Hélio Mário de Arruda*
No século XXI, dominado pela informática, cresce a importância dos estudos e debates acerca dos direitos autorais de programa de computador (“software” em inglês, “programa informático” em português de Portugal e “logiciel” em francês) desenvolvido e elaborado por empregado, dentro e fora da empresa a que está vinculado.
A Lei nº 9.609/98, conhecida como a lei do “software”, é sua norma reguladora. Essa lei é conjugada com a Lei nº 9.610, da mesma data, conhecida como a lei do direito autoral.
O que é o “software” ?
Trata-se de uma palavra inglesa tão a gosto da maioria dos brasileiros inseridos na economia globalizada e que é traduzido como programa de computador.
O Aurélio define o “software” : “em um sistema computacional, o conjunto dos componentes que não fazem parte do equipamento físico propriamente dito e que incluem as instruções e programas (e os dados a eles associados) empregados durante a utilização do sistema.”
O dicionário Michaelis, define o “software” como “qualquer programa ou grupo de programas que instrui o hardware sobre a maneira como ele deve executar uma tarefa, inclusive sistemas operacionais, processadores de texto e programas de aplicação”.
“Hardware”, por sua vez é “conjunto de unidades físicas, componentes, circuitos integrados, discos e mecanismos que compõem um computador ou seus periféricos”. Em apertada síntese podemos dizer que o “software” é a obra intelectual, enquanto o “hardware” é a máquina.
A Lei n. 9.609/98 define o “software”, nos seguintes termos:
” Art. 1º Programa de computador é a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados”.
Tais programas receberam a proteção legal contra a cópia ilegal capitulada como crime de sonegação fiscal. A lei dá poderes à Receita Federal para investigar empresas e saber a procedência de programas utilizados nos computadores.
Curiosamente existe uma Fundação do Software Livre (FSF), o Projeto GNU (http://www.gnu.org/home.pt.html) e um movimento internacional que defende a liberdade na utilização do “software”. Tal movimento considera que:
“O ‘Software Livre’ é uma questão de liberdade: as pessoas devem ser livres para usar o software de todas as maneiras que sejam socialmente úteis. O software diverge de objetos materiais, tais como cadeiras, sanduíches e gasolina, devido a poder ser copiado e mudado mais facilmente. Estas possibilidades tornam o software útil como ele é. Nós acreditamos que os utilizadores de software devem poder fazer uso dele “.
O “software” desenvolvido e elaborado pelo empregado
Manoel J. Pereira dos Santos, advogado especialista em propriedade intelectual, faz excelente retrospectiva das legislações de direito autorais no que tange à titularidade dos direitos:
“As legislações de direito autoral têm se dividido no tratamento da titularidade dos direitos no que se refere à obra sob encomenda e produzida por trabalhador assalariado. Algumas conferem a titularidade ao encomendante ou empregador, outras ao criador, e finalmente algumas estabelecem um regime de co-titularidade às vezes de contorno indefinido, como acontecia com a Lei 5.988/73.
A matéria ficou omissa na Lei 9.610/98, mas o exame desta questão foge ao escopo deste trabalho. Por outro lado, nossa legislação da propriedade industrial confere a titularidade ao encomendante ou empregador”.
Há algum tempo, a tendência internacional tem sido a de aplicar aos programas de computador a sistemática das obras sob encomenda e produzidas pelo trabalhador assalariado, acolhida pela propriedade industrial, ou seja, a titularidade pertence ao encomendante ou empregador.
Esse era o critério da antiga Lei do Software, o que configurava assim uma modificação da regra geral estabelecida pela Lei 5.988/73. Idêntico dispositivo existe na nova Lei do Software (artigo 4º da Lei 9.609/98). No mesmo sentido, a legislação francesa, conforme Lei 85.660 de 1985 e Lei 94.361 de 1994, e a Diretiva 91.250 da União Européia de 1991 (artigo 2º, item 3).
Portanto, o regime jurídico da obra sob encomenda ou produzida sob contrato de trabalho, aplicável a programas de computador, é diferente daquele em geral estabelecido pela legislação autoral para as demais obras intelectuais.
A norma da lei brasileira aplica-se à obra sob encomenda ou assalariada, produzida em empresa privada, ou em órgão público. De acordo com a nova Lei do Software, aplica-se também a bolsistas, estagiários e assemelhados, mesmo na ausência de contrato ou vínculo estatutário. “(1)
A lei nº 9.609/98 distingue o software (1) desenvolvido e elaborado pelo empregado, contratado de serviço (expressão utilizada como simples aposto) ou servidor público durante a vigência do contrato ou de vínculo estatutário, expressamente destinado à pesquisa e desenvolvimento ou ainda que decorra da própria natureza dos encargos concernentes a esses vínculos (artigos 4°, caput) e (2) o software gerado sem relação com o contrato de trabalho e sem a utilização de recursos, informações tecnológicas, segredos industriais e de negócios, materiais, instalações ou equipamentos do empregador, da empresa ou entidade com a qual o empregador mantenha contrato de prestação de serviços ou assemelhados (artigo 4°,parágrafo 2°).
Na primeira modalidade os direitos relativos ao “software” pertencerão exclusivamente ao empregador, contratante de serviços ou órgão público, salvo estipulação em contrário. A retribuição do trabalho ou serviço prestado limitar-se-á à remuneração ou ao salário convencionado, ressalvado ajuste em contrário (artigo 4°, parágrafo 1°). Na segunda modalidade, os direitos pertencerão exclusivamente ao empregado.
Vê-se que, em princípio, o “software” criado pelo empregado em decorrência do contrato de trabalho não lhe trará qualquer ganho extraordinário, salvo se pactuado com o empregador. Isto porque foram utilizados recursos, informações tecnológicas, segredos industriais e de negócios, materiais, instalações ou equipamentos do empregador, da empresa ou entidade com a qual o empregador mantenha contrato de prestação de serviços ou assemelhados.
Todavia em relação à “software” desenvolvido e elaborado sem uso de qualquer recurso do empregador e fora de seu estabelecimento, em atividade extracontratual, os direitos autorais pertencerão exclusivamente ao empregado.
O critério dessa repartição de direitos segue padrão semelhante ao relativo à invenção e ao modelo de utilidade desenvolvido pelo empregado, previsto nos artigos 88 e 89, da Lei nº 9.279/96 (lei da propriedade industrial) e nos artigos 40 e 41 da lei revogada de nº 5.772/71, ainda que a Lei nº 9.279/96 afaste o programa de computador do conceito de invenção ou modelo de utilidade, o que geraria a possibilidade do patenteamento do “software”.
O legislador foi flexível em relação ao direito de autor do “software” do empregado, porque deixou à autonomia das partes a negociação acerca dos direitos autorais, fixando todavia a regra geral de que, não havendo pacto em contrário, tais direitos patrimoniais pertencerão ao empregador naqueles contratos de trabalho com a finalidade expressa de se destinar à pesquisa e desenvolvimento, bem como quando a atividade do empregado decorrer da própria natureza dos encargos concernentes à relação de emprego.
Entenda-se que os direitos patrimoniais do software serão do empregador em razão da finalidade expressa no contrato destinado à pesquisa e desenvolvimento ou ainda, quando a própria natureza da atividade for atinente à criação e desenvolvimento dos programas de computador.
Será necessária cláusula expressa e por escrito no contrato de trabalho estipulando a participação remuneratória do empregado nos resultados da comercialização do “software” ou mesmo em outra modalidade de compensação monetária, desde que não queira o empregado ficar limitado à remuneração ou ao salário convencionado.
Manoel J. Pereira dos Santos aponta questão interessante, que merece transcrição, acerca de propriedade comum do programa de computador:
“Ocorre, porém, uma hipótese comum que não está regulada na legislação da maioria dos países: como fica a titularidade quando o programa é desenvolvido sem qualquer relação com a natureza do contrato de trabalho, porém com uso de recursos materiais e tecnológicos do empregador? A lei francesa e a Diretiva da União Européia parecem omissas a este respeito. Nossa lei também, como já o era a antiga Lei do Software.
A matéria é regulada na legislação da propriedade industrial brasileira, que prevê propriedade comum. Deveria o legislador seguir essa orientação, importando-a para o direito autoral? Parece-nos que sim. Como agirão os tribunais na ausência de disposição legal expressa? Devem os tribunais aplicar, por analogia, o regime da propriedade industrial, face à ausência de norma reguladora da matéria na nova Lei dos Direitos Autorais? “(2)
Os direitos morais e patrimoniais do “software”
Os direitos autorais segundo a natureza jurídica da proteção podem atuar em campos distintos, ou seja, relacionados com os direitos morais e/ou aos direitos patrimoniais do autor.
A Lei do “software” nega a aplicação dos direitos morais ao programa de computador. Na verdade os admite de forma mitigada ao ressalvar, a qualquer tempo, o direito do autor de reivindicar a paternidade do programa de computador e o de opor-se a alterações não-autorizadas, quando estas impliquem deformação, mutilação ou outra modificação do programa de computador, que prejudiquem a sua honra ou a sua reputação (artigo 2°, parágrafo 1°). Admite dois daqueles direitos morais do autor previstos nos incisos I e IV, da Lei nº 9.610/98. Tais direitos morais são inalienáveis e irrenunciáveis (Lei nº 9.610/98, artigo 27). Na hipótese, pertence ao empregado a titularidade do direito moral ao “software”.
Na análise de Stuber, Bentivegna e Armani, os direitos patrimoniais assim se conceituam:
“Os direitos patrimoniais estão vinculados às relações jurídicas que envolvem a utilização econômica do bem, produto da criação intelectual do autor, e que lhe confere o direito exclusivo de dispor, vender, distribuir, publicar ou reproduzir este bem.”(3)
Sendo o empregador o dono do empreendimento, logicamente cabe a ele, em regra, ser o detentor do direito patrimonial em relação ao “software”, ressalvadas aquelas situações nas quais a excepcionalidade do trabalho intelectual do empregado mereçam tratamento distinto, com estipulação de cláusula resguardando também para o empregado o direito patrimonial, bem como o modo da compensação remuneratória.
Cabe ao autor, nos termos do artigo 28 da Lei nº 9.910/98, o direito patrimonial de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica. Como obra intelectual, ao “software” se aplica o regime de proteção de programa de computador conferido às obras literárias pela legislação de direitos autorais e conexos vigentes no país. É o que diz o artigo 2°, caput da Lei nº 9.609/98.
Todavia, em se tratando de programa de computador, ao empregador pertence o direito patrimonial na hipótese do mesmo ter sido desenvolvido em função de contrato com essa finalidade ou ainda quando decorra da própria natureza das atividades trabalhistas, salvo se existir estipulação em contrário, nos termos do artigo 4°, caput, da Lei nº 9.609/98.
Violação aos direitos do autor pelas próprias partes do contrato de trabalho
O autor, no caso o empregado, poderá ter seus direitos morais violados pelo próprio empregador, o que dará ensejo à reclamação trabalhista de indenização reparatória por dano moral.
Na lição de Edmir Netto de Araújo:
“As transgressões autorais morais, das quais as mais comuns são a usurpação do nome do autor e a violação do direito moral à paternidade da obra intelectual, podem ocasionar a indenização por perdas e danos. “(4)
Contra o direito autoral patrimonial do empregador eventualmente poderão ocorrer ofensas praticadas pelo próprio autor do “software”, que não sendo mais seu empregado viole os direitos do autor de programa de computador, cometendo infração prevista no artigo 12, da Lei nº 9.609/98, a qual se comina pena de detenção de seis meses a dois anos ou multa.
Independentemente da ação penal, o prejudicado poderá intentar ação para proibir o infrator a prática do ato incriminado, com cominação de pena pecuniária, cumulada com perdas e danos pelos prejuízos decorrentes da infração, consoante previsão do artigo14, da mesma lei.
No curso do contrato de trabalho a parte que violar o direito autoral de programa de computador da parte contrária (direito moral ou patrimonial), obviamente também poderá estar dando ensejo à resolução do contrato de trabalho por justa causa por ato de improbidade ou ato lesivo à sua honra (despedida do empregado ou despedida indireta por culpa do empregador).
Notas de rodapé
1- Santos, Manoel J. Pereira dos, “A nova lei do software: aspectos controvertidos da proteção autoral”, publicado na home page, páginas da internet do Ministério da Cultura, htpp://www.minc.gov.br/diraut/
2- idem
3- Stuber, Bentivegna e Armani, artigo intitulado “Lei do Software – Proteção legal dos Programas de Computador”, publicado na home page do Consultor Jurídico, http://cf6.uol.com.br/consultor/view.cfm?numero=1187&ad=c
4- Araújo, Edmir Netto de, “Proteção Judicial do Direito do Autor”, Ltr. Ed., pág. 81
Hélio Mário de Arruda é juiz do TRT-ES e professor universitário