiro e corrupção, sendo o famoso caso do TRT de São Paulo apenas um dos inúmeros em que se revelou fecunda essa atuação
Valtan Furtado é procurador da República